quarta-feira, 30 de julho de 2008

Conhecemos e depois desconhecemos, por Débora Santos

Débora Santos (*)



Loucura talvez! Estranho, acho que seria a pronúncia correta. De repente, alguém aparece na sua vida, lhe conquista, lhe envolve, lhe seduz como um amante perfeito.

Palavras doces saem da boca do amor perfeito, oras... Amor perfeito? Quem disse isto? Exatamente assim, as palavras também saem de sua boca, de uma hora para outra, aquela pessoa se torna a mais maravilhosa do mundo, melhor que o ex e, provavelmente, melhor do que qualquer outro.

Ligações, torpedos, orkut e msn – nossa! Um não pode viver sem se comunicar com o outro. A coisa caminha mais ou menos assim: beijos, carícias, brincadeirinhas, e depois, mesmo depois do encontro – o telefone toca, você olha no identificador de chamadas e lá está o nome do dito cujo, atende com um sorriso que vai de orelha a orelha, mais ou menos assim:

"- Oi amoooorrrrrrrr! Tudo bem? Você chegou bem?

- Oi meu docinho, cheguei. Não vai me dizer que já estava dormindo?

- Não amore, para você sempre tenho tempo!

- Eu também, sempre terei tempo e desejo para falar com você!

- Estou morrendo de saudades!

- Eu também!

- Adorei tudo o que fizemos hoje!

- Também adorei, não vejo a hora de vê-lo novamente!

- Bom, vamos dormir, né!

- É mesmo, amanhã temos que trabalhar, um beijo e sonha comigo!

- Beijuuuuussssssss e sonha comigo também!"

O tempo passa, vocês vão se conhecendo, claro! Você acredita que conhece tudo da pessoa, chega a pensar: “Nossa! Realmente encontrei o amor da minha vida”.

O tempo urge e como urge... Algumas coisas vão ficando chatas, aquelas manias que eram despercebíveis no começo, agora passam a atormentar. Depois de algum tempo, as coisas vão piorando, aquela pessoa vai ficando distante, mesmo assim, você acha que tudo vai melhorar.

Torpedo, nem pensar, a desculpa é que a conta do mês passado veio alta demais; orkut, aiaiai... que orkut? E no msn, aquelas frases bonitas e melosas se transformam em: “oi, vc td bem? Akí ta osso, mto trampo, vlw! Bj”. Você lê e se pergunta: “tá osso? Como assim? Ele agora trabalha numa fábrica de botões ou num frigorífico?” E isso quando está com o ícone de ocupado ou ausente. Depois offline é o seu nome!

Um dia liga, no outro nem sinal de fumaça. Mas, continua a pensar que é uma fase, os encontros vão diminuindo, os telefonemas também. E quando liga é para dizer que não poderá comparecer ao encontro. Depois, o telefone morre, ou seja, não liga para ao menos dizer: “Ô coisa do outro mundo, não poderei comparecer hoje, ok!” Nada, inércia da inércia.

Até que o juízo final chega. Ah! Como chega! O bofe tudo de bom que você achava que conhecia e comentava para as amigas, acaba se tornando um encosto, deixa você no descontrole total. As suas amigas pedem ajuda até para os búzios. Você de qualquer forma quer entender o que passa na cabeça do seu "amor", pensa que poderá mudá-lo, santa inocência, Batman!

No final, você acaba percebendo que aquela pessoa é totalmente outra, o corpo permanece o mesmo, no entanto, a mente e o coração dele partiram e partiu junto o seu coração.

* Jornalista.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O tombo, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini(*)



Era uma quarta-feira. Estava em meu horário de almoço. Havia passado em uma loja de conveniências e comprado alguns chicletes. Depois do almoço sempre é bom mascar chicletes. Descascava um ao lado de uma lixeira pública. Sabe como é, consciência ambiental, embalagem no lixo, coisa e tal. Lutava contra a grudada embalagem do chiclete quando avistei, do outro lado da rua, vindo em sentido contrário, uma linda morena de cabelos lisos esvoaçantes. Cabelos iguais a dessas modelos de propaganda de xampu. Caminhava com um charmoso bailar dos quadris, e a leve brisa que soprava naquele dia, associada aos belos raios de sol, fazia com que os cabelos irradiassem um brilho especial, movimentando-se de um lado a outro dos ombros.

Como se não bastasse tudo isso, a bela morena chamava a atenção, também, por estar toda de preto. Bota, calça coladinha, e uma blusa que contornava os fartos seios e a fina cintura. Um visual “mulher fatal”.

Fiquei a admirar a morena que desfilava em frente aos meus olhos, enquanto descascava o chiclete, pensando de forma politicamente correta, como era bela aquela mulher. Foi então que ouvi, saindo de uma construção próxima, de um dentre os vários trabalhadores da obra, o grito que materializava os meus pensamentos:
- Oh gostosa! Gostosa! Peraí morena!... Aonde vai com tanta presa?

A morena (como todas as mulheres nesta situação) encheu-se de orgulho e auto-estima. Vi em seu rosto o leve sorrisinho de satisfação. Passou a mão no cabelo e seguiu de peito estufado e bunda empinada, caprichando no bailar dos quadris. Como um mero espectador da vida cotidiana, assisti a mais essa cena, pensei “tem razão o cara!” e já estava de saída, pois finalmente conseguira abrir o chiclete e colocar a embalagem no lixo, quando o destino aprontou.

Sob o olhar atento da turma de trabalhadores, a morena caminhou por alguns metros com a sua bota de fino salto, e por descuido, na calçada defeituosa, colocou o salto em um buraco e torceu o pé esquerdo. Mesmo com toda a habilidade e swing, a morena não conseguiu evitar a queda. Caiu em câmera lenta, como se diz, batendo com um dos joelhos no chão.

Um silêncio pairou no ar. Meu, dos trabalhadores da construção, e do restante da rua que viu o tombo. Teria a morena se machucado? A resposta veio com o seu rápido levantar. E antes que ela recomeçasse a caminhar, da mesma construção anterior, não perdoando nem mesmo a bela morena de cabelos de propaganda de xampu, veio o grito, sepultando a pior sentença possível nesta situação:
- Oooh boca-aberta!

