Talis Andrade (*)
Amo as mulheres que veneram
a beleza das deusas
Repugna a formosura
das coquetes
que todos tocam
com as mãos andejas
Amo o encanto a magia
da imperceptível beleza
que muitas vezes
só uma mulher
pressente e almeja
(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).
(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite, Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).
segunda-feira, 30 de março de 2009
quarta-feira, 25 de março de 2009
Uma página de Rubem Braga, por Evelyne Furtado
Evelyne Furtado (*)
Ivo viu a uva. Ele viu a viúva. Viu e escreveu sobre a viúva em maiô preto com seu filho na praia. Ele também observou o homem nadando. Ele via e descrevia a vida como poucos.
Rubem Braga "será", segundo Millôr Fernandes, "um dos cinco melhores escritores brasileiros do futuro". A frase está na sua página da revista Veja de janeiro último. Braga morreu em 1990.
Com esse aparente anacronismo o mestre Millôr aponta, ao meu ver, a injustiça cometida contra o escritor capixaba, simplesmente por ele ter escolhido a crônica como forma de expressão literária.
Preconceito bobo como a maioria dos preconceitos é, pois Rubem Braga falava do cotidiano com raro lirismo em tom corriqueiro e fluente.
Foi grande exatamente por não ser rebuscado, afinal, quem usa muitos adornos dá a impressão de querer preencher com palavras a falta de conteúdo. Braga não precisava de tais adereços.
Conheci Rubem Braga na coleção “Para Gostar de Ler” na companhia de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Drummond e Otto Lara Rezende. Um cuidado de pai para a filha que já gostava de ler, mas que lia qualquer coisa que lhe caísse às mãos.
Assim, fui conhecendo Cahoreiro de Itapemerim, o Rio de Janeiro de outra época (como já havia feito com Machado), o mar, o menino e o passarinho.
Retornei a Braga, através da observação de Millôr. Encontrei “A Viajante” um terno recado em crônica. Um aviso poético. Uma página somente, mas onde se vê o grande escritor que escolheu o gênero que lhe caiu muitíssimo bem.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
Ivo viu a uva. Ele viu a viúva. Viu e escreveu sobre a viúva em maiô preto com seu filho na praia. Ele também observou o homem nadando. Ele via e descrevia a vida como poucos.
Rubem Braga "será", segundo Millôr Fernandes, "um dos cinco melhores escritores brasileiros do futuro". A frase está na sua página da revista Veja de janeiro último. Braga morreu em 1990.
Com esse aparente anacronismo o mestre Millôr aponta, ao meu ver, a injustiça cometida contra o escritor capixaba, simplesmente por ele ter escolhido a crônica como forma de expressão literária.
Preconceito bobo como a maioria dos preconceitos é, pois Rubem Braga falava do cotidiano com raro lirismo em tom corriqueiro e fluente.
Foi grande exatamente por não ser rebuscado, afinal, quem usa muitos adornos dá a impressão de querer preencher com palavras a falta de conteúdo. Braga não precisava de tais adereços.
Conheci Rubem Braga na coleção “Para Gostar de Ler” na companhia de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Drummond e Otto Lara Rezende. Um cuidado de pai para a filha que já gostava de ler, mas que lia qualquer coisa que lhe caísse às mãos.
Assim, fui conhecendo Cahoreiro de Itapemerim, o Rio de Janeiro de outra época (como já havia feito com Machado), o mar, o menino e o passarinho.
Retornei a Braga, através da observação de Millôr. Encontrei “A Viajante” um terno recado em crônica. Um aviso poético. Uma página somente, mas onde se vê o grande escritor que escolheu o gênero que lhe caiu muitíssimo bem.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
segunda-feira, 23 de março de 2009
Outono, por Solange Sólon Borges
Solange Sólon Borges (*)
Caem as folhas secas no chão irregularmente,/
Mas o fato é que sempre é outono no outono,/
E o inverno vem depois fatalmente...
Fernando Pessoa
As flores vestem cores enganosas. Somente com a luz clara do verão ou da primavera é possível vê-las na totalidade. O que o outono me consente? O branco do fim da tarde avisa sobre o vazio próximo, o inverno, e ele chega de vez, como se diante das intermitências das nuvens todo um universo alicerçado em detalhes pudesse ruir. O branco interior reflete minhas memórias encobertas por pátina, tempos que subsistem em mim, teias ocultas, alma suspensa nesse suave retiro. No inverno não sei dizer nada; no outono ainda sussurro.
