Nei Duclós (*)
Vou embora, desistir, sair. Deixar para lá, pegar um táxi, metrô, ônibus, avião. Vou a pé até a estrada e peço carona. Abandono tudo, abro um restaurante, vou viver numa gruta, uma ilha deserta. Não quero saber de pauta, de lead, de deadline, de cobertura, de tantos caracteres. Não quero ler, ver ou pensar. Quero ficar de olho parado até o fechamento passar. Nem precisa me indenizar, me trancar na salinha, me advertir. Quero outra vida, sem essa pressão de devorar o mundo todos os dias e vomitá-lo para recomeçar no início de novo expediente.
A vida é outra coisa e está fora da redação. Ok, não existem mais redações, elas sumiram junto com a profissão e hoje o que temos é o conteúdo a ser gerenciado, o cliente a ser atendido, a publicidade no miolo do texto, o título sem sentido, mas com o número exato de toques para caber no espaço devido. Ou sempre foi assim? Lembra daqueles títulos de três linhas nas revistas de luxo, em que a primeira precisava ter sete toques, a segunda oito e a terceira onze? Ou será que sonhei com isso?
É provável que eu tenha perdido a razão depois de dez milhões de edições. Talvez tenham me confinado nessa jaula que eu acho ser o mundo real e visível e estou como criatura de Matriz sonhando a liberdade de não pertencer mais à maquina de moer carne da profissão. Talvez meu desejo de abandonar tudo tenha enfim se concretizado e eu esteja numa espécie de limbo, pronto para reencontrar alguns companheiros que cruzaram comigo neste rio de palavras.
As celebridades, tão consideradas pelos estudantes, e que estiveram muito perto por tanto tempo, nem contam. O que pega são os anônimos, os redatores que não assinavam matérias, os diagramadores que jamais chegavam à direção da arte, os repórteres que sumiam de verdade para nunca mais. O que pega são os office-boys, como aquele tão pernóstico que o patrão dizia ser não um contínuo, mas um Editor de Continuidade. Ou o cara que recortava jornal para fazer clipping. Ou o setorista que dedicou cem anos para seu ofício, cobrindo esportes, ou polícia ou necrológios e por fim foi também embora, envolto em brumas de uma literatura que cheirava a biblioteca antiga, submersa em pó e esquecimento.
Não vá fazer poesia com tanta realidade, que de tão absurda parece ficção. Não diga que esqueceu aquelas dobras de corredor onde revisoras passavam com papéis na mão, concentradas em sua difícil arte. Ou o rapaz do arquivo, que fazia parte dos móveis daquele grande jornal do interior e que um dia respondeu o pedido urgente do editor apressado, que bradava: “Fulano de Tal, sabe quem é?”, com a clássica resposta: “Não sei, mas tenho”. Ou o tempo do off-set quando bravos rapazes analfabetos esforçados da composição colavam parágrafos inteiros de cabeça para baixo, mas no maior capricho, fazendo com que a leitura do dia seguinte fosse festejada com gargalhadas.
No fundo, queres do jornalismo o quem nunca pertenceu a ele. As erratas que se repetiam com os mesmos erros, o foca de bolsa e tênis que chegava com o cerebral “Quatro Quartetos”, de T.S. Elliot, embaixo do braço e arrancava do chefe de reportagem o desabafo: “Pronto, mais um intelectual de sovaco”; a happy hour com o pessoal da oficina; e as despedidas. Sim, quando alguém decidia enfim ir embora e íamos todos na rodoviária ou na estação nos despedir, bêbados, batendo em suas costas como querendo expulsá-lo, mas no fundo sonhando em fazer a mesma coisa.
Partir, ir embora, deixar esta vida. A pior do mundo, mas que não há nem haverá outra igual nem melhor. Longa vida à memória e à loucura: esse tal de jornalismo, profissão extinta, ninho de loucos, que trabalham sob as ordens do destino e tiram de letra qualquer lágrima que venha atrapalhar nossa conversa na calçada, no fim da noite, antes do assombroso amanhecer.
(*) Autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias
Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
segunda-feira, 6 de abril de 2009
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