(*) Jornalista e cronista.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Bárbara tardia, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia(*)



Assim seja. Sob a névoa da alfazema e a providencial intercessão dos santos, amém a tudo e a todos – aflições, alívios, destemperos, calmarias. Haveria mesmo de chegar a hora e a idade em que o melhor era aceitar tudo. Desse jeito tinha de ser um dia.

Fechou a porta do oratório, caminhou até a sala e tirou da estante um livro que nada tinha a ver com o seu estado. Acendeu a lareira, abriu um vinho, sentou-se. O coração quieto, o ouvido atento ao crepitar da lenha, nunca esteve tão disposto a colocar alinhadinhos cada um dos pensamentos. Gostava do domínio linear das coisas, de dar ordenamento e organização a tudo. Tentou ler. Via as palavras sem captar direito seu sentido. Poderia ligar o aparelho e ouvir alguma música, mas não se atrevia a pôr de pé seu ser plasmado na poltrona. Era a isso que se reduzia, uma vida fossilizada naquele ermo pastoril. O vento chicoteando a vidraça, as xícaras tremulando, o pó se acumulando sobre a farta biblioteca que seu pai deixou. Do Pequeno Príncipe a Sófocles. O cachorro se achega e se amontoa aos seus pés, aproveitando uma beirinha de manta. O vinho ia aos poucos laceando o raciocínio, dando corda aos devaneios. Viu o seu reflexo, distorcido, na prataria de família. Parecia uma figura de Modigliani. Acima da lareira jazia o retrato do avô com seu olhar de Torquemada, a ditar cânones e a citar genealogias.

Bárbara devia estar a caminho, disse que vinha sem falta. No oco daquele silêncio, escutaria de longe o carro quando estivesse chegando. Era uma doida, mesmo. Ria e falava alto pelos corredores longos e ecoantes do hotel onde tantas vezes se encontraram. Gostava dos escândalos, não tinha meias medidas, tudo precisava ser muito, intensamente e quando bem entendesse. Sempre foi assim, aprendeu a aceitá-la e a desejá-la sobretudo por aqueles seus defeitos. Ele próprio talvez fosse o maior defeito dela. Daqui a pouco o cachorro sairia dos seus pés e correria até a porteira, fazendo festa para a velha conhecida. Ela viria fresca, como se tivesse acabado de sair do banho. Mesmo depois das seis horas de viagem. Mesmo com as rugas vincando e o estrógeno já escasso. Mesmo com o bom senso dos parentes e amigos dizendo que não, que era loucura.

Segunda taça, já pela metade. Roía as unhas, Bárbara não chegava. Puxou o cordão, deixou semi-aberta a persiana. E pelas frestas iam passando novelos de muitas meadas, a se perderem em labirintos de hera. Sentia o ranger de uma roldana enferrujada em sua cabeça, que ia tirando devagar as querenças e desafetos do seu poço. Matar a sede não matava, mas revolvia a água parada – o que já era alguma coisa. Que pensamentos alinhadinhos, que nada. Ao olhar para as estrelas, deu um giro e perdeu o eixo. Só não caiu pois se agarrou com toda força num poema de Pessoa. Olhou o relógio: dez para as oito nos algarismos romanos dos cebolões, dos carrilhões dos mosteiros, dos cucos das tias velhas, dos digitais made in China. É isso, pensava ele, a única maneira da passagem do tempo ser de alguma forma bela: através dos lindos mostradores de relógio.

Bárbara sofreu, sim. Teve que se virar como pôde depois da morte do marido. Foi de repente, um assalto no semáforo. Nunca desconfiou de nada, o coitado. Acreditava que as saídas dela eram mesmo a trabalho. Crédulo demais. Imagina se ela, bibliotecária de órgão público, precisava viajar tanto. Nas tardes vazias do ofício foi que cismou de escrever. E escrevia escorreitamente, deitava no papel o que vinha à cabeça, sem caprichos de coesão, estilo ou nexo. Prosa desordenada, sempre em primeira pessoa. Às vezes mostrava a ele o que fazia. Não gostava nem desgostava. Sorria, de vez em quando elogiava, logo mudava de assunto, sugeria a volta pra cama.

Ele nunca quis escrever. Passava muito bem sem nenhuma idéia em mente. Durante alguns anos teve um diário. Cadernos que mantinha escondidos, depois relidos e prudentemente queimados. Pensava naqueles sujeitos todos, escritores que às vezes via em entrevistas na televisão, falando de inspiração e compulsão pela escrita, em anotar idéias nos guardanapos de restaurante, em ter insights fazendo a barba e outros clichês.

Elcius latiu e abanou o rabo. Era Bárbara que chegava, junto com Veridiana. Da cozinha, um cheiro bom de bolinho de chuva. Foram entrando sem bater à porta, Elcius se enfiando entre suas pernas. As botas de salto altíssimo batendo nos lajotões. A Bárbara de sempre, imperativa e dominadora, dando ordens aos criados. Há muito não via Veridiana. Uns quatro anos mais nova que eles, observava com atenção cada detalhe da sala, pondo e tirando compulsivamente os óculos ovais. Enfim cedia aos insistentes convites de conhecer a estância.

Passava de meia-noite quando se recolheram. No leito, virando de um lado para o outro, a roldana enferrujada não parava de ranger. O barulho acordou as duas, no quarto ao lado. Não, não estava acontecendo. Bárbara e Veridiana, diáfanas e seminuas à sua frente. E não era sonho, tampouco efeito do vinho. Na manhã seguinte, contritos, foram os três ao oratório.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O homem sozinho, por Celamar Maione

Celamar Maione(*)



Domingo de sol. Jairo olhou o relógio: 6 da manhã. Hora da caminhada no calçadão. Mesmo domingo não conseguia dormir até mais tarde. Levantou-se da cama, se espreguiçando. Colocou o café para fazer. Enquanto isso, foi ao banheiro, escovou os dentes, fez a barba e jogou uma água fria pelo corpo. Vestiu a bermuda que estava em cima do sofá do quarto, penteou os cabelos,.colocou as meias, em seguida os tênis.

Fez um rápido alongamento. Em seguida, voltou para a cozinha e viu o que tinha para comer na geladeira. Pensou na empregada. Ela precisava fazer compras durante a semana. Falaria com ela amanhã. Pegou um pedaço de queijo, colocou café no copo, comeu com prazer sua primeira refeição do dia.

