segunda-feira, 25 de maio de 2009

O violão e o tapa, por Marco Albertim

Marco Albertim (*)



Quem mantém a crônica na memória, arrisca-se a misturá-la com outros fatos, a atabalhoar-se com outras lembranças. Quem decide fazer o registro com letras, por miúdas que sejam, corre o risco de atropelar nomes; e só este risco paga o feito. Assim, grosso modo, tenho a licença para o resgate de um episódio. Muitos, do gênero, já foram resgatados. A memória sentir-se-ia poltrona caso renunciasse aos ditames de si mesma. Foi aqui perto de mim, onde passo todos os dias, distinguindo num banco de praça, os coturnos de soldados do exército, pisando na grama, mais fortes que o piso de cimento já estropiado, em volta do tanque com um jacaré moldado num cimento branco.

A Praça do Jacaré, em Olinda, logo será ocupada por troças de carnaval; já foi ocupada por uma milícia verde-oliva, tão raivosa quanto o jacaré real que inspirara a mão do escultor. A viatura estacionou na avenida em frente, em frente ao Colégio São Bento, com alunos ignorando os instintos liberticidas dos oficiais desaquartelados.

Frederico tinha pouco mais de dezessete anos. Junto com outros de sua idade, pôs-se a vibrar a corda do violão recém-comprado; comprara com o dinheiro obtido dando aulas a vizinhos carentes de informações sobre regra de três, equações. Não tinham dinheiro para pagar o cursinho particular, valiam-se da habilidade de Fred no manejo de cálculos.

Os soldados, à frente um oficial, bateram com a porta da viatura. O ruído confundiu-se com o dos motores em marcha na avenida. Os rapazes não se deram conta, visto que a viatura, verde-escura, misturava-se, camuflava-se no escuro das poucas luzes na avenida.

Frederico Carlos, cujo último nome é o mesmo do autor do presente texto, fora inquirido pela mãe, dois dias antes, de como comprara o violão, um instrumento caro. A velha Dudinha, entretida nos quitutes da cozinha, na costura de uma máquina Singer já fora de linha, não desconfiara, jamais suspeitara que o filho fosse capaz de amealhar por um ano; para comprar não um custoso DiGiorgio ou um Giannini, mas um violão ordinário, de marca desconhecida como o Tonante. Voltou, ele, do colégio, almoçou sem mastigar direito e foi para Recife. Comprou o violão na primeira loja, para não perder tempo com pesquisa de preços; comprou com a ansiedade dos moços.

Os soldados se acercaram dos rapazes sentados, ouvindo, apreciando o instrumento novo. Convém dizer que violão era instrumento de subversivos, visto que com ele alguns artistas se atreviam a compor músicas com letras sediciosas.
- Que reunião é essa aí!? – quis saber o soldado.

Se violão era instrumento inconfiável, o que dizer de uma reunião de moços numa praça de uso popular? Oscar, o professor de violão, foi o primeiro a assustar-se; não demoraria dois minutos e ele se sentiria aliviado por não ser o dono do violão, não segurá-lo no momento.
- Vamos! Eu estou perguntando! Que reunião é essa aí?

Fred, que ainda não descobrira o lirismo de músicas antiditatoriais, alienando-se na frivolidade recém-criada da jovem guarda, não soube o que responder. Pôs o violão sob o braço, apoiando-o na coxa. O braço, com as cordas, ficou de frente para o militar. Sentiu-se desfeiteado o soldadinho, justo no instante em que, mesmo sem qualquer divisa na farda, podia falar, gritar como um general, pôr-se maior do que a própria altura. O soldado olhara só para Fred, porque fora ele o mais atrevido. Onde já se viu estudante com violão em praça pública!?
- A gente está só conversando... – gaguejou Fred.
- Trate-me de senhor!

