Marcos Alves (*)
O sujeito era emburrado. Ela, muito solta. Ele era caladão. Ela, falante. Dançava e cantava de biquíni na praia, embalada pelo som e generosos goles de cerveja. Ele bebia também, mas era o oposto. Parecia frágil e olhava para a mulher sem saber o que fazer.
“Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz”. O verso de Chico fazia total sentido para esse casal. Famílias se divertindo na praia, e ela era a estrela do lugar. Ele, gordo, desleixado. Ela, corpo escultural, sensualidade aflorada.
A noite se aproxima e a praia vai ficando vazia. O homem pede a conta e enquanto o garçom busca a nota, se vira para ela para chamar-lhe a atenção. “Pára com isso, parece uma p.!” O sorriso dela desaparece num piscar de olhos e dá lugar a um franzir de testa, breve tristeza que por um instante lhe rouba a beleza.
Era só o começo de um enredo que ambos conheciam bem. De volta para casa a discussão começa. O homem diz coisas desagradáveis, tomado pelo despeito. Ele sabe que não pode com tanta beleza, é quase uma agressão para essa alma desprovida de sensibilidade.
Ele agora é dono da situação. Ela é um enigma, uma esfinge, e guarda segredos que teme serem descobertos. Ele fala, gesticula, afirma e reafirma que é quem manda no ‘pedaço’. Paga as contas, é dono da casa, do carro – enfim, é o provedor. Ela deveria, diz ele, agradecer todos os dias por ter um cara assim. Ela desvia o olhar e não responde, pois sabe o que a espera em caso de discordância.
Mesmo calada, mesmo tendo respeitado as regras, leva um tabefe, um empurrão e um chute. Chora, geme, e agora já não é nem sombra da linda mulher da praia. Há mais gente na casa, mas ninguém se atreve a intervir. De certa forma, todos ali dependem do provedor.
Novas agressões começam, agora com mais força. O homem está vermelho de tanta ira, ela está vermelha de tanto apanhar. Finalmente ele pára, sai do quarto. Ela se tranca no banheiro. Veste um pijaminha branco com borboletas e flores bordadas. Escova os cabelos enquanto uma última lágrima cai do canto do olho. Vai para a cama e reza baixinho. Adormece.
De madrugada, acorda com o barulho da maçaneta se mexendo, mas finge dormir. O homem ainda fede a cerveja, tira as calças, a camisa, e se deita ao lado dela. Olha para aquela nuca delicada, mas não se atreve a tocá-la. Vira-se e procura dormir. Não consegue.
Ambos passam a noite em claro. Ela, com medo de ficar ao lado dele. Ele, com medo de perdê-la definitivamente. O homem, enfim, resolve tocá-la. Alisa-lhe as costas, os cabelos. Ela se mexe, mas não esboça qualquer reação. Ele a puxa com mais força, encosta o corpo no dela. A mulher sabe o que vem depois. Deixa que ele tire o seu pijama, alise suas pernas, acaricie seus peitos, seu sexo.
Ele agora deixa escapar um sorriso de canto de boca. “Você é minha mulher e eu estou pronto”, diz. Ela permite. Era assim há anos. Na manhã seguinte, vão de novo à praia. Ela está bem mais calada, ele muito mais falante. Esbanja segurança e diz um monte de besteiras sobre qualquer coisa: comércio, negócios, mulheres, carros, bebida. O pessoal ri, acha graça, afinal, o homem já adiantou que, hoje, a conta é dele.
Ela bebe água de coco, evita cerveja e tampouco dança, mesmo quando aquela música que tanto gosta toca no som do quiosque. A tarde chega, o pessoal vai embora e eles novamente são um dos últimos a sair da areia. Chegam em casa e de novo o ritual se cumpre, mas dessa vez sem brigas. O homem se diz feliz. “Isso é que é vida; a gente aqui curtindo esse verão, perto da família e dos amigos. Não é meu amor?”
Ela faz sinal de positivo com a cabeça, e dá um sorriso inexpressivo. Vai para o quarto, diz que está indisposta e quer dormir cedo. Partiriam no dia seguinte. A viagem seria cansativa, quase mil quilômetros. “Durma bem”, ele diz a ela.
A mulher vai ao banheiro, escova os cabelos, coloca o pijama. Abre o armário e vê as caixas de remédio do marido. Faz um pedido em silêncio e vai se deitar. Dorme profundamente e só acorda com o choro do filho mais velho, de 7 anos.
- O que foi, meu benzinho?
- Papai foi levado às pressas para o hospital.
- Mas, por quê?
A empregada explica que o homem passou mal e teve que ser internado. “Tentamos avisá-la, mas você não acordava e não havia tempo a perder, ele estava muito esquisito”. “Vamos esperar por notícias aqui mesmo”, diz a mulher, enquanto mastiga uma torradinha e afaga os cabelos da criança.
A empregada acha estranha a reação, ou melhor, a falta de reação da patroa, mas não diz palavra. Passam-se mais alguns minutos e o telefone toca. O homem não havia resistido e morreu. A mulher entrou no banheiro, pegou as caixas de remédio e jogou no lixo. Não seriam mais necessários. Nunca mais.
(*) Jornalista.
sexta-feira, 22 de maio de 2009
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