Em seguida, o telefone tocou. Era a mãe para saber se Jairo ainda estava vivo. Falou com a mãe e foi fazer sua caminhada. Óculos escuros. Boné. Olhava as mulheres com biquínis mais ousados. Só isso. Apenas olhava. Acabou a caminhada e passou na banca de jornal. Conversou um pouco com o jornaleiro, deu uma olhada em todos os jornais. Levou um só. Pegou também uma revista semanal. Deixou o troco com o jornaleiro. Despediu-se.

Aproveitou e foi até a padaria. Comprou um frango assado para comer na hora do almoço. Chegou em casa e leu o jornal de ponta a ponta. Em seguida, pegou a revista, passou os olhos e almoçou. Já passava das duas da tarde. O almoço foi rápido. Aliás, era sempre assim. Gostava de tudo fácil e prático. Não queria perder tempo. Era um bom profissional.

Costumava articular seus passos. Tudo era medido, cronometrado. Nada podia falhar. Depois do almoço, relaxou. Nada como um copo de whisky com gelo. Ouviu um CD de músicas clássicas. Era, na verdade, o único dia que tirava para não pensar em trabalho. Domingo era sagrado. Seguia uma rotina, mas diferente da semana.

Até no sábado, levava trabalho para casa, mas domingo, não. Depois do relax dominical, navegava pela Internet. Visitava alguns sites, repassava alguns e-mails e conversava com alguém online no MSN. Qualquer pessoa. Apenas para passar o tempo. “Engraçado”, pensava, “domingo não sabia muito bem o que fazer”.

O apartamento ficava vazio demais. Mas era bom. Não conseguia imaginar uma mulher fazendo cobranças e nem crianças gritando. Ficava arrepiado só de pensar. O tempo passou rápido. Oito da noite. Fez um lanche. Ligou a TV. Nada de interessante. Pegou um DVD. Assistiu ao filme quase dormindo. Passava das 10 da noite. Levantou do sofá da sala, assustado. Foi para o quarto e arrumou meticulosamente a calça, a camisa social, a gravata e o paletó para o dia seguinte. Foi dormir feliz. Segunda-feira estaria de volta ao escritório .

Pensou nas muitas reuniões que tinha pela frente. Dormiu excitado!

(*) Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Utilidade de Deus, por Daniel Santos

Daniel Santos(*)



Após violarem o lacre de documentos iniciais, homens de pesados hábitos marrons não mais se entreolharam, e não só pela vergonha de traírem o que era fundamento: urgia limpar a sujeira sem deixar vestígios.

Os que até então se diziam pios desceram o capuz até os olhos para não se identificarem durante a consagração da sociedade, pois facínoras preservam-se no anonimato, onde a Lei troa vã sem vingar seus ecos.

Apressaram-se, pois, pelos pátios e corredores do templo inaugural, desceram a arca de cedro até a mais funda cisterna, onde a masmorra aguardava Quem àquela hora deveria estar pelas ruas ao alcance de todos.

Mas não, lá não estaria mais, nunca mais. Seus donos tinham outros planos. Pretendiam poupá-Lo para que vigorasse, se possível, por toda a eternidade e lhes abarrotasse, assim, dia após dia, a sacolinha do dízimo.

Por isso, foi tudo muito rápido, e logo depositaram a arca onde as águas primeiras porejavam. Rápido, sim, antes que alguém da rua ouvisse o Deus vencido implorar a Seus patrões que O devolvessem ao caos.

(*) Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

sábado, 19 de julho de 2008

Umas e outras, por Wagner Ribeiro

Wagner Ribeiro(*)



"O acaso faz com que essas duas
Que a sorte sempre separou
Se cruzem pela mesma rua
Olhando-se com a mesma dor"
(Chico Buarque, "Umas e Outras")

Cristina dos Santos Cavalcante residia num bairro pobre da zona Leste paulistana, a uns 15 quilômetros do Centro. Tinha 29 anos e esperava sua segunda criança.

Fez o pré-natal na Unidade Básica de Saúde do Jardim Independência, da rede municipal. O nascimento do filho estava previsto para o dia 15 de junho.

A data chegou, passou... e nada. Então, recorreu ao Hospital Estadual de Vila Alpina. Mas, em cada consulta, diziam-lhe que estava tudo normal e deveria voltar dentro de dois dias.

Apesar de suas precárias condições financeiras, ela pagou por um ultra-som numa clínica particular. O exame revelou que o cordão umbilical tinha dado duas voltas no pescoço da criança.

Levou o laudo na consulta seguinte, às 9 horas do dia 27 de junho, sendo internada imediatamente.

Em vez de efetuarem logo uma cesárea, deram-lhe medicamentos para induzir o parto normal, que acabou ocorrendo somente às 23h20.

Cristina teve então hemorragia e não havia médico capacitado para dar-lhe o atendimento correto. Os jovens residentes tiveram de chamar “um especialista”. Quando este finalmente chegou, não havia vaga para Cristina na UTI.

Quarenta minutos depois (!), levaram-na a uma sala de observação (!!), na qual não havia equipamento nenhum. E foi lá que ela morreu, seis horas depois do parto.

Parte desse tempo foi desperdiçada com a repetição de exames de sangue que a paciente já fizera no mesmo hospital – como se, no momento da emergência, não houvesse a certeza de que o tipo sanguíneo dela fosse aquele que constava da sua ficha.

Segundo o viúvo, Márcio Ferreira da Costa, a primogênita já nascera por meio de cesariana, "o que mostra que já não era muito aconselhável fazer o parto normal desta vez”. E acrescentou: “Ela não tinha nada de dilatação. Minha mulher tinha a cintura muito fina e o neném nasceu com quase 4 quilos. Chegando na parte do ombro, o bebê travou e ficou cerca de 5 minutos sem respirar. Ao nascer, nem chorou, foi direto para os aparelhos.

O hospital registrou a morte como “natural” no 56° Distrito Policial – Vila Alpina. O resgate (oportuno e justificado) de Ingrid Betancourt mobilizou três governos e foi assunto da semana na grande imprensa paulista.

A morte (desnecessária e inaceitável) de Cristina dos Santos Cavalcante não comoveu governo nenhum nem interessou à grande imprensa paulista. Eu só soube dela graças a um valoroso jornal de bairro (a Folha de Vila Prudente) e a um repórter (Rafael Gonçalo) ainda dotado do senso de justiça que deveria ser inerente à nossa profissão.

