segunda-feira, 9 de março de 2009

O milagre, por Fábio de Lima

Fábio de Lima (*)



Veja bem, Maria. Aqui na rua de trás da minha rua mora uma benzedeira. Você até sabe, mas é preciso saber mais. Ela é cega de um olho e enxerga mal com o outro. O nome dela é Dona Rosa. Ela é surda de um ouvido e não escuta bem com o outro. A pele dela é negra. O cabelo é cinza. Dona Rosa deve ter uns 90 anos, mas ninguém sabe a idade dela não.

Veja bem, Maria. Todos os dias na casa de Dona Rosa algumas pessoas entram e algumas pessoas saem. Uns vão até lá andando e outros param seus carros de luxo em sua porta. Ela trata qualquer um do mesmo jeito. A perna esquerda não tem lá muita força. A direita também não é lá muito firme. Mas com uma bengala, de cabo de vassoura, Dona Rosa anda com seus passos curtos por aí.

Veja bem, Maria. A vida de Dona Rosa é ajudar os outros. E isso ela faz quando o sol esquenta. E isso ela faz quando a chuva esfria. E isso Dona Rosa faz desde criança. Dizem os mais velhos que ela benze as pessoas desde que tinha 11 anos de idade. Eu não duvido. Eu mesmo quando tinha uns 7 ou 8 anos fui benzido por Dona Rosa pela primeira vez. E agora já estou com 53 anos, o que dá credito para o que o povo diz.

Veja bem, Maria. Nesse bairro onde vivo não tem uma alma viva ou morta que não conheça Dona Rosa. Ela nunca quis casar. Falam que ela nunca nem namorou. Alguns dizem que ela é santa. Há também quem diga que ela é o próprio capeta. Dona Rosa conversa sozinha, diz que vê pessoas mortas do mesmo jeito que vê as vivas. Ela tem poucos dentes na boca. Ela tem umas unhas grandes. Ela cheira a perfume de rosas qualquer hora do dia.

Veja bem, Maria. Você bem sabe que sou muito observador. Não é por acaso que desde muito novo virei escritor. E sabe também que eu não sou de acreditar no que os outros falam. Sendo assim, mesmo vivendo perto de Dona Rosa eu nunca escrevi sobre ela, porque não tinha certeza se devia falar bem ou mal da velha. Eu não sabia e ainda não sei. Hoje abro uma exceção, mas já vou, em breve, lhe dizer o motivo.

Veja bem, Maria. Ontem à noite eu estava aqui em cima dessa cama e não sei precisar o horário. Talvez meia-noite. Talvez uma da manhã. Talvez duas da manhã. Não sei. Mas, de repente, uma pessoa entrou pela porta de meu quarto sem bater, sem fazer barulho e, digo pra você, sem nem abrir a porta. Eu, medroso que sempre fui, fiquei todo arrepiado, mais que assustado e, com o perdão da palavra: caguei, me caguei todo.

Veja bem, Maria. Eu fechei os olhos para me esconder do medo. Depois abri eles para limpar meu medo. Então, fechei eles de novo e gritei por Deus. Quando abri de novo os olhos a pessoa ainda estava ali. Só aí que reconheci aquele rosto sofrido e aquele corpo franzino. A pessoa era Dona Rosa que segurava uns pedaços de plantas nas mãos e falava, baixinho, palavras que eu não entendia.

Veja bem, Maria. Eu controlando meu medo perguntei o que Dona Rosa fazia ali. Mas a velha não me respondeu. Ela sorriu seu sorriso desdentado e continuou seu ritual. Depois de uns três minutos que eu, entre lágrimas e perguntas sem respostas, fiquei imóvel, pra variar, nessa mesma cama, Dona Rosa firmou-se em sua bengala e foi embora, a passos curtos, do mesmo modo que chegou.

Veja bem, Maria. Mais que nenhuma outra pessoa você sabe minha peleja com a vida. Eu que sempre fui um homem comum até meus 23 anos. Eu que procurei entender e aceitar tanta coisa, embora meu sofrimento nunca me deixou certezas. Dona Rosa partiu e eu, cheirando a merda, precisava de alguma forma me limpar. Eu que tantas vezes precisei de ajuda, fosse no clarão do dia ou fosse na escuridão da noite.

Veja bem, Maria. Dona Rosa em meu quarto caminhando no escuro, passando através da porta, era o impossível. Então, diante da certeza de aquilo não ser um sonho, eu pensei que o impossível estava no meu quarto àquela noite. Fiz força, fiz muita força e fiz mais força ainda. Meu corpo se moveu lentamente e os movimentos dele foram de acordo com minhas vontades. Maria, Maria, Maria – bestificado fiquei quando depois de 30 anos paralisado nessa cama, eu, sozinho, me levantei.

Veja bem, Maria. Estou me levantando na sua frente agora. Veja bem, Maria. Eu estou de pé. Veja bem, Maria. Eu estou andando. Veja bem, Maria. Você se lembra quando foi a última vez que eu havia andado? Fazia tempo, né? Dê-me sua mão e vamos juntos, agora, à casa de Dona Rosa. Veja bem, Maria. Eu nunca acreditei em milagres. Nunca. Mas, de agora em diante, jamais poderei negar a mim mesmo.

(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

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