Passeio nas últimas horas do dia para ver a noite surgir com seus arminhos feéricos. Azulmente. Há uma plumagem aérea que purifica uma ou outra palavra, e me desenrolo em versos, que enfeitam os cantos desdobrados do meu quarto.
É minha estação de quietude, de teias de aranha no alto do sonhos, quando aparo arestas íntimas, na estagnação lenta dos hábitos que terá seu ápice em dias estranhamente frios. Embarco em mim, em interiores onde nada se macula. Um Sol tímido arde nas janelas reverberando as chamas tênues do fogo e essa suavidade me preenche com promessas.
Meu amado soluciona com habilidade problemas matemáticos, mas não há como me alcançar com álgebras. Então, segura minhas mãos pequenas para que eu tenha a certeza dos poentes e das portas abertas. Não sou náufraga e faço uma amável viagem. Estou bem, informo, é só o rito de passagem para que o que é voraz se aquiete e o que é excessivo silêncio se nomeie. Quando sair dessa época de sombras irregulares serei esplendente, nascente entre sóis invisíveis, amor ressuscitado, intervalo de sedas...
(*) Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.
Caem as folhas secas no chão irregularmente,/
Mas o fato é que sempre é outono no outono,/
E o inverno vem depois fatalmente...
Fernando Pessoa
As flores vestem cores enganosas. Somente com a luz clara do verão ou da primavera é possível vê-las na totalidade. O que o outono me consente? O branco do fim da tarde avisa sobre o vazio próximo, o inverno, e ele chega de vez, como se diante das intermitências das nuvens todo um universo alicerçado em detalhes pudesse ruir. O branco interior reflete minhas memórias encobertas por pátina, tempos que subsistem em mim, teias ocultas, alma suspensa nesse suave retiro. No inverno não sei dizer nada; no outono ainda sussurro.
Passeio nas últimas horas do dia para ver a noite surgir com seus arminhos feéricos. Azulmente. Há uma plumagem aérea que purifica uma ou outra palavra, e me desenrolo em versos, que enfeitam os cantos desdobrados do meu quarto.
É minha estação de quietude, de teias de aranha no alto do sonhos, quando aparo arestas íntimas, na estagnação lenta dos hábitos que terá seu ápice em dias estranhamente frios. Embarco em mim, em interiores onde nada se macula. Um Sol tímido arde nas janelas reverberando as chamas tênues do fogo e essa suavidade me preenche com promessas.
Meu amado soluciona com habilidade problemas matemáticos, mas não há como me alcançar com álgebras. Então, segura minhas mãos pequenas para que eu tenha a certeza dos poentes e das portas abertas. Não sou náufraga e faço uma amável viagem. Estou bem, informo, é só o rito de passagem para que o que é voraz se aquiete e o que é excessivo silêncio se nomeie. Quando sair dessa época de sombras irregulares serei esplendente, nascente entre sóis invisíveis, amor ressuscitado, intervalo de sedas...
(*) Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.
terça-feira, 17 de março de 2009
Viver acima de tudo, por Juliano Luís Pereira Sanches
Juliano Luís Pereira Sanches (*)
Me fizeram analfabeto
Não me entreguei
Tornei-me amigo do alfabeto
Deles me retirei
Me puseram no olho do furação
Não me entreguei
Me libertei com a minha mão
Não me derrotei
Tacaram pedra no meu olho
Não me entreguei
Não me fiz piolho
Me limpei
Me jogaram no chão
Não me entreguei
O corpo aguenta o turbilhão
Ressuscitei
Quiseram me jogar na rua
Não me entreguei
A vida continua
Vencerei
Me fizeram comer poeira
Não me entreguei
Levantei da eira
Superei
Me puseram na estrada
Não me entreguei
Aqui eu fico
Aqui eu morrerei
Me fizeram morto
Não me entreguei
Deixei meu corpo
Continuei
(*) Jornalista, folclorista e poeta de Campinas. Foi repórter de assuntos gerais nos programas Sexta Cultural, Fractal, Jornal da Educativa e Bom Dia Campinas, da Rádio Educativa FM 101.9 (www.campinas.sp.gov.br). Atualmente, é apresentador, repórter e produtor do programa de jornalismo educativo Ponto & Vírgula da Rádio Educativa em parceria com a Secretaria de Educação de Campinas. Colaborador do Portal Sorocult (www.sorocult.com), e colunista do Jornalzen (www.jornalzen.com.br), de Campinas.
