Rodrigo Viana (*)
Não tem jeito. Todo Natal é assim: tempo de clausura interna. Deve haver um mecanismo bio/psicológico responsável por esse ato quase mecânico do ser humano ensimesmar-se em dezembro. A explicação pseudo-inteligente é a de que, percorrido o ano, chega o momento de analisarmos objetivos traçados, atingidos ou não. Mas não creio que essa internalização se explique assim, simplória.
Por trás desse aparente movimento reflexivo da alma, há um componente etéreo. Algo que transcende o mecânico-comportamental da época. Não sei dizer do que se trata. Talvez seja aquilo que nos impulsione a enviar mensagens de Natal pré-concebidas, nos slides toma-tempo da internet. Nada contra manifestações virtuais, mas confesso ter saudade de recebê-las pelo correio. Por esta, e outras, vou rabiscar meu desejo de próprio punho.
Escrevo aos que me acompanham a jornada do dia a dia. Também àqueles que me vêem em flashes, somente no de vez em quando da vida. Escrevo com a amargura do remédio que me engole durante o ano. Escrevo porque vivo docemente.
São 365 dias convivendo com pensamentos e sentimentos flutuando no mesmo espectro. São vários “começar do zero”. Vidas e mortes. Esperamos, mesmo contra toda a esperança. Um vir a ser possível, um refazimento.
De minha parte tentei, de todas as maneiras, escolher o lado certo da estrada. Por vezes não consegui. Meu lado humano, imperfeito, fez-se meu maior inimigo. E todo meu esforço do ano foi em combater minhas próprias inferioridades. Muitas vezes não tive forças para encaminhar minha proposta. Ou, simplesmente, fraquejei e aceitei a derrota.
Mas este é um texto novinho em folha. E como todo Natal vem acompanhado do ano novo, é sempre uma oportunidade de recomeço. Nascer, morrer e renascer, tal é a Lei. Nas palavras de Alan Kardek, recolho-me em mim mesmo, nos meus outros “eus” imanifestados. Escrevo minhas verdades maiores e aspirações honestas de um mundo melhor, sabendo que o primeiro passo é sempre meu. A decisão é interna.
Ao contrário da vida, a literatura é imortal, sobrevive aos tempos e ventos. Então escrevo para não morrer. Grito nas palavras um grito mudo e agudo na direção de vocês, caros amigos. Não houvesse esta presença, também não sobreviveria.
Desejo-lhes, por fim, um Natal refletido e um ano novo pós-concebido, mastigado e ruminado na certeza do aprendizado. Quem muito errou pode acertar mais e melhor.
Com o meus honestos votos de um Natal em Cristo e um Ano realmente Novo.
(*) Jornalista
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
Tempestade, por Aliene Coutinho
Aliene Coutinho (*)
Em dia de chuva,
através da janela
vê-se na rua,
nada.
Desenha-se em pingos
que descem pelo vidro
figuras inanimadas.
Busca-se no frio
o aconchego de braços
distantes.
Sente-se vencido pelo
som dos trovões
e adormece
cansado
pelo tempo.
(*) Jornalista e professora de Telejornalismo
Em dia de chuva,
através da janela
vê-se na rua,
nada.
Desenha-se em pingos
que descem pelo vidro
figuras inanimadas.
Busca-se no frio
o aconchego de braços
distantes.
Sente-se vencido pelo
som dos trovões
e adormece
cansado
pelo tempo.
(*) Jornalista e professora de Telejornalismo
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
Sentimento de urgência, por Risomar Fasanaro
Risomar Fasanaro (*)
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações. Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações. Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
domingo, 23 de agosto de 2009
Ansiedade dominical, por Luiz Delcides R. SilvaLuiz Delcides R. Silva (*)
Domingo à tarde, parecia que as ruas paulistanas estavam livres. Pelo contrário, o primeiro dia da semana é o dia das compras, da procura de um “apê”, da visita à família e do passeio com o cãozinho.
Uma avenida movimentada, muitos carros, famílias, pessoas ouvindo todos os estilos musicais. De repente, uma longa fila de automóveis, que atingia uma grande extensão da avenida e um congestionamento em pleno domingo.
O desespero toma conta dos motoristas, os igrejeiros começam a “jogar” os veículos e dar “fechadas”. No cruzamento da Avenida Aricanduva com a Avenida dos Latinos, a irritação, a raiva. Ao acender a lâmpada verde do semáforo, cidadãos desesperados, como uma largada de carros de corrida para cruzar a principal e seguir em direção a outras alternativas.
Artistas crentes que tinham que “passar o som” às cinco, pastor que iria fazer a “concentração”, tocador de violão que saía desesperado pelas avenidas da paulicéia para chegar no horário combinado com seus “parceiros” de palco.
Após muita correria, o artista chega ansioso, desesperado, afina o instrumento, pluga e passa o som. Um jovem, que fazia parte do backing vocal, passava a voz, todo cheio de estrelismo e interrompia a passagem para chamar a atenção do sonoplasta. Já, o “rapaz do som”, todo servil, estava disposto a ajudá-lo.
A passagem de som, que começaria às 17h00, teve um atraso de quarenta minutos. A estrela, o artista, o super-vocalista que não perdoava nenhuma “sobra” de freqüência, estavam lá fazendo caras e bocas, numa “humildade” fora do comum.
Enfim, os talentosos músicos tocaram e o ansioso tocador de violão, após 2 anos longe do palco da grande tenda, estava de volta, todo cheio, detalhista e mandando uns acordes e toques bastante interessantes, que seguravam as bases das melodias com firmeza.
No final, uma garota, toda simpática, vai cumprimentá-lo e o convida para sair com a sua turma. O músico e a bela moça saem, chegam na frente e iniciam a conversa. Depois, a turma chega com novos assuntos..
Ela não tirava o olho e sempre prestava atenção aos movimentos do rapaz. Quando o tocador de violão iniciava alguma conversa, ela cortava e quando sugeria algum lugar diferente ela discordava. Ao falar de Jazz e de alguns bares de São Paulo que tocam esse belo movimento rítmico norte-americano, ela torceu o nariz e já mandou um sonoro:
“NÃO GOSTO! QUERO IR NO METRÓPOLIS, LÁ TOCA ROCK!”