O tapa no rosto do estudante soou conforme a indignação balofa do soldadinho, tão balofa quanto o olhar de aprovação do oficial no comando da patrulha. Cruzara os braços, o oficial; tinha mais era que cruzá-los... Adestrara seus homens, apurara-os no instinto de um guabiru catando carniça subversiva.

Pôs a mão no rosto, Fred; dor, ardor, vergonha de apanhar em público; na frente do jacaré que o vira crescer. Olhou para trás quando virou o rosto. Pediu ajuda ao jacaré, forçou-se telepático com a estátua inamovível. Teve pena do bicho, porque também o bicho que o vira menino, sentiu-se estapeado sem poder reagir com as presas na boca.

Oscar-Perna-Torada esqueceu as notas, arrependendo-se de tê-las repassado ao aluno; sentiu alívio porque não trouxera seu Giannini.

O soldado, puxando das mãos de sua presa o violão, sentiu alguma resistência no estudante insubmisso. Deu-lhe um pontapé na cintura, de lado, deixando-o penso; aproveitou para puxar de vez o violão. Depois, quebrou-o na amurada do tanque, deixou-o em pedaços; destruiu-o para em seguida registrar o feito à frente de um coronel. Não receberia uma medalha, seria elogiado, talvez permanecesse por mais tempo no exército, evitando a rejeição social por ser semianalfabeto.

A reunião foi desfeita. Os estudantes voltaram para casa. Fred, sem violão, entrou no quarto sem falar com a mãe. Para quê! Para dizer que perdera o violão, fora estapeado na rua?

(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Alívio, por Marcos Alves

Marcos Alves (*)



O sujeito era emburrado. Ela, muito solta. Ele era caladão. Ela, falante. Dançava e cantava de biquíni na praia, embalada pelo som e generosos goles de cerveja. Ele bebia também, mas era o oposto. Parecia frágil e olhava para a mulher sem saber o que fazer.

“Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz”. O verso de Chico fazia total sentido para esse casal. Famílias se divertindo na praia, e ela era a estrela do lugar. Ele, gordo, desleixado. Ela, corpo escultural, sensualidade aflorada.

A noite se aproxima e a praia vai ficando vazia. O homem pede a conta e enquanto o garçom busca a nota, se vira para ela para chamar-lhe a atenção. “Pára com isso, parece uma p.!” O sorriso dela desaparece num piscar de olhos e dá lugar a um franzir de testa, breve tristeza que por um instante lhe rouba a beleza.

Era só o começo de um enredo que ambos conheciam bem. De volta para casa a discussão começa. O homem diz coisas desagradáveis, tomado pelo despeito. Ele sabe que não pode com tanta beleza, é quase uma agressão para essa alma desprovida de sensibilidade.

Ele agora é dono da situação. Ela é um enigma, uma esfinge, e guarda segredos que teme serem descobertos. Ele fala, gesticula, afirma e reafirma que é quem manda no ‘pedaço’. Paga as contas, é dono da casa, do carro – enfim, é o provedor. Ela deveria, diz ele, agradecer todos os dias por ter um cara assim. Ela desvia o olhar e não responde, pois sabe o que a espera em caso de discordância.

Mesmo calada, mesmo tendo respeitado as regras, leva um tabefe, um empurrão e um chute. Chora, geme, e agora já não é nem sombra da linda mulher da praia. Há mais gente na casa, mas ninguém se atreve a intervir. De certa forma, todos ali dependem do provedor.

Novas agressões começam, agora com mais força. O homem está vermelho de tanta ira, ela está vermelha de tanto apanhar. Finalmente ele pára, sai do quarto. Ela se tranca no banheiro. Veste um pijaminha branco com borboletas e flores bordadas. Escova os cabelos enquanto uma última lágrima cai do canto do olho. Vai para a cama e reza baixinho. Adormece.

De madrugada, acorda com o barulho da maçaneta se mexendo, mas finge dormir. O homem ainda fede a cerveja, tira as calças, a camisa, e se deita ao lado dela. Olha para aquela nuca delicada, mas não se atreve a tocá-la. Vira-se e procura dormir. Não consegue.