E só posso fazer o que estou fazendo: compartilhar minha indignação com os leitores, na esperança de que pelo menos alguns percam uns minutinhos enviando e-mails às autoridades, à imprensa e aos amigos.

Depende de nós fazermos com que Cristina dos Santos Cavalcante não tenha morrido em vão, como tantas outras Cristinas de nosso povo sofrido e injustiçado.

* Jornalista.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Da janela vê-se a eternidade, por Eduardo Murta

Eduardo Murta(*)



A vida de Godofredo estava por um fio. Não era a primeira vez, mas o episódio desta manhã sugeria uma gravidade ausente nos outros acontecimentos. Só sugeria, porque ele, e ninguém mais, é quem bem sabia da coleção de circunstâncias em que o odor da morte bafejara-lhe do calcanhar ao espírito. E escapara ileso. Se agora parecia diferente, se resumia aos olhos dos outros.

Foi assim que um vizinho, apartamento de frente, deu o alarme. Ponteiros em 6h15, estágio ainda de cobertas, flagrou Godofredo emparedado à marquise do prédio. Corpo franzino. Soava triste. Sem saída. Um “ai, meu Deus, ele vai cair do vigésimo-terceiro andar” alertou bombeiros e despertou a família. Num segundo, Vó Felícia, Nina, pijama à 14 anos, e Joana, camisola cinqüentona, eram síntese de pavor aos janelões do edifício.

Seguro que não haviam se definhado tanto em choro e desespero em toda sua existência. Que não esperasse, a platéia, reação fria codificada em manuais de emergência. Os gritos, percebam os ecos, eram ouvidos lá de baixo, onde cordão de curiosos foi se juntando aos sinais mornos de sirene. E, desgraça alheia, em instantes surgiu o bolão de apostas: se corpo no asfalto, se bendito salvamento.

Para a gente da casa, era dor que régua e compasso algum mediriam. Nina se dissolvendo em espasmos de pranto, vó intercalando apelos sedosos a súplicas doídas, e Joana, silêncio circunspeto, na fé de que, ele deixando os olhares se cruzarem, caminharia para seus braços. Godofredo ali, impassível, indiferente. Lembrava estatuetas de porcelana.

Esboçou o primeiro movimento em direção à família à voz da menina lhe invocando. Torceu a cabeça, giro manso, e não foi além disso. Repetiu o gesto, porém – o pânico em tom mais grave – dividindo aquelas miradas longas com o curso que o separava do parapeito ao ponto final, lá embaixo. Tão-somente contemplava, sem emitir ruído sequer, sem esboçar pedido de socorro. A garota implorando que compreendesse, que reconhecia suas crises de adolescente (quantas vezes o jogara às paredes, explosiva)...

Soluços entrecortando a fala, Joana viu remédio na emoção. E descreveu o dia em que fora acolhido entre eles. Órfão. Tinha perto da mesma idade de Nina. As fotos registravam. Estava lá: bebezinhos lado a lado. A seu modo, em carícias mútuas. Até cama haviam dividido. E, zelo infantil, precocidade maternal, ela crescera prometendo protegê-lo como a um filho. O chamou por uma, duas, sete vezes. Sem resposta.

Um assombro trespassou-lhe o coração no instante em que campainha e vozerio de bombeiros quebraram o que ela pressupunha como uma chance de diálogo. Sugeriram calma, foram tomando os pontos estratégicos, paramentados. Planos milimetricamente traçados. Um deslize e tudo se perderia. No cuidado essencial, a que não emprestassem a Godofredo sensação de encurralamento, pediram à família que o mantivesse sereno.

As ações foram sincronizadas. A rede, os homens em corda se lançando do andar superior. O corpo agora no vazio. Os gritos. A dúvida. O alívio. Estava salvo. Vó Felícia, Nina e Joana lhe abraçando, todas num pranteado trôpego, quase a moer-lhe os ossos. Sob a súplica de que jurasse que nunca, nunca mais aquilo se daria. Lambeu o primeiro nariz que lhe apareceu à frente. Não tinha como prometer, claro. Porque vida de gatos, aprendera desde os primeiros miados, valeriam um quase nada se não estivessem o tempo todo por um fio. No limite da existência.

(*) Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O prostíbulo, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



Oliveira parou o carro em frente ao prédio e conferiu o nome nos letreiros luminosos. Estava no lugar correto. Desceu do veículo, cumprimentou o segurança que estava parado na porta e ingressou no local. Uma única luz néon azul iluminava o abafado ambiente. Era um recinto pequeno, com algumas mesas distribuídas. A música saia de duas caixas de som que estavam no chão. Havia, ainda, à direita, uma copa, um banheiro e uma porta entreaberta, que levava para um longo e fino corredor.

Dois casais dançavam no centro do salão. No canto esquerdo, um alemão, sem camisa, ria e tomava cerveja. enquanto uma mulata lhe fazia um strip-tease. Ainda neste canto, uma loira, de cabelos lisos, já sem as vestes superiores, sentada no colo de um outro homem, beijava-o ardentemente. À frente, um casal apenas conversava, enquanto as outras meninas “disponíveis” sentavam-se alinhadas para que Oliveira escolhesse uma, como se fossem produtos.

Oliveira visualizou as meninas e escolheu a que lhe pareceu ser a mais nova. Uma moreninha de cabelos cacheados e olhos verdes. Vestia uma saia preta e uma blusa branca, com os botões superiores abertos, deixando à mostra os pequenos seios. Chamava-se Fabrícia e era de uma cidade vizinha, segundo depois contou.

Sentaram-se, lado a lado, e feitas as apresentações, ela foi buscar uma cerveja. A conversa começou a fluir naturalmente. Oliveira, curioso por natureza, interessou-se pela história de vida de Fabrícia e “tocou-se” a questioná-la. Ela, já sentindo as primeiras conseqüências do álcool, foi ficando desinibida, e narrando cada novo episódio com mais detalhes.

Fazia dois meses que estava “trabalhando” no lugar. Fora trazida por uma amiga. Quando perguntada por Oliveira o motivo, na primeira vez respondeu: “Por curiosidade!” Mas depois, com a intimidade aumentada, abriu o jogo. Era a mais velha de um total de quatros filhos.