O jovem músico, com toda a sua simplicidade e singeleza, ficou na dele, deixou a “estrela” falar e educadamente a acompanhou até o seu automóvel. Não esboçou nenhuma reação para dar um amasso ou um beijo na boca e seguiu o seu caminho. Algumas pessoas, para o jovem instrumentista, como essa garota, desagradam e não têm a conveniência em aprender a respeitar e ter a curiosidade em conhecer novos lugares, novas pessoas. Perdeu “pontos” com o rapaz, moral da história.
(*) Luís Delcides R Silva, estudante de jornalismo, micro-empresário e escreve para o blog Casos Urbanos.
Uma avenida movimentada, muitos carros, famílias, pessoas ouvindo todos os estilos musicais. De repente, uma longa fila de automóveis, que atingia uma grande extensão da avenida e um congestionamento em pleno domingo.
O desespero toma conta dos motoristas, os igrejeiros começam a “jogar” os veículos e dar “fechadas”. No cruzamento da Avenida Aricanduva com a Avenida dos Latinos, a irritação, a raiva. Ao acender a lâmpada verde do semáforo, cidadãos desesperados, como uma largada de carros de corrida para cruzar a principal e seguir em direção a outras alternativas.
Artistas crentes que tinham que “passar o som” às cinco, pastor que iria fazer a “concentração”, tocador de violão que saía desesperado pelas avenidas da paulicéia para chegar no horário combinado com seus “parceiros” de palco.
Após muita correria, o artista chega ansioso, desesperado, afina o instrumento, pluga e passa o som. Um jovem, que fazia parte do backing vocal, passava a voz, todo cheio de estrelismo e interrompia a passagem para chamar a atenção do sonoplasta. Já, o “rapaz do som”, todo servil, estava disposto a ajudá-lo.
A passagem de som, que começaria às 17h00, teve um atraso de quarenta minutos. A estrela, o artista, o super-vocalista que não perdoava nenhuma “sobra” de freqüência, estavam lá fazendo caras e bocas, numa “humildade” fora do comum.
Enfim, os talentosos músicos tocaram e o ansioso tocador de violão, após 2 anos longe do palco da grande tenda, estava de volta, todo cheio, detalhista e mandando uns acordes e toques bastante interessantes, que seguravam as bases das melodias com firmeza.
No final, uma garota, toda simpática, vai cumprimentá-lo e o convida para sair com a sua turma. O músico e a bela moça saem, chegam na frente e iniciam a conversa. Depois, a turma chega com novos assuntos..
Ela não tirava o olho e sempre prestava atenção aos movimentos do rapaz. Quando o tocador de violão iniciava alguma conversa, ela cortava e quando sugeria algum lugar diferente ela discordava. Ao falar de Jazz e de alguns bares de São Paulo que tocam esse belo movimento rítmico norte-americano, ela torceu o nariz e já mandou um sonoro:
“NÃO GOSTO! QUERO IR NO METRÓPOLIS, LÁ TOCA ROCK!”
O jovem músico, com toda a sua simplicidade e singeleza, ficou na dele, deixou a “estrela” falar e educadamente a acompanhou até o seu automóvel. Não esboçou nenhuma reação para dar um amasso ou um beijo na boca e seguiu o seu caminho. Algumas pessoas, para o jovem instrumentista, como essa garota, desagradam e não têm a conveniência em aprender a respeitar e ter a curiosidade em conhecer novos lugares, novas pessoas. Perdeu “pontos” com o rapaz, moral da história.
(*) Luís Delcides R Silva, estudante de jornalismo, micro-empresário e escreve para o blog Casos Urbanos.
domingo, 16 de agosto de 2009
Sentimento de urgência, por Risomar Fasanaro
Risomar Fasanaro (*)
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações.
Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações.
Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
domingo, 2 de agosto de 2009
Minha querida secretária eletrônica, por Juarez José Viaro
Juarez José Viaro (*)
Somos muito desumanos com nossos aparelhos eletrônicos. Na maioria das vezes não retribuímos a dedicação e fidelidade com que eles se empenham para nos prestarem serviços, faça sol ou faça chuva.
Esses abnegados auxiliares de nossos serviços domésticos e profissionais nem sempre recebem nossa atenção e carinho pelos serviços prestados em tantos anos de convivência. Quando lembramos de agradecer um aparelho de fax por ter transmitido documentos importantes de nossas vidas? Ou um aparelho telefônico de disco que durante anos foi fiel a nossos dedos quando esses buscaram números de algum ente querido para falar?
O avanço tecnológico tem sido muito cruel com esses aparelhos e nem sempre prestamos as devidas homenagens quando se tornam obsoletos e são substituídos por mais novos, mais avançados e mais eficientes.
Recentemente, minha velha secretária eletrônica veio a falecer... Depois de anos e anos prestados com fidelidade quase canina, anotando recados nem sempre educados de amigos e parentes, ela deixou de funcionar e partiu desta para uma melhor. Técnicos diagnosticaram pane eletrônica generalizada causada pela obsolescência de seus componentes que já não tinham reposição no mercado.
Pensei em prestar-lhe as devidas homenagens de praxe, nesse momento doloroso para mim. Segurei cuidadosamente sua caixa fria e envelhecida, envolvi com quatro cordões o corpo agora inerte e baixei vagarosamente na lata de lixo reciclável, numa cerimônia simples e solitária, mas cheia de emoção e saudades.
Minha secretária eletrônica foi assim sepultada e apagada de minha memória. Espero que minha nova secretária eletrônica, digital e moderna, faça jus na substituição de tão dedicada prestadora de serviços, que tantas saudades tem deixado.
(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.
Somos muito desumanos com nossos aparelhos eletrônicos. Na maioria das vezes não retribuímos a dedicação e fidelidade com que eles se empenham para nos prestarem serviços, faça sol ou faça chuva.
Esses abnegados auxiliares de nossos serviços domésticos e profissionais nem sempre recebem nossa atenção e carinho pelos serviços prestados em tantos anos de convivência. Quando lembramos de agradecer um aparelho de fax por ter transmitido documentos importantes de nossas vidas? Ou um aparelho telefônico de disco que durante anos foi fiel a nossos dedos quando esses buscaram números de algum ente querido para falar?
