Risomar Fasanaro (*)
Em julho de 1970 voltei ao Recife pela primeira vez, desde que viera morar em Osasco- SP. E foi lá, na minha terra natal que senti de perto os tentáculos da ditadura. Viajei com três amigas: Ilíada, e Maria Antônia, duas estudantes de História e minha amiga Maria clara e eu de Letras.
Escolhemos uma pousada em um sobrado antigo para nos hospedar. Os quartos eram bem grandes, com janelas e portas altíssimas, uma escadaria de metal em caracol que unia o andar térreo ao andar superior. Uma construção da época do Brasil colonial.
Ficamos todas no mesmo quarto, e à noite, já deitadas, contei às minhas amigas uma história que se passou no Recife e que desde pequena me fascinou: a história da emparedada da Rua Nova, que muitas vezes ouvi minha mãe contar. História que o escritor Carneiro Vilela registrou em seu romance “A emparedada da Rua Nova”.
Havia, no século XIX, um senhor de engenho casado e que tinha uma filha. A mulher dele tinha um amante que, dizem, seduziu também a moça e a engravidou. Ao saber da gravidez da filha o senhor de engenho contratou alguns pedreiros, e tanto os homens quanto a moça foram levados encapuzados a um casarão onde a moça foi emparedada viva em uma das paredes do casarão.
Contam também que quando começaram a demolir algumas construções antigas no centro daquela cidade, encontraram em um casarão o esqueleto de uma mulher e de um feto, presos em uma parede. Se é verdade, não sei. Dirá melhor quem vive lá.
Aquela noite, junto com minhas amigas olhando aquele teto altíssimo e vendo a espessura daquelas paredes fiquei imaginando o sofrimento daquela moça amarrada e amordaçada sem poder reagir. Pensava na possibilidade de aquela história ser real e a que crimes o poder patriarcal, e o falso puritanismo levam. Muitas vezes maiores que os do próprio réu.
Alguns amigos me pedem que conte algumas passagens que vivi durante os anos de chumbo. É para atender a esses pedidos que início hoje algumas passagens que vivi durante os anos de chumbo. E, se for autorizada, contar histórias de pessoas próximas que também viveram alguns momentos difíceis naquela época.
Saí do Recife com onze anos, conheço muito pouco minha cidade, e a sede de conhecê-la é muito grande até hoje. Aquela viagem tinha tudo para ser perfeita: estava com três pessoas interessadíssimas em conhecer a história e a cultura de Pernambuco, por isso eu estava muito feliz. Fotografava tudo que achava interessante: mulheres rendeiras, as crianças, as vendedoras de tapioca nas ruas, as pontes, as igrejas, e o rio. O Rio Capibaribe que é minha maior paixão naquela cidade.
E não só fotografava. Anotava palavras, frases, tudo que nos interessava. Maria Clara andava com um bloquinho, pois este era um conselho da professora Ada Natal Rodrigues, nossa professora de Lingüística. Até hoje tenho o hábito de anotar e fotografar tudo que posso, e era o que estávamos fazendo naquele dia chuvoso de julho.
À tarde iríamos a Natal; já estávamos com as passagens compradas, e de Natal partiríamos de volta para São Paulo, mas não voltaria sem ir a Socorro onde passei minha infância.
Saímos cedinho, Alba e eu. E quando entramos no ônibus comecei a sentir angústia, um sentimento que me toma sempre que vai acontecer algo ruim a mim ou a alguém muito ligado a mim. Já desacreditei disso, tentei achar que era ilusão, mas a cada dia mais isso se confirma. Algo dentro de mim recebe antes o que vai acontecer. Contei a Alba o que estava sentindo e ela me acalmou: “é a emoção da volta”.
Chegando a Socorro, nos dirigimos à guarita da sentinela, já que desde criança me acostumara que só se entrava na vila depois de se identificar junto ao soldado que ali fica de plantão.
O soldado nos informou que para entrar era preciso pedir autorização ao oficial de dia. Para isso teríamos de nos dirigir a um prédio que ficava a uns trezentos metros de distância.
Saímos, minha amiga e eu, em direção ao outro prédio. No espaço que liga a guarita ao prédio, ficam a igreja, a escola e o cinema, os locais que frequentei quase diariamente durante vários anos. Por isso resolvi ir fotografando cada um. Começou a chover e nos abrigamos sob a marquise do cinema, para esperar a chuva passar. De lá se via todo o quartel, e olhando a neblina que formava uma leve cortina de água, li a frase em letras garrafais de cimento branco, sobre o gramado, que se encontra em frente ao prédio: AQUI SE APRENDE A AMAR E A DEFENDER A PÁTRIA.
Tirei uma foto daquela frase para trazer para meu pai que ali servira muitos anos. Mas logo, logo saberíamos de que forma os que ali dentro trabalhavam, defendiam meu país, minha pátria. Na próxima semana conto o que vivemos naquele local.
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
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