Me fizeram analfabeto
Não me entreguei
Tornei-me amigo do alfabeto
Deles me retirei
Me puseram no olho do furação
Não me entreguei
Me libertei com a minha mão
Não me derrotei
Tacaram pedra no meu olho
Não me entreguei
Não me fiz piolho
Me limpei
Me jogaram no chão
Não me entreguei
O corpo aguenta o turbilhão
Ressuscitei
Quiseram me jogar na rua
Não me entreguei
A vida continua
Vencerei
Me fizeram comer poeira
Não me entreguei
Levantei da eira
Superei
Me puseram na estrada
Não me entreguei
Aqui eu fico
Aqui eu morrerei
Me fizeram morto
Não me entreguei
Deixei meu corpo
Continuei
(*) Jornalista, folclorista e poeta de Campinas. Foi repórter de assuntos gerais nos programas Sexta Cultural, Fractal, Jornal da Educativa e Bom Dia Campinas, da Rádio Educativa FM 101.9 (www.campinas.sp.gov.br). Atualmente, é apresentador, repórter e produtor do programa de jornalismo educativo Ponto & Vírgula da Rádio Educativa em parceria com a Secretaria de Educação de Campinas. Colaborador do Portal Sorocult (www.sorocult.com), e colunista do Jornalzen (www.jornalzen.com.br), de Campinas.
segunda-feira, 9 de março de 2009
O milagre, por Fábio de Lima
Fábio de Lima (*)
Veja bem, Maria. Aqui na rua de trás da minha rua mora uma benzedeira. Você até sabe, mas é preciso saber mais. Ela é cega de um olho e enxerga mal com o outro. O nome dela é Dona Rosa. Ela é surda de um ouvido e não escuta bem com o outro. A pele dela é negra. O cabelo é cinza. Dona Rosa deve ter uns 90 anos, mas ninguém sabe a idade dela não.
Veja bem, Maria. Todos os dias na casa de Dona Rosa algumas pessoas entram e algumas pessoas saem. Uns vão até lá andando e outros param seus carros de luxo em sua porta. Ela trata qualquer um do mesmo jeito. A perna esquerda não tem lá muita força. A direita também não é lá muito firme. Mas com uma bengala, de cabo de vassoura, Dona Rosa anda com seus passos curtos por aí.
Veja bem, Maria. A vida de Dona Rosa é ajudar os outros. E isso ela faz quando o sol esquenta. E isso ela faz quando a chuva esfria. E isso Dona Rosa faz desde criança. Dizem os mais velhos que ela benze as pessoas desde que tinha 11 anos de idade. Eu não duvido. Eu mesmo quando tinha uns 7 ou 8 anos fui benzido por Dona Rosa pela primeira vez. E agora já estou com 53 anos, o que dá credito para o que o povo diz.
Veja bem, Maria. Nesse bairro onde vivo não tem uma alma viva ou morta que não conheça Dona Rosa. Ela nunca quis casar. Falam que ela nunca nem namorou. Alguns dizem que ela é santa. Há também quem diga que ela é o próprio capeta. Dona Rosa conversa sozinha, diz que vê pessoas mortas do mesmo jeito que vê as vivas. Ela tem poucos dentes na boca. Ela tem umas unhas grandes. Ela cheira a perfume de rosas qualquer hora do dia.
Veja bem, Maria. Você bem sabe que sou muito observador. Não é por acaso que desde muito novo virei escritor. E sabe também que eu não sou de acreditar no que os outros falam. Sendo assim, mesmo vivendo perto de Dona Rosa eu nunca escrevi sobre ela, porque não tinha certeza se devia falar bem ou mal da velha. Eu não sabia e ainda não sei. Hoje abro uma exceção, mas já vou, em breve, lhe dizer o motivo.
Veja bem, Maria. Ontem à noite eu estava aqui em cima dessa cama e não sei precisar o horário. Talvez meia-noite. Talvez uma da manhã. Talvez duas da manhã. Não sei. Mas, de repente, uma pessoa entrou pela porta de meu quarto sem bater, sem fazer barulho e, digo pra você, sem nem abrir a porta. Eu, medroso que sempre fui, fiquei todo arrepiado, mais que assustado e, com o perdão da palavra: caguei, me caguei todo.