O avanço tecnológico tem sido muito cruel com esses aparelhos e nem sempre prestamos as devidas homenagens quando se tornam obsoletos e são substituídos por mais novos, mais avançados e mais eficientes.
Recentemente, minha velha secretária eletrônica veio a falecer... Depois de anos e anos prestados com fidelidade quase canina, anotando recados nem sempre educados de amigos e parentes, ela deixou de funcionar e partiu desta para uma melhor. Técnicos diagnosticaram pane eletrônica generalizada causada pela obsolescência de seus componentes que já não tinham reposição no mercado.
Pensei em prestar-lhe as devidas homenagens de praxe, nesse momento doloroso para mim. Segurei cuidadosamente sua caixa fria e envelhecida, envolvi com quatro cordões o corpo agora inerte e baixei vagarosamente na lata de lixo reciclável, numa cerimônia simples e solitária, mas cheia de emoção e saudades.
Minha secretária eletrônica foi assim sepultada e apagada de minha memória. Espero que minha nova secretária eletrônica, digital e moderna, faça jus na substituição de tão dedicada prestadora de serviços, que tantas saudades tem deixado.
(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.
segunda-feira, 27 de julho de 2009
O crime da negra, por Urariano Mota
Urariano Mota (*)
Era uma negra do cabelo bom, diziam. Qualificavam-na com essa valorização ambígua para realçar o seu gênero de fêmea, como uma ferradura impressa no crânio e na pele. Pois sendo negra, deveria ter o cabelo ruim, como chamavam e chamam o cabelo crespo, pixaim. Apesar de negra, aquela negra tinha um quê de beleza marcada a ferro ao nascer, o cabelo bom, e isso queria dizer, por extensão, que ela possuía boa bunda, coxas grossas, sexo no ponto de se comer. Era uma qualificação digna de uso por vendedores de cavalos, que assim qualificariam os seus dentes alvos, fortes, resistentes, se cavalos sorrissem, como ela.
Aquela negra tinha no cabelo a qualidade das negras de olhos verdes, das negras sararás, tórridas, quentes, que se montam e se cruzam como as cabras que agarradas, abraçadas, dão massagem no pênis com os músculos da vulva.
Para seus familiares, não, aquela negra, aquela fêmea que se fizera puta no conceito de toda a gente, era Elza, gostariam de dizer, mas apenas se referiam a ela por círculos, silêncios constrangidos, elipses, pois ela era a mulher que os cobrira de vergonha. E dizendo-a assim afastavam-se da sua parte ruim, pois se afastavam do seu cabelo bom, que se havia tornado uma qualidade especial de puta. Afastavam-se sem cortar os vínculos, no entanto, pois a ela se sentiam ligados por correntes, contra a própria vontade. Em mais de um sentido, eram seus semelhantes.
Uma das razões ocultas era que Elza não se misturou a um homem branco, ou a um mestiço de pele mais clara, que se assemelhasse a um branco. Tendo o cabelo bom, achou de se casar com um negro igual à sua pele, com o agravo do cabelo pixaim do macho. Está certo, os parentes dela reconheciam, o seu namorado era um rapaz estudioso, que seria um professor, e com isso cumpriam uma lei de perdas e ganhos relativos, ainda que não conhecessem tal lei por palavras faladas ou escritas. Esta era a troca: negro bom, ou de futuro, com mestiça ruim, porque sem grandes aspirações. Mas aqui, nessa troca, ainda não estava a gênese do crime cometido por Elza. O problema começou com o passo seguinte. Como uma surpresa má da lei de compensações relativas, ela, que não era branca, mas era uma fêmea de cabelo bom, casou-se e foi viver com os parentes do marido. Uma casa de 10 quartos, uma longa e comprida casa povoada de negros. Negros, só negros. Na pele, no cabelo, nos costumes, na conjunta perdição. Negros com o cheiro dos ferros na pele e o azinhavre dos metais com que trabalhavam, todos ferreiros, torneiros, mecânicos. Nove famílias de negros em uma só casa. Desse modo, Elza terminara por arrastar os parentes dela até os ancestrais, para os negros negros, e isto muito os avergonhava. O seu cabelo bom de nada adiantara. Ou melhor, ou pior, até que adiantara, porque o seu cabelo foi um componente da sua desgraça.
Abstraída a pujança de mulher saudável, forte, de encher as vistas, que poderia ser anunciada num mercado de escravos como uma negra de pernas sólidas, de colunas graciosamente curvas, de bunda grande, esférica, de Angola, de peitos rijos e bem pronunciados, de boca de lábios grossos, abstraída do seu valor de mercado e de danação, Elza possuía uma qualidade de espírito sob medida para o seu crime. Para melhor punição no mundo, a sua alma branca, mestiça, negra, a sua alma, enfim, era de uma inocência quase primitiva. De uma cor verde, de mato, de selva, se tivesse cor.
A qualidade do seu espírito só a distância, no tempo destas linhas escritas, é percebida. Flor do mandacaru, lembra, pelo desabrochar à noite. Flor de um cacto distante, não vista, de percepção a se formar, porque nos chegam dela relatos muito insensíveis, quase bárbaros, sobre a sua natureza. Como arqueólogos de um ser raro, temos que retirar as faixas sucessivas de incompreensão que cobrem a sua pessoa. É impressionante: pelos mais variados relatos, as percepções dela nos chegam sempre como acontecimentos de sua vida sentimental. Como se o seu sentimento, numa paródia, como se o seu sentimento fosse o seu destino. Como se a sua individualidade, a sua vida, já viesse montada numa seqüência de fatos, sentimentais, numa cadeia de fatos amorosos que só poderiam dar no seu crime. E pedimos aos que nos lêem agora o favor da humildade, para que não lhes fujam da retina os acontecimentos pequenos, que remetem à sua inocência. Evitem o sorriso, aquele, com que sorriam e zombavam dela os conhecedores experientes, os sábios do mundo.