O pai trabalhava colhendo frutas em uma fazenda. Ganhava pouco mais de um salário-mínimo, o que lhes proporcionava uma vida difícil, visto que a mãe não trabalhava. Entrou no ramo para ganhar o seu próprio dinheiro. Havia procurado emprego em locais sérios, como classificou, mas não achara. Sonhava em se vestir como as atrizes da televisão, com roupas da moda, de grife, e freqüentar os lugares mais badalados. Queria ser modelo ou atriz. Repetia: “Quero ser famosa. Aparecer na TV!”

O tomar cerveja acontecia na velocidade do bate-papo. Entre os vários copos, e um assunto e outro, a confiança de Fabrícia em Oliveira foi aumentando. Oliveira julgou, então, que poderia avançar nos seus questionamentos e atos. Pegou pela primeira vez na mão de Fabrícia, sentindo o frescor de sua pele nova. Ela sorriu e beijou-lhe a face como retorno pela carícia.

Oliveira perguntou-lhe: “Quanto é o programa?” Para sua surpresa, Fabrícia esquivou-se. Respondeu que não fazia programa, que apenas acompanhava os clientes enquanto eles tomavam cerveja, e isso lhe proporcionava ganhar um valor em cima de cada unidade ingerida. Oliveira não se convenceu. Trocou de assunto momentaneamente e deixou-a tomar mais alguns goles de cerveja.

Decorrido algum tempo, sentindo-a mais desinibida e confiante, ele retornou: “Com quantos homens você já transou por dinheiro?” Ela, caindo em contradição, replicou: “Desde que comecei aqui, uns oito, eu acho”. “Ah é!”, exclamou Oliveira, soerguendo as sobrancelhas. Fabrícia, começando a “enrolar a língua”, tarifa: “Cobro R$ 150,00 por programa”.

Dito o valor, Oliveira sentou-se mais próximo de Fabrícia, e elogiou-lhe a beleza física, passando-lhe a mão no cabelo. “Você é tão linda e nova, não deveria estar neste local”. Fabrícia exprimiu um “pois é!”, baixando a cabeça. “Quantos anos você tem?”, continuou Oliveira. Ela assustou-se com a pergunta, e “saltou”, afirmando: “Dezoito! Dezoito completos!” Ele, erguendo as mãos, pediu calma, mas duvidou. “Calma, Calma. Desculpa, mas você não tem dezoito... Ah, não tem mesmo!”.

“Quer ver a minha carteira de identidade?”, Fabrícia rebateu, pensando que o ameaçar de trazer um documento confirmaria a sua fala. Mas não, Oliveira pediu: “Deixa-me ver então?” Fabrícia silenciou por um momento, olhou para os lados e cochichou-lhe: “Na verdade, na verdade eu tenho quinze, mas é que dono do estabelecimento pede para nós falarmos que temos dezoito, para não dar problema”.

Neste instante, o telefone de Oliveira tocou. Ele pediu silencio a Fabrícia, apesar da música do ambiente. Atentou à ligação e, rapidamente, falou: “Está confirmado!” E desligou. Fabrícia, curiosamente, questionou: “Quem era?” Oliveira levantou-se, pegou-a pela mão, e respondeu: “Vamos, acabou!”

Um minuto depois, a Polícia estava no local para finalizar a operação...

* Jornalista e cronista.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

A Bruxa e o encantamento, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro (*)



São dois. Duas vidas, dois destinos. Um não vive sem o outro, para inveja dos que não têm ninguém, e desespero dos que têm, mas vivem mal.

Há uma lenda oriental que conta a história de um pássaro que reunia em si o macho e a fêmea, mas durante uma tempestade ele partiu-se em dois e, desde então, as metades perdidas por mais que se busquem, jamais se reencontraram. Vem daí, dizem os que crêem na lenda, essa nostalgia do outro, esse ser incompleto que somos ao longo da vida. Seria essa a razão dessa busca incessante, dessa procura ao longo da existência.

Mas eu conheço uma metade perdida que encontrou a outra. E aqui divido com vocês a história de dois seres que moram nas ruas. Dois lúmpens que vivem a se cheirar e beijar na boca de forma desavergonhada, carregada de paixão como só vemos nas canções de Chico, o Buarque. Para eles, os carinhos são sempre como se fossem a primeira vez.


Não se acanham de receber um prato de comida; e é muito bonito ver que ele deixa que ela coma até se fartar, para só então comer o que restou no prato.

A paixão dos dois é daquelas que amenizam o calor que nos atormenta ao meio-dia de um sol a pino, que nos suaviza a dor de uma crise existencial, de um amor perdido, de muito mês pro pouco salário.

Muitos tentaram se colocar entre os dois, ser o vértice de um triângulo, mas não conseguiram. O verdadeiro amor não permite essas brechas. Isso é coisa de paixão, sentimento imenso que incendeia o peito, o corpo, a alma, mas se apaga ao primeiro chuvisco. Por isso muitos tentaram, mas não conseguiram. Um terceiro, eles sabem, seria o desequilíbrio, a vertente que separa, a lâmina que corta, fere, sangra e nunca cicatriza completamente.

Tal qual uma Maria Bonita ela não admite rivais. Agride de forma violenta quem dele se aproxima. E faz isso sem cerimônia. Ele, mais calmo, mais tranqüilo, repele todas as fêmeas que o assediam (quem sabe por pura demagogia) para envaidecimento e orgulho dela.

Mas não só as pretensas rivais, todos que passam por eles recebem seus xingamentos, em uma linguagem que somente os dois entendem. E foi por esse grave defeito de personalidade que um dia desses ela se deu mal.

Os ocupantes de uma viatura policial quando pararam e desceram para telefonar, foram agredidos por ela. E, convenhamos, isso não fica bem para uma dama. De acordo com uma testemunha, ao voltar à viatura ainda sob os xingamentos, os policiais se irritaram, o que não nos causa nenhuma surpresa. Sempre tão zens, vez ou outra eles também se irritam. São raros neles esses momentos de raiva, mas compreendemos que manter o bom-humor em uma cidade em que trinta carros são roubados por dia, além de outras ocorrências e, ainda mais sofrer agressões de uma lúmpen sem eira nem beira, tira qualquer um do sério...