Ambos passam a noite em claro. Ela, com medo de ficar ao lado dele. Ele, com medo de perdê-la definitivamente. O homem, enfim, resolve tocá-la. Alisa-lhe as costas, os cabelos. Ela se mexe, mas não esboça qualquer reação. Ele a puxa com mais força, encosta o corpo no dela. A mulher sabe o que vem depois. Deixa que ele tire o seu pijama, alise suas pernas, acaricie seus peitos, seu sexo.

Ele agora deixa escapar um sorriso de canto de boca. “Você é minha mulher e eu estou pronto”, diz. Ela permite. Era assim há anos. Na manhã seguinte, vão de novo à praia. Ela está bem mais calada, ele muito mais falante. Esbanja segurança e diz um monte de besteiras sobre qualquer coisa: comércio, negócios, mulheres, carros, bebida. O pessoal ri, acha graça, afinal, o homem já adiantou que, hoje, a conta é dele.

Ela bebe água de coco, evita cerveja e tampouco dança, mesmo quando aquela música que tanto gosta toca no som do quiosque. A tarde chega, o pessoal vai embora e eles novamente são um dos últimos a sair da areia. Chegam em casa e de novo o ritual se cumpre, mas dessa vez sem brigas. O homem se diz feliz. “Isso é que é vida; a gente aqui curtindo esse verão, perto da família e dos amigos. Não é meu amor?”

Ela faz sinal de positivo com a cabeça, e dá um sorriso inexpressivo. Vai para o quarto, diz que está indisposta e quer dormir cedo. Partiriam no dia seguinte. A viagem seria cansativa, quase mil quilômetros. “Durma bem”, ele diz a ela.

A mulher vai ao banheiro, escova os cabelos, coloca o pijama. Abre o armário e vê as caixas de remédio do marido. Faz um pedido em silêncio e vai se deitar. Dorme profundamente e só acorda com o choro do filho mais velho, de 7 anos.

- O que foi, meu benzinho?
- Papai foi levado às pressas para o hospital.
- Mas, por quê?

A empregada explica que o homem passou mal e teve que ser internado. “Tentamos avisá-la, mas você não acordava e não havia tempo a perder, ele estava muito esquisito”. “Vamos esperar por notícias aqui mesmo”, diz a mulher, enquanto mastiga uma torradinha e afaga os cabelos da criança.

A empregada acha estranha a reação, ou melhor, a falta de reação da patroa, mas não diz palavra. Passam-se mais alguns minutos e o telefone toca. O homem não havia resistido e morreu. A mulher entrou no banheiro, pegou as caixas de remédio e jogou no lixo. Não seriam mais necessários. Nunca mais.

(*) Jornalista.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A esposa, por Talis Andrade

Talis Andrade (*)


Na longa espera
Penélope tece
a branca túnica
que vestirei

Encontrarei o quarto arrumado
A água de cheiro
a toalha de banho
os quatro chinelos

Descalçarei os sapatos
Os meus pés
os meus pés penetrarão a terra
em busca da profundidade

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A obra morre, por Pedro J. Bondaczuk

Pedro J. Bondaczuk (*)



A identidade de pensamentos, sentimentos e crenças é a única forma de tentarmos preservar nossas obras do esquecimento e da morte, tão logo venhamos a esgotar nosso tempo sobre a Terra. É uma imensa tolice, portanto, nadar contra a correnteza e pretender “fazer cabeças”, com vistas a modificar gostos e opiniões para fazer proselitismo.

Leio, por exemplo, com maior atenção e gosto, apenas livros de escritores com os quais me identifico, que tenho empatia nem que seja minimamente, que pensam como penso e que aprofundam e justificam esses meus pensamentos. Os outros... Não me proponho sequer a refutar o que pensam. Ignoro-os. Quase todas as pessoas agem assim.