Elza casou com o primeiro namorado. Um irmão dela assim contava um pequeno acontecimento desse namoro. “Uma vez a gente saiu, eu, Elza e Misael, para um cinema. Eu não me lembro do filme. Eu me lembro que ao sair, Misael pagou sorvete pra gente. Não sei se porque achou muito gelado, ou se porque Elza nunca havia provado antes, por que diabo foi, ela mal provou e deixou de lado o sorvete. Ela ficou com vergonha. Então eu disse: venha! Ela era muito besta, não era?”. Ao contar esse fato quase como um ato de bravura, de esperteza, o irmão esquece e deixa em sombra a fome que ambos passavam, o privilégio que era um sorvete nos anos 50, e vê nessa recusa de Elza, sem ver o próprio avanço animal, uma prova de retardamento mental da irmã, quase. “Venha!”. Ele não se constrange de contar isto.
(E penso nesta altura nas pequenas safadezas que todos cometemos um dia, e que nos envergonham por toda uma vida. Lembro agora, enquanto censuro esse homem, as mesquinharias de todos nós. São equivalentes ou bem piores que a contada. São piores no gênero, no geral da infâmia, lembro. Mas no episódio contado, simples, sem pretensão, choca mais o que está por trás das palavras ditas. Esse irmão conheceu o destino posterior da irmã, sabe da punição dura que ela sofreu, sabe da relação entre o namorado e os maus dias vividos por ela, e não a tendo mais junto a si, conta o assalto que deu no alimento que não lhe pertencia como quem conta uma brincadeira, um jogo de memória, de lembrança, para realçar a idiotice da mocinha envergonhada.)
“Venha”, nem precisava da ênfase da exclamação. No chamado já se encontra o lugar de mulher que Elza ocupava. Pois o que é a mulher dos anos 50 senão um ser generoso, só generosidade, que se abre, dá prazer e fornece a vida? Nos peitos, no sexo, no leite, fonte, escrava e mãe, que ao fim é sempre uma vaca que se abate, ou uma árvore que cai, depois do fruto e da semente, o que é essa mulher, a não ser isto? Ela era uma contradição da violência, que se escreve como um paradoxo: Um mundo com mulheres, para nosso gozo e usufruto, mas que seja um mundo sem mulheres, para nosso melhor gozo e usufruto. Uma escrava para nosso prazer, que lhe negamos. Venha, sempre.
Penso agora em uma particular Maria, penso em todas as Marias, penso na Santa Virgem Maria, quando penso em Elza: “Então Maria disse: Minha alma exalta o Senhor, e meu espírito se encheu de júbilo por causa de Deus, meu Salvador, porque ele pôs os olhos sobre a sua humilde serva”. Então Elza, com fome, deixou de lado o sorvete. “Venha”, o irmão disse, e Elza ficou a olhar, cheia de graça. Casou-se com o primeiro namorado, e com o destino, que voou, rápido e insuportavelmente breve.
O pai, homem rude, contava o que foi a estréia da filha no leito nupcial. O pai era um mulato que fazia da brutalidade o conteúdo, o sinal, a própria razão de ser do macho. “Bato num filho como quem bate num inimigo”, dizia. E da filha, que estava abaixo da brutalidade física reservada aos machos, o que diria dela? Numa relação de desconhecimento e desprezo, a filha aparecia-lhe nos momentos mais crus de sexualidade. Esses momentos deveriam ser destruídos, mais que contados, para que ele lhe arrancasse o hímen, ou melhor, deixasse-a sem, como se nunca houvesse existido, porque a sua destruição era um império. Pois a sua filha não seria uma puta, e ter sexo uma filha, para ele, era o mesmo que ser uma puta. O que diria da filha na noite de núpcias? Ele não diria, vale dizer, ele não inventaria os fatos ocorridos. A sua função, como a de todo bom contador de histórias, resumia-se em realçar dos acontecimentos o que mais lhe servisse aos objetivos. A sua diretriz, o peso da mão era certeiro, impactante, como um punch, um soco no queixo, um knock-out, ou como um chute de ponta de bico de metal de sapato no útero da filha. E para isso ele escolhia a ocasião, em noites de festa, aniversários, fins de ano, com a mesa repleta de convidados, presentes a filha e o marido, ele na cabeça da mesa a trovejar com voz de se ouvir nas casas vizinhas:
- Na primeira noite de casamento, Elza mijou na cama!
A filha baixava os olhos, com rubor na face escura, enquanto os risos estouravam, pelo uso do verbo mijar, em lugar do mais educado urinar, pela vergonha imposta à senhora casada, presente, que assim pagava, e sempre, e para sempre a falta de ser filha, não um filho digno de levar uma surra como um inimigo, a falta e o pecado de ter sexo de mulher para levar pica do mundo. Os risos rebentavam também como uma adulação, como um pagamentos dos convidados pela bebida e comida fartas. Não é gratuito dizer que até Elza ria, ria-se, sorria, como uma máscara para evitar o pior que a desonra pública. Sabia lá o que poderia vir do pai bêbado, prepotente, com toda corda e fogo da sua verve? O que seria se ele contasse que na primeira menstruação a filha correra pela sala, a gritar que tivera uma hemorragia, que estava a ponto de morrer? Que seria dela, ali na mesa, se ele achasse da melhor grosseria e comicidade gritar que os trapos e panos íntimos da filha, usados como absorventes, possuíam um cheiro tão forte que eram lavados às ocultas, pela madrugada? Que mais ele diria, com sua calorosa imaginação de vingança, para aviltá-la no sexo, por ter sexo, e ter aquele sexo de fêmea, de puta? O marido, covarde, covardão, também ria às espirituosas revelações do sogro. Não gargalhava mais alto porque seria um despropósito, um desrespeito ao chefe da casa, ao meio-dono da esposa. Misael sorria a meio rir, sorria educadamente, com a simpatia mais fingida dos seus olhos rasgados e negros, como a perguntar, enquanto mostrava os dentes, “O senhor, o senhor, quem pode com o senhor?”. Misael sorria também porque, por vias indiretas, era proclamado publicamente em sua macheza. Pois que membro tão vigoroso seria este que fez uma negra robusta mijar-se na cama?
