quarta-feira, 16 de julho de 2008

Da janela vê-se a eternidade, por Eduardo Murta

Eduardo Murta(*)



A vida de Godofredo estava por um fio. Não era a primeira vez, mas o episódio desta manhã sugeria uma gravidade ausente nos outros acontecimentos. Só sugeria, porque ele, e ninguém mais, é quem bem sabia da coleção de circunstâncias em que o odor da morte bafejara-lhe do calcanhar ao espírito. E escapara ileso. Se agora parecia diferente, se resumia aos olhos dos outros.

Foi assim que um vizinho, apartamento de frente, deu o alarme. Ponteiros em 6h15, estágio ainda de cobertas, flagrou Godofredo emparedado à marquise do prédio. Corpo franzino. Soava triste. Sem saída. Um “ai, meu Deus, ele vai cair do vigésimo-terceiro andar” alertou bombeiros e despertou a família. Num segundo, Vó Felícia, Nina, pijama à 14 anos, e Joana, camisola cinqüentona, eram síntese de pavor aos janelões do edifício.

Seguro que não haviam se definhado tanto em choro e desespero em toda sua existência. Que não esperasse, a platéia, reação fria codificada em manuais de emergência. Os gritos, percebam os ecos, eram ouvidos lá de baixo, onde cordão de curiosos foi se juntando aos sinais mornos de sirene. E, desgraça alheia, em instantes surgiu o bolão de apostas: se corpo no asfalto, se bendito salvamento.

Para a gente da casa, era dor que régua e compasso algum mediriam. Nina se dissolvendo em espasmos de pranto, vó intercalando apelos sedosos a súplicas doídas, e Joana, silêncio circunspeto, na fé de que, ele deixando os olhares se cruzarem, caminharia para seus braços. Godofredo ali, impassível, indiferente. Lembrava estatuetas de porcelana.

Esboçou o primeiro movimento em direção à família à voz da menina lhe invocando. Torceu a cabeça, giro manso, e não foi além disso. Repetiu o gesto, porém – o pânico em tom mais grave – dividindo aquelas miradas longas com o curso que o separava do parapeito ao ponto final, lá embaixo. Tão-somente contemplava, sem emitir ruído sequer, sem esboçar pedido de socorro. A garota implorando que compreendesse, que reconhecia suas crises de adolescente (quantas vezes o jogara às paredes, explosiva)...

Soluços entrecortando a fala, Joana viu remédio na emoção. E descreveu o dia em que fora acolhido entre eles. Órfão. Tinha perto da mesma idade de Nina. As fotos registravam. Estava lá: bebezinhos lado a lado. A seu modo, em carícias mútuas. Até cama haviam dividido. E, zelo infantil, precocidade maternal, ela crescera prometendo protegê-lo como a um filho. O chamou por uma, duas, sete vezes. Sem resposta.

Um assombro trespassou-lhe o coração no instante em que campainha e vozerio de bombeiros quebraram o que ela pressupunha como uma chance de diálogo. Sugeriram calma, foram tomando os pontos estratégicos, paramentados. Planos milimetricamente traçados. Um deslize e tudo se perderia. No cuidado essencial, a que não emprestassem a Godofredo sensação de encurralamento, pediram à família que o mantivesse sereno.

As ações foram sincronizadas. A rede, os homens em corda se lançando do andar superior. O corpo agora no vazio. Os gritos. A dúvida. O alívio. Estava salvo. Vó Felícia, Nina e Joana lhe abraçando, todas num pranteado trôpego, quase a moer-lhe os ossos. Sob a súplica de que jurasse que nunca, nunca mais aquilo se daria. Lambeu o primeiro nariz que lhe apareceu à frente. Não tinha como prometer, claro. Porque vida de gatos, aprendera desde os primeiros miados, valeriam um quase nada se não estivessem o tempo todo por um fio. No limite da existência.

(*) Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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