Ao sair, o motorista da viatura teria dado marcha ré e atropelado a Pretinha, esse é o nome dela. Ferida, e sangrando muito para desespero de Branco, seu companheiro, que a acompanhou com o olhar desesperado e lacrimejante, ao vê-la sendo levada a uma clínica médica onde ficou durante um mês.

Mês? Mês para mim e para você, leitor, para Branco a ausência da companheira durou anos.

E quem a socorreu? Quem a levou à Clínica? Duas daquelas pessoas que ela xinga diariamente, ou seja: os freqüentadores do bar onde eles ficam em frente, que além de se cotizarem para pagar as despesas do tratamento, se revezaram nas visitas.

O Branco durante aquele mês ficou triste, sorumbático. Mas após uma cirurgia e uma dose maciça de antibióticos, Pretinha voltou. E hoje os dois estão aos cheiros e beijos. Os amigos levaram o Branco para tomar um banho. Afinal, depois de tanto tempo era preciso receber a Pretinha com toda honra.

E afinal, não é o homem o melhor amigo do cão?

Contei esta história à minha amiga Juçara e ela concluiu:

-Mas eles não podem ser cachorros. Só podem ser pessoas encantadas.

-Encantadas por quem, Juçara?

- Ah!... por alguma bruxa invejosa de tanta paixão...

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

A Bruxa e o encantamento, por Risomar Fasanaro

Risomar Fasanaro (*)



São dois. Duas vidas, dois destinos. Um não vive sem o outro, para inveja dos que não têm ninguém, e desespero dos que têm, mas vivem mal.

Há uma lenda oriental que conta a história de um pássaro que reunia em si o macho e a fêmea, mas durante uma tempestade ele partiu-se em dois e, desde então, as metades perdidas por mais que se busquem, jamais se reencontraram. Vem daí, dizem os que crêem na lenda, essa nostalgia do outro, esse ser incompleto que somos ao longo da vida. Seria essa a razão dessa busca incessante, dessa procura ao longo da existência.

Mas eu conheço uma metade perdida que encontrou a outra. E aqui divido com vocês a história de dois seres que moram nas ruas. Dois lúmpens que vivem a se cheirar e beijar na boca de forma desavergonhada, carregada de paixão como só vemos nas canções de Chico, o Buarque. Para eles, os carinhos são sempre como se fossem a primeira vez.


Não se acanham de receber um prato de comida; e é muito bonito ver que ele deixa que ela coma até se fartar, para só então comer o que restou no prato.

A paixão dos dois é daquelas que amenizam o calor que nos atormenta ao meio-dia de um sol a pino, que nos suaviza a dor de uma crise existencial, de um amor perdido, de muito mês pro pouco salário.

Muitos tentaram se colocar entre os dois, ser o vértice de um triângulo, mas não conseguiram. O verdadeiro amor não permite essas brechas. Isso é coisa de paixão, sentimento imenso que incendeia o peito, o corpo, a alma, mas se apaga ao primeiro chuvisco. Por isso muitos tentaram, mas não conseguiram. Um terceiro, eles sabem, seria o desequilíbrio, a vertente que separa, a lâmina que corta, fere, sangra e nunca cicatriza completamente.

Tal qual uma Maria Bonita ela não admite rivais. Agride de forma violenta quem dele se aproxima. E faz isso sem cerimônia. Ele, mais calmo, mais tranqüilo, repele todas as fêmeas que o assediam (quem sabe por pura demagogia) para envaidecimento e orgulho dela.

Mas não só as pretensas rivais, todos que passam por eles recebem seus xingamentos, em uma linguagem que somente os dois entendem. E foi por esse grave defeito de personalidade que um dia desses ela se deu mal.

Os ocupantes de uma viatura policial quando pararam e desceram para telefonar, foram agredidos por ela. E, convenhamos, isso não fica bem para uma dama. De acordo com uma testemunha, ao voltar à viatura ainda sob os xingamentos, os policiais se irritaram, o que não nos causa nenhuma surpresa. Sempre tão zens, vez ou outra eles também se irritam. São raros neles esses momentos de raiva, mas compreendemos que manter o bom-humor em uma cidade em que trinta carros são roubados por dia, além de outras ocorrências e, ainda mais sofrer agressões de uma lúmpen sem eira nem beira, tira qualquer um do sério...

Ao sair, o motorista da viatura teria dado marcha ré e atropelado a Pretinha, esse é o nome dela. Ferida, e sangrando muito para desespero de Branco, seu companheiro, que a acompanhou com o olhar desesperado e lacrimejante, ao vê-la sendo levada a uma clínica médica onde ficou durante um mês.

Mês? Mês para mim e para você, leitor, para Branco a ausência da companheira durou anos.

E quem a socorreu? Quem a levou à Clínica? Duas daquelas pessoas que ela xinga diariamente, ou seja: os freqüentadores do bar onde eles ficam em frente, que além de se cotizarem para pagar as despesas do tratamento, se revezaram nas visitas.

O Branco durante aquele mês ficou triste, sorumbático. Mas após uma cirurgia e uma dose maciça de antibióticos, Pretinha voltou. E hoje os dois estão aos cheiros e beijos. Os amigos levaram o Branco para tomar um banho. Afinal, depois de tanto tempo era preciso receber a Pretinha com toda honra.

E afinal, não é o homem o melhor amigo do cão?

Contei esta história à minha amiga Juçara e ela concluiu:

-Mas eles não podem ser cachorros. Só podem ser pessoas encantadas.

-Encantadas por quem, Juçara?

- Ah!... por alguma bruxa invejosa de tanta paixão...

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Notícia que marca (de verdade), por Gustavo do Carmo

Gustavo do Carmo (*)



Algumas pessoas vieram me perguntar se o meu primeiro livro, Notícias que Marcam, é uma coletânea das notícias do país e do mundo que me marcaram. Não. Não é. É um romance ambientado nos bastidores da redação de um telejornal. As notícias marcaram o protagonista, Cassio James, desde a sua época de faculdade. E não a mim.

As notícias marcantes para a personagem do romance foram o casamento da menina por quem ele era apaixonado, a transferência do seu melhor amigo para os Estados Unidos, o convite para o seu primeiro emprego e outras que eu deixo para o leitor descobrir no livro.