Veja bem, Maria. Eu fechei os olhos para me esconder do medo. Depois abri eles para limpar meu medo. Então, fechei eles de novo e gritei por Deus. Quando abri de novo os olhos a pessoa ainda estava ali. Só aí que reconheci aquele rosto sofrido e aquele corpo franzino. A pessoa era Dona Rosa que segurava uns pedaços de plantas nas mãos e falava, baixinho, palavras que eu não entendia.
Veja bem, Maria. Eu controlando meu medo perguntei o que Dona Rosa fazia ali. Mas a velha não me respondeu. Ela sorriu seu sorriso desdentado e continuou seu ritual. Depois de uns três minutos que eu, entre lágrimas e perguntas sem respostas, fiquei imóvel, pra variar, nessa mesma cama, Dona Rosa firmou-se em sua bengala e foi embora, a passos curtos, do mesmo modo que chegou.
Veja bem, Maria. Mais que nenhuma outra pessoa você sabe minha peleja com a vida. Eu que sempre fui um homem comum até meus 23 anos. Eu que procurei entender e aceitar tanta coisa, embora meu sofrimento nunca me deixou certezas. Dona Rosa partiu e eu, cheirando a merda, precisava de alguma forma me limpar. Eu que tantas vezes precisei de ajuda, fosse no clarão do dia ou fosse na escuridão da noite.
Veja bem, Maria. Dona Rosa em meu quarto caminhando no escuro, passando através da porta, era o impossível. Então, diante da certeza de aquilo não ser um sonho, eu pensei que o impossível estava no meu quarto àquela noite. Fiz força, fiz muita força e fiz mais força ainda. Meu corpo se moveu lentamente e os movimentos dele foram de acordo com minhas vontades. Maria, Maria, Maria – bestificado fiquei quando depois de 30 anos paralisado nessa cama, eu, sozinho, me levantei.
Veja bem, Maria. Estou me levantando na sua frente agora. Veja bem, Maria. Eu estou de pé. Veja bem, Maria. Eu estou andando. Veja bem, Maria. Você se lembra quando foi a última vez que eu havia andado? Fazia tempo, né? Dê-me sua mão e vamos juntos, agora, à casa de Dona Rosa. Veja bem, Maria. Eu nunca acreditei em milagres. Nunca. Mas, de agora em diante, jamais poderei negar a mim mesmo.
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
Veja bem, Maria. Aqui na rua de trás da minha rua mora uma benzedeira. Você até sabe, mas é preciso saber mais. Ela é cega de um olho e enxerga mal com o outro. O nome dela é Dona Rosa. Ela é surda de um ouvido e não escuta bem com o outro. A pele dela é negra. O cabelo é cinza. Dona Rosa deve ter uns 90 anos, mas ninguém sabe a idade dela não.
Veja bem, Maria. Todos os dias na casa de Dona Rosa algumas pessoas entram e algumas pessoas saem. Uns vão até lá andando e outros param seus carros de luxo em sua porta. Ela trata qualquer um do mesmo jeito. A perna esquerda não tem lá muita força. A direita também não é lá muito firme. Mas com uma bengala, de cabo de vassoura, Dona Rosa anda com seus passos curtos por aí.
Veja bem, Maria. A vida de Dona Rosa é ajudar os outros. E isso ela faz quando o sol esquenta. E isso ela faz quando a chuva esfria. E isso Dona Rosa faz desde criança. Dizem os mais velhos que ela benze as pessoas desde que tinha 11 anos de idade. Eu não duvido. Eu mesmo quando tinha uns 7 ou 8 anos fui benzido por Dona Rosa pela primeira vez. E agora já estou com 53 anos, o que dá credito para o que o povo diz.
Veja bem, Maria. Nesse bairro onde vivo não tem uma alma viva ou morta que não conheça Dona Rosa. Ela nunca quis casar. Falam que ela nunca nem namorou. Alguns dizem que ela é santa. Há também quem diga que ela é o próprio capeta. Dona Rosa conversa sozinha, diz que vê pessoas mortas do mesmo jeito que vê as vivas. Ela tem poucos dentes na boca. Ela tem umas unhas grandes. Ela cheira a perfume de rosas qualquer hora do dia.