É interessante notar que a urina de Elza não era contada como um gozo, como uma chuva de orgasmo, ou como uma reação de dor, do rasgar-se de dor um hímen rompido à ponta de ferro. A urina, o mijo de Elza, era apenas uma prova do quanto ela era desajeitada, inábil, em cenas e atos de sexo. Tão estúpida era que se mijava, em vez de sangrar. Em lugar do sangue, urina, como os comediantes que em lugar de comer recebem tortas pela cara, ou tão cômica quanto um adulto que em público usasse fralda e mamadeira, ou como um palhaço que tivesse um coração desenhado no cu, no largo traseiro de seda. A urina na primeira noite deveria ser a expressão do quanto era inadequada a filha para o coito – sexo, para a filha, não teria orgasmo, porque a vulva da filha era um órgão de mijar.
O crime de Elza passou então a ser feito. Paciente, lenta e furtivamente. Um crime em que ela não era agente, era a mão que obedecia às circunstâncias. Em meio a nove famílias de negros, ela, que não era tão negra, agravava a sua condição como esposa de um quase negro, pois que ele era um estudante, fadado a sair da quase aldeia. Mulher de um negro de passagem. Mulher de malungo provisório. Mulher ruim, mulher bruxa. Não lhe serviram os cinco filhos paridos de Misael, porque ela era observada por todos os cantos da comprida casa, por todos os recantos do longo quintal, noite e dia, perseguida até no buraco da fechadura, nas moitas dos muros, por entre a folhagem das árvores. Desejada e invocada era a sua queda. E assim, de tal maneira observada, Elza cometeu o seu crime. Sem nenhum heroísmo, sem revolta ou rancor. Cometeu-o porque assim o quiseram. E aqui, mais uma vez, sabemos e transmitimos o que dela contavam.
O soldador Efésio uma tarde passou-lhe a mão na bunda, diziam. As indicações desse ato eram bem ricas. Efésio era um homem alto, forte, glabro. Musculoso como um guerreiro, como a estampa de um vilão negro dos filmes de Tarzan. Sem camisa, a expor o peito escuro e montanhoso, agiu menos por um impulso que por uma história prévia, anterior ao passar a mão na bunda de Elza, diziam. E assim diziam porque, acrescentavam, ela sorrira ao atrevimento como se recebesse uma corte, um galanteio de um namorado, diziam. E assim dizendo, apontavam como indício de prova a grande e desejosa bunda de Elza. Bunda de Angola, bunda legítima e aperfeiçoada, que exposta aos requebros ao passar próxima a um macho era um convite, irrecusável, porque é dos machos machos a bunda bunda. E ao receber o convidado ela sorrira, diziam. E apontavam como segura prova o seu silêncio, e para melhor contundência da prova acrescentavam, “quem cala consente, é do adágio”. E Elza de fato calou, porque sorrira, porque tivera uma história anterior, porque recebera um afago vigoroso na bunda, diziam, nessa ordem, numa lógica infernal.
- Cadê que ela falou? Calou porque gostou, diziam.
Dona Sinhá, tia do marido, uma velha tísica, “seca de sexo”, pelo que lhe gritavam as sobrinhas, quando brigavam com ela, Dona Sinhá completava o que diziam: “Depois de sorrir, ela olhou para os lados, assustada”. Com esse fato consumado, ajuntava, fina: “Que sorrir ela sorri pra tudo que é macho. Mas por que olhou de banda, assustada? Quem não deve, não teme”. Desse ponto Elza teria piscado um olho para o enamorado e saído aos requebros, “para atiçar o homem”.
Diziam, e assim dizendo pouco se importavam com a segunda natureza plantada, com a redução da pessoa da mulher a uma bunda, com a nova pele que impunham na alma que possuíra vergonha de um sorvete e que se urinara na cama. Na verdade, consciência culpada da perseguição, consciência sabedora do sofrimento que lhe faziam, as nove famílias achavam natural que uma esposa sem privacidade, asfixiada, sem ar naquele minúsculo povoado da casa comprida, na verdade achavam natural que essa mulher procurasse homem diferente do marido. Pois era assim que aquela bruxa se vingava: com a bunda oferecida ao primeiro desclassificado. Do mesmo nível que ela. Meneando o traseiro gordo e engordado pelo trabalho da gente. “Era a vingança”, em consciência íntima diziam, para acrescentar, em voz alta, de “puta”.
Então o crime cresceu e ganhou a sua definitiva prova. Como uma ligação necessária entre o requebro, entre o expor a bunda à mão afoita, entre o sorriso à mão e a cama, como um fio lácteo de secreção, a colar os fatos, então houve o bilhete. Ninguém jamais teve a ousadia de perguntar se as linhas escritas do crime existiram. Aceitaram-nas como existentes. Assim como se dão por vistas, porque imaginadas, as linhas do rosto desfigurado de um defunto. Sem a vista material e objetiva das linhas, o bilhete dizia o que as diferentes versões e pessoas da comunidade diziam. Quando escrito pelo amante, assim se escrevia: “Elza, espero-te hoje às 8 da noite, por trás da oficina”. Ou “Elza, hoje de noite, no lugar de sempre, sem falta”. Ou então, “Debaixo do pé de jambo, de noite”. Nas versões atribuídas à infiel, o bilhete vinha dessa maneira: “Efésio, querido, hoje de noite. Um beijo bem forte”. Ou então, ainda: “Efésio, olha para mim, de vez em quando. Beijos. Elza, a sua mulher”.
Depois do bilhete, ou dos bilhetes, o soldador não foi morto ou sequer ameaçado. Pelo contrário, dir-se-ia que, aos olhos das virtuosas mulheres da comunidade, o seu perfil de macho e guerreiro foi muito valorizado. Quem sabe, saudado até com abraços e carinhos mais ardentes, reais e verdadeiros. Mas disso não há registros, escritos ou de boatos. O que há, com absoluta certeza, é que depois dos bilhetes as línguas de fogo voltaram-se contra Elza, e com todo ardor expulsaram-na, deixando-lhe o direito de carregar uma trouxa de trapos. Sem os filhos, que mãe vadia não tem filhos, conforme o costume.
