Era pó, mas sangrou-lhe o destino, por Eduardo Murta
Eduardo Murta (*)
Há um odor furtivo de sangue marejando às memórias de Jurema. Num vaivém de quem jamais soubera, ao certo, se tinha mais medo de viver ou de morrer. Menina ainda, topara com aquele sentimento ambíguo: o de que lhe faltava luz nesse plano terreno, mas sob a torta convicção de que a escuridão, para além desses muros, seria assustadora. Assim, o tanto que lhe minguava em coragem para resistir era a mesma medida do temor em desconectar-se de vez do mundo.
Talvez tenha nascido aí o fascínio – ou a entrega – pelas experiências que invariavelmente roçavam o limite. Aos 12, ter-se inscrito e sido aceita no papel de tratadora oficial de leões e tigres do zoológico local. Há os que não creem, mas dela se conta passeando nas jaulas, acarinhando os animais. Detalhes preciosos: olhos fechados, e cantando canções de Natal, inda que Carnaval fosse.
Dois anos de ofício, nenhum arranhão sequer, e se convertera em fenômeno nacional. Mais tarde, em caso mundial. E a exposição meteórica, no fundo, lhe embrulhava o estômago. Como a revelasse nua, expusesse fraquezas. Foi se afastando e, numa tarde despretensiosa, partiu sem deixar rastros. Difícil seria resistir a qualquer coisa que desafiasse os manuais de sobrevivência.
Não é que Jurema, o corpo moreno já tomando formas de mulher, se pôs em maiô com lantejoulas para virar atração em circo mambembe! Cinco segundos de suspense, os tambores rufando, e os holofotes ao picadeiro. Vejam ela cruzar, em sombrinha cor de rosa, os 50 metros de corda bamba. Nenhuma rede de proteção abaixo.
Breve haveria morte. De outros, tragados em pura ansiedade. Duas doninhas, um velhinho e até um menino fraquejariam de coração, ela de ponta cabeça, uma só mão no apoio. Foi o bastante a que suspendesse as sessões e se recolhesse ao banzo do isolamento. Durou pouco. Logo estaria serpenteando de novo o fio da navalha: agora no papel de garota do atirador de facas. Um homem cego.
Ambrósio, mestre nos sentidos que lhe restavam intactos, se guiava pelo som da cabeleira de Jurema cortando o vento, fixada à tábua giratória. E pelo perfume lhe exalando aos poros juvenis. Aroma rascante. Lançava, e as lâminas se cravavam a milímetros da orelha, a um dedo da axila esquerda.
Naquela noite, os cenários em preparação, lhe visitou um súbito sentimento de que era hora de pôr ponto final àquilo. Hesitou uma vez mais entre fugir ou mergulhar nos vãos em que só vislumbrava trevas. Foi ao palco careca. Desperfumada. Desarmou as bússolas de Ambrósio. Ele, sem chão, relutou. Suspirou. Mas não desistiu. Fez sete disparos mais que às cegas. Errou. Melhor: acertou. Só um sangue breve à têmpora direita, de raspão e nada além.
Golpeara em cheio o medo cristalizado em Jurema. Resumira dilemas a pó, em iluminada catarse. Ela chora ao lembrar, e a meninada gargalha, ao ouvir-lhe a história como voluntária na ala de pacientes terminais. Aos 113 anos, tudo lhe soando claro, absoluto. Era mulher definitivamente condenada a viver.
(*) Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
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