O mesmo vale em relação às outras artes, como pintura, escultura, música etc. Temos a vã ilusão que as obras que deixarmos irão preservar nossa memória através dos séculos e milênios e que não “morrerão” jamais. Ledo engano.

Mesmo que aquilo que deixarmos venha a despertar a identidade de milhões de pessoas (que tenham os mesmos pensamentos, sentimentos e crenças que nós), não há a mínima garantia de que essas realizações nos sobrevivam, digamos, por dois, cinco ou dez anos, quanto mais “para sempre”. Não tardará para sermos esquecidos, como se sequer tivéssemos existido, salvo uma ou outra exceção e por motivos inexplicáveis racionalmente.

Vira e mexe, por exemplo, descubro, em sebos, livros excelentes, que mereceriam tratamento muito mais nobre e que, no entanto, estão esquecidos, vendidos “aos quilos”, como papéis inúteis. Certamente, quem os escreveu tinha pretensões muito maiores do que esta. Sempre que posso, tento “ressuscitar” esses escritores, na vã esperança de que alguém, algum dia, em algum lugar, dentro de uns cinqüenta anos, por exemplo, faça o mesmo comigo. Quem sabe?!

Uma das maiores decepções que tive, em tempos recentes, foi encontrar meu livro “Por uma nova utopia” em um sebo que visitei. Levei um choque! E eu que achava que aquilo que escrevi havia agradado os leitores! Afinal, esgotaram-se seis edições, o que, no Brasil, não deixa de ser uma façanha.

Fico me perguntando: quem não gostou do livro, a ponto de se desfazer tão rapidamente dele? O que o desagradou? Foram os temas de que tratei? Foi o estilo? Foram minhas conclusões? Sei lá! O fato é que o livro que escrevi com tanto empenho e paixão, com tanta garra e tanta esperança, estava lá, naquele sebo, vendido a preço irrisório, como sucata, papel velho ou sei lá o quê.

Claro que continuo esperançoso de vir a me constituir em exceção à regra. Claro que continuo me empenhando cada vez mais, lendo, estudando e escrevendo, escrevendo e escrevendo, incansável e compulsivamente, sonhando que meus textos me sobrevivam para sempre e atestem a meu favor junto à posteridade.

Sem nenhum laivo de pessimismo, porém, sei que as chances são pequenas, ínfimas, remotíssimas de que isso venha a ocorrer. Tanta gente melhor do que eu não conseguiu. Busco, porém, reunir qualidade à quantidade, para que, daqui a alguns anos, pelo menos uma simples e reles crônica das milhares que escrevi sobreviva ao tempo e ao esquecimento e ateste que existi, amei, odiei, sofri, fui feliz e, sobretudo, vivi.

Minha obra é como aquelas mensagens que as pessoas escrevem, colocam em uma garrafa e lançam ao mar. A probabilidade é que ela nunca chegue às mãos de ninguém, dada a vastidão do oceano. Mas há sempre remotíssima chance de que um dia alguém, em algum tempo, em algum lugar, provavelmente a milhares de quilômetros do local em que a tal garrafa foi jogada nas ondas, a encontre.

Morris West escreve o seguinte, a respeito, no romance “O Advogado do Diabo”: “A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que um homem é, do que sente, daquilo em que acredita. Se dura, se se desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas porque outros homens pensam, sentem e crêem da mesma maneira”.

É esta a minha esperança. Esta é a confiança que teima em se manter presente, espicaçando-me a escrever, escrever, escrever e escrever, prolífica e compulsoriamente. Por isso é que tento entender as pessoas e estabelecer absoluta empatia com elas. Se vou conseguir fazer a mensagem na garrafa chegar às mãos da posteridade... jamais saberei! Seguirei tentando!

(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Duas palavras, por Emilson Pedro Zorzi

Emilson Pedro Zorzi (*)



Bastariam duas palavras...
Que caberiam exatamente nas lacunas
Assombradas pela falta...
Fé e Café...

(*) Poeta e pintor de Jundiaí/SP.