Isto se sabe. Os registros de memória dos irmãos atestam, nebulosamente, que ela sobreviveu depois como empregada doméstica, lavando e passando roupas numa casa burguesa. Sabe-se por fim que faleceu depois de se jogar à frente das rodas de um táxi, ou depois de um aborto, num dos açougues clandestinos para mulheres no Recife. Em uma e outra hipótese, as línguas são unânimes, ela morreu grávida do soldador Efésio. Desajeitada no amor até o fim. A negra, que todos diziam ser do cabelo bom.
(*) Urariano Mota é jornalista e escritor. Tem colaborado em sites da Espanha, de Portugal, da Rússia (no Pravda) e do Brasil. Publicou o romance Os Corações Futuristas, e tem inédito O caso Dom Vital, ainda à procura de editor.
Era uma negra do cabelo bom, diziam. Qualificavam-na com essa valorização ambígua para realçar o seu gênero de fêmea, como uma ferradura impressa no crânio e na pele. Pois sendo negra, deveria ter o cabelo ruim, como chamavam e chamam o cabelo crespo, pixaim. Apesar de negra, aquela negra tinha um quê de beleza marcada a ferro ao nascer, o cabelo bom, e isso queria dizer, por extensão, que ela possuía boa bunda, coxas grossas, sexo no ponto de se comer. Era uma qualificação digna de uso por vendedores de cavalos, que assim qualificariam os seus dentes alvos, fortes, resistentes, se cavalos sorrissem, como ela.
Aquela negra tinha no cabelo a qualidade das negras de olhos verdes, das negras sararás, tórridas, quentes, que se montam e se cruzam como as cabras que agarradas, abraçadas, dão massagem no pênis com os músculos da vulva.
Para seus familiares, não, aquela negra, aquela fêmea que se fizera puta no conceito de toda a gente, era Elza, gostariam de dizer, mas apenas se referiam a ela por círculos, silêncios constrangidos, elipses, pois ela era a mulher que os cobrira de vergonha. E dizendo-a assim afastavam-se da sua parte ruim, pois se afastavam do seu cabelo bom, que se havia tornado uma qualidade especial de puta. Afastavam-se sem cortar os vínculos, no entanto, pois a ela se sentiam ligados por correntes, contra a própria vontade. Em mais de um sentido, eram seus semelhantes.
Uma das razões ocultas era que Elza não se misturou a um homem branco, ou a um mestiço de pele mais clara, que se assemelhasse a um branco. Tendo o cabelo bom, achou de se casar com um negro igual à sua pele, com o agravo do cabelo pixaim do macho. Está certo, os parentes dela reconheciam, o seu namorado era um rapaz estudioso, que seria um professor, e com isso cumpriam uma lei de perdas e ganhos relativos, ainda que não conhecessem tal lei por palavras faladas ou escritas. Esta era a troca: negro bom, ou de futuro, com mestiça ruim, porque sem grandes aspirações. Mas aqui, nessa troca, ainda não estava a gênese do crime cometido por Elza. O problema começou com o passo seguinte. Como uma surpresa má da lei de compensações relativas, ela, que não era branca, mas era uma fêmea de cabelo bom, casou-se e foi viver com os parentes do marido. Uma casa de 10 quartos, uma longa e comprida casa povoada de negros. Negros, só negros. Na pele, no cabelo, nos costumes, na conjunta perdição. Negros com o cheiro dos ferros na pele e o azinhavre dos metais com que trabalhavam, todos ferreiros, torneiros, mecânicos. Nove famílias de negros em uma só casa. Desse modo, Elza terminara por arrastar os parentes dela até os ancestrais, para os negros negros, e isto muito os avergonhava. O seu cabelo bom de nada adiantara. Ou melhor, ou pior, até que adiantara, porque o seu cabelo foi um componente da sua desgraça.
Abstraída a pujança de mulher saudável, forte, de encher as vistas, que poderia ser anunciada num mercado de escravos como uma negra de pernas sólidas, de colunas graciosamente curvas, de bunda grande, esférica, de Angola, de peitos rijos e bem pronunciados, de boca de lábios grossos, abstraída do seu valor de mercado e de danação, Elza possuía uma qualidade de espírito sob medida para o seu crime. Para melhor punição no mundo, a sua alma branca, mestiça, negra, a sua alma, enfim, era de uma inocência quase primitiva. De uma cor verde, de mato, de selva, se tivesse cor.
A qualidade do seu espírito só a distância, no tempo destas linhas escritas, é percebida. Flor do mandacaru, lembra, pelo desabrochar à noite. Flor de um cacto distante, não vista, de percepção a se formar, porque nos chegam dela relatos muito insensíveis, quase bárbaros, sobre a sua natureza. Como arqueólogos de um ser raro, temos que retirar as faixas sucessivas de incompreensão que cobrem a sua pessoa. É impressionante: pelos mais variados relatos, as percepções dela nos chegam sempre como acontecimentos de sua vida sentimental. Como se o seu sentimento, numa paródia, como se o seu sentimento fosse o seu destino. Como se a sua individualidade, a sua vida, já viesse montada numa seqüência de fatos, sentimentais, numa cadeia de fatos amorosos que só poderiam dar no seu crime. E pedimos aos que nos lêem agora o favor da humildade, para que não lhes fujam da retina os acontecimentos pequenos, que remetem à sua inocência. Evitem o sorriso, aquele, com que sorriam e zombavam dela os conhecedores experientes, os sábios do mundo.
Elza casou com o primeiro namorado. Um irmão dela assim contava um pequeno acontecimento desse namoro. “Uma vez a gente saiu, eu, Elza e Misael, para um cinema. Eu não me lembro do filme. Eu me lembro que ao sair, Misael pagou sorvete pra gente. Não sei se porque achou muito gelado, ou se porque Elza nunca havia provado antes, por que diabo foi, ela mal provou e deixou de lado o sorvete. Ela ficou com vergonha. Então eu disse: venha! Ela era muito besta, não era?”. Ao contar esse fato quase como um ato de bravura, de esperteza, o irmão esquece e deixa em sombra a fome que ambos passavam, o privilégio que era um sorvete nos anos 50, e vê nessa recusa de Elza, sem ver o próprio avanço animal, uma prova de retardamento mental da irmã, quase. “Venha!”. Ele não se constrange de contar isto.
