Marco Albertim (*)
Quem mantém a crônica na memória, arrisca-se a misturá-la com outros fatos, a atabalhoar-se com outras lembranças. Quem decide fazer o registro com letras, por miúdas que sejam, corre o risco de atropelar nomes; e só este risco paga o feito. Assim, grosso modo, tenho a licença para o resgate de um episódio. Muitos, do gênero, já foram resgatados. A memória sentir-se-ia poltrona caso renunciasse aos ditames de si mesma. Foi aqui perto de mim, onde passo todos os dias, distinguindo num banco de praça, os coturnos de soldados do exército, pisando na grama, mais fortes que o piso de cimento já estropiado, em volta do tanque com um jacaré moldado num cimento branco.
A Praça do Jacaré, em Olinda, logo será ocupada por troças de carnaval; já foi ocupada por uma milícia verde-oliva, tão raivosa quanto o jacaré real que inspirara a mão do escultor. A viatura estacionou na avenida em frente, em frente ao Colégio São Bento, com alunos ignorando os instintos liberticidas dos oficiais desaquartelados.
Frederico tinha pouco mais de dezessete anos. Junto com outros de sua idade, pôs-se a vibrar a corda do violão recém-comprado; comprara com o dinheiro obtido dando aulas a vizinhos carentes de informações sobre regra de três, equações. Não tinham dinheiro para pagar o cursinho particular, valiam-se da habilidade de Fred no manejo de cálculos.
Os soldados, à frente um oficial, bateram com a porta da viatura. O ruído confundiu-se com o dos motores em marcha na avenida. Os rapazes não se deram conta, visto que a viatura, verde-escura, misturava-se, camuflava-se no escuro das poucas luzes na avenida.
Frederico Carlos, cujo último nome é o mesmo do autor do presente texto, fora inquirido pela mãe, dois dias antes, de como comprara o violão, um instrumento caro. A velha Dudinha, entretida nos quitutes da cozinha, na costura de uma máquina Singer já fora de linha, não desconfiara, jamais suspeitara que o filho fosse capaz de amealhar por um ano; para comprar não um custoso DiGiorgio ou um Giannini, mas um violão ordinário, de marca desconhecida como o Tonante. Voltou, ele, do colégio, almoçou sem mastigar direito e foi para Recife. Comprou o violão na primeira loja, para não perder tempo com pesquisa de preços; comprou com a ansiedade dos moços.
Os soldados se acercaram dos rapazes sentados, ouvindo, apreciando o instrumento novo. Convém dizer que violão era instrumento de subversivos, visto que com ele alguns artistas se atreviam a compor músicas com letras sediciosas.
- Que reunião é essa aí!? – quis saber o soldado.
Se violão era instrumento inconfiável, o que dizer de uma reunião de moços numa praça de uso popular? Oscar, o professor de violão, foi o primeiro a assustar-se; não demoraria dois minutos e ele se sentiria aliviado por não ser o dono do violão, não segurá-lo no momento.
- Vamos! Eu estou perguntando! Que reunião é essa aí?
Fred, que ainda não descobrira o lirismo de músicas antiditatoriais, alienando-se na frivolidade recém-criada da jovem guarda, não soube o que responder. Pôs o violão sob o braço, apoiando-o na coxa. O braço, com as cordas, ficou de frente para o militar. Sentiu-se desfeiteado o soldadinho, justo no instante em que, mesmo sem qualquer divisa na farda, podia falar, gritar como um general, pôr-se maior do que a própria altura. O soldado olhara só para Fred, porque fora ele o mais atrevido. Onde já se viu estudante com violão em praça pública!?
- A gente está só conversando... – gaguejou Fred.
- Trate-me de senhor!
O tapa no rosto do estudante soou conforme a indignação balofa do soldadinho, tão balofa quanto o olhar de aprovação do oficial no comando da patrulha. Cruzara os braços, o oficial; tinha mais era que cruzá-los... Adestrara seus homens, apurara-os no instinto de um guabiru catando carniça subversiva.
Pôs a mão no rosto, Fred; dor, ardor, vergonha de apanhar em público; na frente do jacaré que o vira crescer. Olhou para trás quando virou o rosto. Pediu ajuda ao jacaré, forçou-se telepático com a estátua inamovível. Teve pena do bicho, porque também o bicho que o vira menino, sentiu-se estapeado sem poder reagir com as presas na boca.
Oscar-Perna-Torada esqueceu as notas, arrependendo-se de tê-las repassado ao aluno; sentiu alívio porque não trouxera seu Giannini.
O soldado, puxando das mãos de sua presa o violão, sentiu alguma resistência no estudante insubmisso. Deu-lhe um pontapé na cintura, de lado, deixando-o penso; aproveitou para puxar de vez o violão. Depois, quebrou-o na amurada do tanque, deixou-o em pedaços; destruiu-o para em seguida registrar o feito à frente de um coronel. Não receberia uma medalha, seria elogiado, talvez permanecesse por mais tempo no exército, evitando a rejeição social por ser semianalfabeto.
A reunião foi desfeita. Os estudantes voltaram para casa. Fred, sem violão, entrou no quarto sem falar com a mãe. Para quê! Para dizer que perdera o violão, fora estapeado na rua?
(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
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