Veja bem, Maria. Você bem sabe que sou muito observador. Não é por acaso que desde muito novo virei escritor. E sabe também que eu não sou de acreditar no que os outros falam. Sendo assim, mesmo vivendo perto de Dona Rosa eu nunca escrevi sobre ela, porque não tinha certeza se devia falar bem ou mal da velha. Eu não sabia e ainda não sei. Hoje abro uma exceção, mas já vou, em breve, lhe dizer o motivo.
Veja bem, Maria. Ontem à noite eu estava aqui em cima dessa cama e não sei precisar o horário. Talvez meia-noite. Talvez uma da manhã. Talvez duas da manhã. Não sei. Mas, de repente, uma pessoa entrou pela porta de meu quarto sem bater, sem fazer barulho e, digo pra você, sem nem abrir a porta. Eu, medroso que sempre fui, fiquei todo arrepiado, mais que assustado e, com o perdão da palavra: caguei, me caguei todo.
Veja bem, Maria. Eu fechei os olhos para me esconder do medo. Depois abri eles para limpar meu medo. Então, fechei eles de novo e gritei por Deus. Quando abri de novo os olhos a pessoa ainda estava ali. Só aí que reconheci aquele rosto sofrido e aquele corpo franzino. A pessoa era Dona Rosa que segurava uns pedaços de plantas nas mãos e falava, baixinho, palavras que eu não entendia.
Veja bem, Maria. Eu controlando meu medo perguntei o que Dona Rosa fazia ali. Mas a velha não me respondeu. Ela sorriu seu sorriso desdentado e continuou seu ritual. Depois de uns três minutos que eu, entre lágrimas e perguntas sem respostas, fiquei imóvel, pra variar, nessa mesma cama, Dona Rosa firmou-se em sua bengala e foi embora, a passos curtos, do mesmo modo que chegou.
Veja bem, Maria. Mais que nenhuma outra pessoa você sabe minha peleja com a vida. Eu que sempre fui um homem comum até meus 23 anos. Eu que procurei entender e aceitar tanta coisa, embora meu sofrimento nunca me deixou certezas. Dona Rosa partiu e eu, cheirando a merda, precisava de alguma forma me limpar. Eu que tantas vezes precisei de ajuda, fosse no clarão do dia ou fosse na escuridão da noite.
Veja bem, Maria. Dona Rosa em meu quarto caminhando no escuro, passando através da porta, era o impossível. Então, diante da certeza de aquilo não ser um sonho, eu pensei que o impossível estava no meu quarto àquela noite. Fiz força, fiz muita força e fiz mais força ainda. Meu corpo se moveu lentamente e os movimentos dele foram de acordo com minhas vontades. Maria, Maria, Maria – bestificado fiquei quando depois de 30 anos paralisado nessa cama, eu, sozinho, me levantei.
Veja bem, Maria. Estou me levantando na sua frente agora. Veja bem, Maria. Eu estou de pé. Veja bem, Maria. Eu estou andando. Veja bem, Maria. Você se lembra quando foi a última vez que eu havia andado? Fazia tempo, né? Dê-me sua mão e vamos juntos, agora, à casa de Dona Rosa. Veja bem, Maria. Eu nunca acreditei em milagres. Nunca. Mas, de agora em diante, jamais poderei negar a mim mesmo.
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
terça-feira, 3 de março de 2009
O Poeta, a Musa e a Ilusão, por Evelyne Furtado
Evelyne Furtado (*)
O texto estava lá. Identificado o autor, começou a leitura com a ansiedade de sempre. Deslizou os olhos seduzidos pelas frases bem construídas e se buscou naquelas linhas. Todo leitor busca uma identificação na obra que lê e ela, à medida que admirava a beleza estética da prosa, sentia o texto escapar de si.
A expectadora aplaudia o espetáculo, a mulher lamentava o ato que se desenvolvia à sua frente. A alma apequenava-se e mostrava-se ciumenta. Acostumara-se a ser musa e gostava de se imaginar única. Era dada a fantasiar e ele estimulara seus devaneios.
Onde se escondiam seus traços no retrato impressionista? Persistiu na leitura, encontrou uma flor rebelde e o seu coração ganhou ânimo. O poema era seu. O poeta o escrevera para ela. E havia sinais de amor. Enfim, em meio à bruma, revelava-se uma imagem conhecida. A imagem de um amor bonito, penoso e resistente.