(E penso nesta altura nas pequenas safadezas que todos cometemos um dia, e que nos envergonham por toda uma vida. Lembro agora, enquanto censuro esse homem, as mesquinharias de todos nós. São equivalentes ou bem piores que a contada. São piores no gênero, no geral da infâmia, lembro. Mas no episódio contado, simples, sem pretensão, choca mais o que está por trás das palavras ditas. Esse irmão conheceu o destino posterior da irmã, sabe da punição dura que ela sofreu, sabe da relação entre o namorado e os maus dias vividos por ela, e não a tendo mais junto a si, conta o assalto que deu no alimento que não lhe pertencia como quem conta uma brincadeira, um jogo de memória, de lembrança, para realçar a idiotice da mocinha envergonhada.)
“Venha”, nem precisava da ênfase da exclamação. No chamado já se encontra o lugar de mulher que Elza ocupava. Pois o que é a mulher dos anos 50 senão um ser generoso, só generosidade, que se abre, dá prazer e fornece a vida? Nos peitos, no sexo, no leite, fonte, escrava e mãe, que ao fim é sempre uma vaca que se abate, ou uma árvore que cai, depois do fruto e da semente, o que é essa mulher, a não ser isto? Ela era uma contradição da violência, que se escreve como um paradoxo: Um mundo com mulheres, para nosso gozo e usufruto, mas que seja um mundo sem mulheres, para nosso melhor gozo e usufruto. Uma escrava para nosso prazer, que lhe negamos. Venha, sempre.
Penso agora em uma particular Maria, penso em todas as Marias, penso na Santa Virgem Maria, quando penso em Elza: “Então Maria disse: Minha alma exalta o Senhor, e meu espírito se encheu de júbilo por causa de Deus, meu Salvador, porque ele pôs os olhos sobre a sua humilde serva”. Então Elza, com fome, deixou de lado o sorvete. “Venha”, o irmão disse, e Elza ficou a olhar, cheia de graça. Casou-se com o primeiro namorado, e com o destino, que voou, rápido e insuportavelmente breve.
O pai, homem rude, contava o que foi a estréia da filha no leito nupcial. O pai era um mulato que fazia da brutalidade o conteúdo, o sinal, a própria razão de ser do macho. “Bato num filho como quem bate num inimigo”, dizia. E da filha, que estava abaixo da brutalidade física reservada aos machos, o que diria dela? Numa relação de desconhecimento e desprezo, a filha aparecia-lhe nos momentos mais crus de sexualidade. Esses momentos deveriam ser destruídos, mais que contados, para que ele lhe arrancasse o hímen, ou melhor, deixasse-a sem, como se nunca houvesse existido, porque a sua destruição era um império. Pois a sua filha não seria uma puta, e ter sexo uma filha, para ele, era o mesmo que ser uma puta. O que diria da filha na noite de núpcias? Ele não diria, vale dizer, ele não inventaria os fatos ocorridos. A sua função, como a de todo bom contador de histórias, resumia-se em realçar dos acontecimentos o que mais lhe servisse aos objetivos. A sua diretriz, o peso da mão era certeiro, impactante, como um punch, um soco no queixo, um knock-out, ou como um chute de ponta de bico de metal de sapato no útero da filha. E para isso ele escolhia a ocasião, em noites de festa, aniversários, fins de ano, com a mesa repleta de convidados, presentes a filha e o marido, ele na cabeça da mesa a trovejar com voz de se ouvir nas casas vizinhas:
- Na primeira noite de casamento, Elza mijou na cama!
A filha baixava os olhos, com rubor na face escura, enquanto os risos estouravam, pelo uso do verbo mijar, em lugar do mais educado urinar, pela vergonha imposta à senhora casada, presente, que assim pagava, e sempre, e para sempre a falta de ser filha, não um filho digno de levar uma surra como um inimigo, a falta e o pecado de ter sexo de mulher para levar pica do mundo. Os risos rebentavam também como uma adulação, como um pagamentos dos convidados pela bebida e comida fartas. Não é gratuito dizer que até Elza ria, ria-se, sorria, como uma máscara para evitar o pior que a desonra pública. Sabia lá o que poderia vir do pai bêbado, prepotente, com toda corda e fogo da sua verve? O que seria se ele contasse que na primeira menstruação a filha correra pela sala, a gritar que tivera uma hemorragia, que estava a ponto de morrer? Que seria dela, ali na mesa, se ele achasse da melhor grosseria e comicidade gritar que os trapos e panos íntimos da filha, usados como absorventes, possuíam um cheiro tão forte que eram lavados às ocultas, pela madrugada? Que mais ele diria, com sua calorosa imaginação de vingança, para aviltá-la no sexo, por ter sexo, e ter aquele sexo de fêmea, de puta? O marido, covarde, covardão, também ria às espirituosas revelações do sogro. Não gargalhava mais alto porque seria um despropósito, um desrespeito ao chefe da casa, ao meio-dono da esposa. Misael sorria a meio rir, sorria educadamente, com a simpatia mais fingida dos seus olhos rasgados e negros, como a perguntar, enquanto mostrava os dentes, “O senhor, o senhor, quem pode com o senhor?”. Misael sorria também porque, por vias indiretas, era proclamado publicamente em sua macheza. Pois que membro tão vigoroso seria este que fez uma negra robusta mijar-se na cama?
É interessante notar que a urina de Elza não era contada como um gozo, como uma chuva de orgasmo, ou como uma reação de dor, do rasgar-se de dor um hímen rompido à ponta de ferro. A urina, o mijo de Elza, era apenas uma prova do quanto ela era desajeitada, inábil, em cenas e atos de sexo. Tão estúpida era que se mijava, em vez de sangrar. Em lugar do sangue, urina, como os comediantes que em lugar de comer recebem tortas pela cara, ou tão cômica quanto um adulto que em público usasse fralda e mamadeira, ou como um palhaço que tivesse um coração desenhado no cu, no largo traseiro de seda. A urina na primeira noite deveria ser a expressão do quanto era inadequada a filha para o coito – sexo, para a filha, não teria orgasmo, porque a vulva da filha era um órgão de mijar.