O primeiro a identificar esta dubiedade do título foi o meu editor. Foi ele quem me sugeriu colocar a palavra “romance” na capa para não confundir. Mesmo assim, muita gente ainda me pergunta.

Claro que nunca me senti ofendido nem incomodado com isso. Pelo contrário. Acho até que eu despertei nessas pessoas a curiosidade delas em saber qual(is) foi(foram) a(s) notícia(s) que mais me marcou(aram). Assim, se o leitor que já viu o meu livro por aí ficou com a mesma dúvida e conseqüente curiosidade, vou revelar a vocês e às pessoas que me perguntaram sobre o título do romance a notícia que mais me marcou.

No entanto, infelizmente, ela não é boa. Notícias trágicas marcam mais do que as boas. As boas são mais previsíveis. E estou me referindo a notícias externas, ou seja, jornalísticas. Em breve, vou tentar lembrar a notícia pessoal que mais me marcou e conto em outra crônica.

Chega de suspense. A notícia que mais me marcou foram duas. Duas mortes em dois dias, em acidentes distintos. Duas equipes de jornalistas da Rede Globo mortas em serviço. O Jornal Nacional transmitiu tão bem a emoção do fato ou criou um clima tão fúnebre para homenagear os seus profissionais que eu, na flor dos meus seis anos, fiquei impressionado e lembro até hoje. Finalmente escrevo uma crônica sobre isso.

Em junho de 1984, a Petrobras fazia aquele tradicional jabá para comemorar o recorde da produção da Bacia de Campos. Convidou jornalistas de todas as emissoras do Rio: Globo, Bandeirantes, Manchete e TV Educativa. Catorze profissionais, entre repórteres, cinegrafistas, operadores e produtores embarcaram num avião Bandeirante da TAM, que na época só fazia vôos fretados. Infelizmente, o avião chocou-se contra um morro próximo a Barra de São João. Morreram todos.

Os da Globo eram o repórter Luiz Eduardo Lobo e o cinegrafista Dario Duarte da Silva. Também estavam entre as vítimas os operadores de VT Levi Dias da Silva e Jorge Antônio Leandro. Gostaria de saber o nome dos profissionais das outras emissoras, também. Mas não tive tempo para pesquisar. Quem me informar para que eu possa homenageá-los também, agradeço.

Uma morte dessa forma abala qualquer um. E a Globo não poderia tratar de outra forma. O que ela não esperava era a perda de outra equipe em outro acidente no dia seguinte. Desta vez, na estrada. A Veraneio em que viajavam o repórter Samuel Wainer Filho e o cinegrafista Felipe Ruiz derrapou na pista molhada e bateu em uma árvore na RJ-124, altura de Rio Bonito, voltando exatamente da cobertura da morte dos colegas. Os dois também perderam a vida.

Na minha inocente infância eu não sabia nem o nome dos jornalistas. Só descobri duas décadas depois, lendo o livro “Jornal Nacional – A notícia faz história”, lançado para comemorar os 35 anos do principal jornal da emissora. Na mesma obra também descobri que o Samuel Wainer era filho do fundador do antigo jornal Última Hora com a jornalista, escritora e socialite Danuza Leão e sobrinho da cantora Nara Leão.

Lobo e Dario aparecem nos vídeos do site Memória Globo, que eu indiquei há algumas semanas. Foram eles que reforçaram a equipe liderada pelo hoje veterano André Luiz Azevedo na cobertura da polêmica greve da Companhia Siderúrgica Nacional.

Bem, o que me sensibilizou não foi exatamente a notícia da morte dos jornalistas (que eu nem conhecia. Hoje seria bem diferente) e sim a homenagem que o Jornal Nacional prestou a eles. Lembro da voz embargada do Cid Moreira (ou do Berto Filho, se estiver esquecido) anunciando a morte dos colegas. Só não me recordo para qual equipe exibiram o microfone e a câmera abandonados sobre a bancada vazia enquanto os créditos subiam em silêncio. Só tenho certeza de que foi a notícia que me marcou até hoje. E eu só tinha seis anos.

* Jornalista

sábado, 5 de julho de 2008

Roupa de festa, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Enfim sábado – falou Clarissa para si, ao despertar pela manhã.

Havia sido uma semana particularmente conturbada. Problemas no trabalho, atividades da faculdade atrasadas, carro na manutenção, tudo praticamente ao mesmo tempo. Mas estes empecilhos Clarissa, com desenvoltura, os solucionou. O que não lhe saía dos pensamentos era o fim do namoro de dois anos com o Fábio, fato ocorrido na terça-feira.

Terminaram após mais uma briga motivada pelo ciúme dele. Segundo ela, não teria mais volta. Apesar de amá-lo e dos dois dias de muito choro pelos cantos, proferia: “Vida nova daqui para frente”. E nada melhor, segundo ela, do que cair na balada para recomeçar.

Passou a tarde do sábado ligando para as suas antigas companheiras de festa. Combinaram de jantar, juntas, em uma pizzaria, e após irem a alguma casa noturna. Clarissa arrumou-se como há tempos não fazia. Colocou a sua melhor roupa, caprichou no cabelo, maquiou-se com todo o cuidado. Ficou linda! E olhando-se no espelho pela última vez, retocou o batom e rumou para a pizzaria.

Chegou ao local combinado esbanjando alegria, falando alto e distribuindo beijos e abraços, o que surpreendeu todas, pois Clarissa era conhecida entre as amigas como mulher de atos discretos, charmosa. Uma das amigas ainda comentou: “O término com o Fábio rejuvenesceu-a, amiga! Parece estar mais feliz!” Clarissa respondeu: “Capaz! É impressão sua”. E largou enorme gargalhada.

Comeram e beberam durante um bom tempo na pizzaria. Clarissa era a que mais chamava atenção na mesa, pois não parava de pedir músicas ao artista que tocava no local. Solta, livre, desimpedida, assim aparentava estar. Até ameaçou paquerar um rapaz da mesa ao lado.

Da pizzaria foram direto para a casa noturna. E lá chegando, as amigas tomaram a iniciativa de apresentá-la aos seus conhecidos. Com isso, ela tornou-se a atração da festa, tanto pela simpatia, conversas e sorrisos, como pela beleza. Clarissa sentia-se feliz, em um mundo mágico. Um mundo que há tempos não freqüentava, aparentemente perfeito.