Entregou-se ao calor que acompanhava qualquer contato com ele, o seu poeta. O olhar do poeta acalmava e incendiava, conforme o momento. Sua boca emitia prazer em sons e em toques. Ela preservava cada centímetro de si para ele. Apegava-se aos delírios idílicos; para não enterrar o amor que a fazia vibrar. Porém, a alegria momentânea começou a perder terreno e a apreensão assaltou sua alma inquieta.
O poeta parecia se despedir. Confessava desconfiança; fechava a janela à paisagem tantas vezes idealizada; demolia o futuro. A leitora prendeu a respiração. Faltaram-lhe o ar e o chão. Faltou-lhe vida, ainda que por segundos. Mente e corpo envolviam-se num emaranhado de sensações: onde o sol antes aquecia, ora o gelo queimava, ardia.
Alimentara-se das promessas declamadas. Quisera dar vida ao poema e fora insistente nisso. Acreditara em qualquer aceno vindo do outro lado da janela e não era tarefa fácil enfrentar a dor, pois morava uma menina naquela mulher que lia o amor. A mulher impedia a menina de crescer, protegendo-a da vida real. A menina continuava a correr da rejeição; a mulher encontrara no poeta seu fiel guardião.
Agora em pânico, antevia a sombra de o desamor alcançar sua menina. Num ímpeto, a mulher fechou a janela. Fugiria. Não era hora da menina sofrer. Não poderia aceitar, necessitava do amor, precisava sonhar. Vestiu um jeans, subiu em um scarpin, pôs brilho nos lábios e acentuou o negro dos olhos. Disfarçaria a tristeza, enganaria o coração. Iria ao cinema; trocaria a matriz da ilusão.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
O texto estava lá. Identificado o autor, começou a leitura com a ansiedade de sempre. Deslizou os olhos seduzidos pelas frases bem construídas e se buscou naquelas linhas. Todo leitor busca uma identificação na obra que lê e ela, à medida que admirava a beleza estética da prosa, sentia o texto escapar de si.
A expectadora aplaudia o espetáculo, a mulher lamentava o ato que se desenvolvia à sua frente. A alma apequenava-se e mostrava-se ciumenta. Acostumara-se a ser musa e gostava de se imaginar única. Era dada a fantasiar e ele estimulara seus devaneios.
Onde se escondiam seus traços no retrato impressionista? Persistiu na leitura, encontrou uma flor rebelde e o seu coração ganhou ânimo. O poema era seu. O poeta o escrevera para ela. E havia sinais de amor. Enfim, em meio à bruma, revelava-se uma imagem conhecida. A imagem de um amor bonito, penoso e resistente.
Entregou-se ao calor que acompanhava qualquer contato com ele, o seu poeta. O olhar do poeta acalmava e incendiava, conforme o momento. Sua boca emitia prazer em sons e em toques. Ela preservava cada centímetro de si para ele. Apegava-se aos delírios idílicos; para não enterrar o amor que a fazia vibrar. Porém, a alegria momentânea começou a perder terreno e a apreensão assaltou sua alma inquieta.
O poeta parecia se despedir. Confessava desconfiança; fechava a janela à paisagem tantas vezes idealizada; demolia o futuro. A leitora prendeu a respiração. Faltaram-lhe o ar e o chão. Faltou-lhe vida, ainda que por segundos. Mente e corpo envolviam-se num emaranhado de sensações: onde o sol antes aquecia, ora o gelo queimava, ardia.
Alimentara-se das promessas declamadas. Quisera dar vida ao poema e fora insistente nisso. Acreditara em qualquer aceno vindo do outro lado da janela e não era tarefa fácil enfrentar a dor, pois morava uma menina naquela mulher que lia o amor. A mulher impedia a menina de crescer, protegendo-a da vida real. A menina continuava a correr da rejeição; a mulher encontrara no poeta seu fiel guardião.
Agora em pânico, antevia a sombra de o desamor alcançar sua menina. Num ímpeto, a mulher fechou a janela. Fugiria. Não era hora da menina sofrer. Não poderia aceitar, necessitava do amor, precisava sonhar. Vestiu um jeans, subiu em um scarpin, pôs brilho nos lábios e acentuou o negro dos olhos. Disfarçaria a tristeza, enganaria o coração. Iria ao cinema; trocaria a matriz da ilusão.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
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