O crime de Elza passou então a ser feito. Paciente, lenta e furtivamente. Um crime em que ela não era agente, era a mão que obedecia às circunstâncias. Em meio a nove famílias de negros, ela, que não era tão negra, agravava a sua condição como esposa de um quase negro, pois que ele era um estudante, fadado a sair da quase aldeia. Mulher de um negro de passagem. Mulher de malungo provisório. Mulher ruim, mulher bruxa. Não lhe serviram os cinco filhos paridos de Misael, porque ela era observada por todos os cantos da comprida casa, por todos os recantos do longo quintal, noite e dia, perseguida até no buraco da fechadura, nas moitas dos muros, por entre a folhagem das árvores. Desejada e invocada era a sua queda. E assim, de tal maneira observada, Elza cometeu o seu crime. Sem nenhum heroísmo, sem revolta ou rancor. Cometeu-o porque assim o quiseram. E aqui, mais uma vez, sabemos e transmitimos o que dela contavam.
O soldador Efésio uma tarde passou-lhe a mão na bunda, diziam. As indicações desse ato eram bem ricas. Efésio era um homem alto, forte, glabro. Musculoso como um guerreiro, como a estampa de um vilão negro dos filmes de Tarzan. Sem camisa, a expor o peito escuro e montanhoso, agiu menos por um impulso que por uma história prévia, anterior ao passar a mão na bunda de Elza, diziam. E assim diziam porque, acrescentavam, ela sorrira ao atrevimento como se recebesse uma corte, um galanteio de um namorado, diziam. E assim dizendo, apontavam como indício de prova a grande e desejosa bunda de Elza. Bunda de Angola, bunda legítima e aperfeiçoada, que exposta aos requebros ao passar próxima a um macho era um convite, irrecusável, porque é dos machos machos a bunda bunda. E ao receber o convidado ela sorrira, diziam. E apontavam como segura prova o seu silêncio, e para melhor contundência da prova acrescentavam, “quem cala consente, é do adágio”. E Elza de fato calou, porque sorrira, porque tivera uma história anterior, porque recebera um afago vigoroso na bunda, diziam, nessa ordem, numa lógica infernal.
- Cadê que ela falou? Calou porque gostou, diziam.
Dona Sinhá, tia do marido, uma velha tísica, “seca de sexo”, pelo que lhe gritavam as sobrinhas, quando brigavam com ela, Dona Sinhá completava o que diziam: “Depois de sorrir, ela olhou para os lados, assustada”. Com esse fato consumado, ajuntava, fina: “Que sorrir ela sorri pra tudo que é macho. Mas por que olhou de banda, assustada? Quem não deve, não teme”. Desse ponto Elza teria piscado um olho para o enamorado e saído aos requebros, “para atiçar o homem”.
Diziam, e assim dizendo pouco se importavam com a segunda natureza plantada, com a redução da pessoa da mulher a uma bunda, com a nova pele que impunham na alma que possuíra vergonha de um sorvete e que se urinara na cama. Na verdade, consciência culpada da perseguição, consciência sabedora do sofrimento que lhe faziam, as nove famílias achavam natural que uma esposa sem privacidade, asfixiada, sem ar naquele minúsculo povoado da casa comprida, na verdade achavam natural que essa mulher procurasse homem diferente do marido. Pois era assim que aquela bruxa se vingava: com a bunda oferecida ao primeiro desclassificado. Do mesmo nível que ela. Meneando o traseiro gordo e engordado pelo trabalho da gente. “Era a vingança”, em consciência íntima diziam, para acrescentar, em voz alta, de “puta”.
Então o crime cresceu e ganhou a sua definitiva prova. Como uma ligação necessária entre o requebro, entre o expor a bunda à mão afoita, entre o sorriso à mão e a cama, como um fio lácteo de secreção, a colar os fatos, então houve o bilhete. Ninguém jamais teve a ousadia de perguntar se as linhas escritas do crime existiram. Aceitaram-nas como existentes. Assim como se dão por vistas, porque imaginadas, as linhas do rosto desfigurado de um defunto. Sem a vista material e objetiva das linhas, o bilhete dizia o que as diferentes versões e pessoas da comunidade diziam. Quando escrito pelo amante, assim se escrevia: “Elza, espero-te hoje às 8 da noite, por trás da oficina”. Ou “Elza, hoje de noite, no lugar de sempre, sem falta”. Ou então, “Debaixo do pé de jambo, de noite”. Nas versões atribuídas à infiel, o bilhete vinha dessa maneira: “Efésio, querido, hoje de noite. Um beijo bem forte”. Ou então, ainda: “Efésio, olha para mim, de vez em quando. Beijos. Elza, a sua mulher”.
Depois do bilhete, ou dos bilhetes, o soldador não foi morto ou sequer ameaçado. Pelo contrário, dir-se-ia que, aos olhos das virtuosas mulheres da comunidade, o seu perfil de macho e guerreiro foi muito valorizado. Quem sabe, saudado até com abraços e carinhos mais ardentes, reais e verdadeiros. Mas disso não há registros, escritos ou de boatos. O que há, com absoluta certeza, é que depois dos bilhetes as línguas de fogo voltaram-se contra Elza, e com todo ardor expulsaram-na, deixando-lhe o direito de carregar uma trouxa de trapos. Sem os filhos, que mãe vadia não tem filhos, conforme o costume.
Isto se sabe. Os registros de memória dos irmãos atestam, nebulosamente, que ela sobreviveu depois como empregada doméstica, lavando e passando roupas numa casa burguesa. Sabe-se por fim que faleceu depois de se jogar à frente das rodas de um táxi, ou depois de um aborto, num dos açougues clandestinos para mulheres no Recife. Em uma e outra hipótese, as línguas são unânimes, ela morreu grávida do soldador Efésio. Desajeitada no amor até o fim. A negra, que todos diziam ser do cabelo bom.
(*) Urariano Mota é jornalista e escritor. Tem colaborado em sites da Espanha, de Portugal, da Rússia (no Pravda) e do Brasil. Publicou o romance Os Corações Futuristas, e tem inédito O caso Dom Vital, ainda à procura de editor.
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