Divertia-se aos montes. Dançava, paquerava, andava de um lado para outro da festa. Foi então que em uma dessas caminhadas, cruzou em frente à copa e lá estava ele, Fábio, escorado, a tomar um copo de uísque. Ela o ignorou. Passou e nem o cumprimentou. Se juntou às amigas e ficou, discretamente, a observá-lo de longe.

Há pessoas que quando terminam um relacionamento (e como isso não bastasse), ainda sim, necessitam vingar-se do ex. Essa vingança, muitas vezes, não passa de uma tentativa para responder as próprias incertezas. Algo como: “Será que consigo viver sem ele?” Ou provar algo: “Viu como sou feliz sem você?” E com Clarissa não foi diferente.

Ela esperou Fábio ficar a olhá-la, “retornou” esse olhar, e então, lascou um beijo no rapaz que dançava à sua frente. Beijava e olhava para Fábio. Fez isso por três vezes com três caras diferentes durante a noite. O ciumento Fábio nada fez, apenas observou, resignado.

Fim de festa. Suas amigas largaram-na em sua casa. Uma delas ainda comentou com Clarissa: “Arrasou hoje hein, gata!” Ela apenas sorriu e abanou para o carro, que se afastava. Entrou em casa silenciosamente, foi ao banheiro, tirou a roupa de festa e deitou-se na cama. E, escorada, a cabeça no travesseiro, uma lágrima escorreu...

Na solidão do quarto ela já podia chorar a falta que Fábio lhe fazia...

* Jornalista e cronista



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terça-feira, 1 de julho de 2008

Confissões sobre amores e dores, por Evelyne Furtado

Evelyne Furtado



O que me motiva falar de dores? Senti-las, apenas. Quando curo a desilusão e passo a rir desbragadamente, feliz da vida, lá vem a dor na coluna cervical, que repercute nos braços e nas mãos. Pior ainda: limita-me o prazer de escrever.

Pois bem, “lá vem Evelyne se lamentando de novo”, dirão. Mas não choro mais. Não hoje. Essa dor está sendo administrada com anti-inflamatórios fortes, receitados pelo médico especialista e não me faz chorar, apenas reclamo, pois tenho uma natureza que me leva a falar tudo que sinto.

Uma imprudência, essa compulsão, eu sei. Mas e daí? Não costumo sair agredindo pessoas com as minhas falações e quando o faço peço mil desculpas. Tia você que não me deixa mentir.

Já melhorei muito. Guardo na minha gaveta do trabalho “A Arte da Prudência”, de Baltasar Garcia, presente de Nine, minha amiga brilhante, que me conhece bem, apesar de morar longe. Pelo menos naquele ambiente eu já me contenho mais. Dei adeus aos discursos inflamados e só falo certos assuntos se não for possível conter a minha indignação.

Aqui nos meus escritos, já exaltei um amor lindo e por ele chorei cachoeiras. Aqui também danço, canto, pinto e bordo. Tudo em harmonia com o que sinto. Egocêntrica? Sou sim e não nego, mas não ao ponto de esquecer ou fechar meus olhos aos que me rodeiam e que de mim precisam. Também acaricio meu ego quando afago quem gosto.

Ainda peço que não me julguem mal. Faço psicoterapia há anos. Tento me entender todos os dias. Sei que erro mais que acerto, porém ainda preciso muito falar sobre mim e não me darei ao trabalho de fingir o contrário. A meu favor direi que é uma fase de auto-afirmação e que um dia serei tão humilde como desejo ser.

Por hora falarei de amor e de dor, sem me deixar podar pelo medo de ser rotulada de narcisista ou piegas. Sentimental eu sou. Ególatra também sou. E como disse Paulo Ludmer em seu comentário a um texto meu no Comunique-se: "Furtado, a palavra EU continua a mais pronunciada em várias línguas...”

(*) Jornalista, poetisa e cronista em Natal/RN

Confissões sobre amores e dores, por Evelyne Furtado

Evelyne Furtado



O que me motiva falar de dores? Senti-las, apenas. Quando curo a desilusão e passo a rir desbragadamente, feliz da vida, lá vem a dor na coluna cervical, que repercute nos braços e nas mãos. Pior ainda: limita-me o prazer de escrever.

Pois bem, “lá vem Evelyne se lamentando de novo”, dirão. Mas não choro mais. Não hoje. Essa dor está sendo administrada com anti-inflamatórios fortes, receitados pelo médico especialista e não me faz chorar, apenas reclamo, pois tenho uma natureza que me leva a falar tudo que sinto.

Uma imprudência, essa compulsão, eu sei. Mas e daí? Não costumo sair agredindo pessoas com as minhas falações e quando o faço peço mil desculpas. Tia você que não me deixa mentir.

Já melhorei muito. Guardo na minha gaveta do trabalho “A Arte da Prudência”, de Baltasar Garcia, presente de Nine, minha amiga brilhante, que me conhece bem, apesar de morar longe. Pelo menos naquele ambiente eu já me contenho mais. Dei adeus aos discursos inflamados e só falo certos assuntos se não for possível conter a minha indignação.

Aqui nos meus escritos, já exaltei um amor lindo e por ele chorei cachoeiras. Aqui também danço, canto, pinto e bordo. Tudo em harmonia com o que sinto. Egocêntrica? Sou sim e não nego, mas não ao ponto de esquecer ou fechar meus olhos aos que me rodeiam e que de mim precisam. Também acaricio meu ego quando afago quem gosto.

Ainda peço que não me julguem mal. Faço psicoterapia há anos. Tento me entender todos os dias. Sei que erro mais que acerto, porém ainda preciso muito falar sobre mim e não me darei ao trabalho de fingir o contrário. A meu favor direi que é uma fase de auto-afirmação e que um dia serei tão humilde como desejo ser.

Por hora falarei de amor e de dor, sem me deixar podar pelo medo de ser rotulada de narcisista ou piegas. Sentimental eu sou. Ególatra também sou. E como disse Paulo Ludmer em seu comentário a um texto meu no Comunique-se: "Furtado, a palavra EU continua a mais pronunciada em várias línguas...”

(*) Jornalista, poetisa e cronista em Natal/RN