Fábio de Lima (*)
- Feche os olhos.
- Mas aí eu não vou enxergar nada.
- Você é que pensa. Experimente. Vamos fechar os olhos juntos.
Era uma tarde de domingo. Fazia um frio intenso na montanha Tonosso, ao Sul de Okinawa. Eu havia saído do Brasil e ido para o Japão sem saber ao certo o que faria naquela terra distante. Não era de família japonesa, nem tinha amigos próximos que tivessem qualquer relação com aquele País. Mas sentia uma necessidade de conhecer a terra do sol nascente. Então, fui.
- Ao fechar os olhos podemos enxergar o mundo da maneira que queremos. Nada é proibido, entende?
- Acho que sim.
Eu viajei sem saber o idioma. Estava com pouco dinheiro no bolso. A única precaução que tive foi avisar alguns familiares e amigos da minha viagem e pedir a eles que mantivessem contato comigo. Alertei-os também que se surgisse algum problema e eu não conseguisse resolver, ou se de repente eu deixasse de manter contato, que todos eles procurassem o governo brasileiro e pedisse um socorro em meu nome.
- Mestre, eu sempre só fechei os olhos quando ia dormir ou quando estava com a vista cansada. Quando os meus olhos doíam de tanto ler eu os fechava por alguns segundos e depois os abria para me sentir melhor.
- Dava certo?
- Sim. Quando eu abria os olhos a vista parecia menos cansada. Mas essa sensação durava pouco tempo.
- Entendo. O ser humano aprendeu a fechar os olhos apenas para dormir e para morrer, né?
Mestre Nashimura tinha 87 anos, embora aparentasse não mais que 60 anos. Falava português de uma forma engraçada, do jeito que brasileiro imita japonês falando. Ele havia morado no Brasil por 20 anos – de 1954 a 1974. No tempo que esteve no Brasil trabalhou na agricultura e na feira. Nunca se casou e nem teve filhos, mas deixou alguns familiares e amigos por aqui. Mas eu o conheci no próprio Japão por acaso mesmo, se é que o acaso existe.
Quando cheguei ao Japão sabia haver colônias de dekasseguis espalhadas por várias regiões do País. Procurei algumas dessas colônias e expliquei que estava no Japão para passar um tempo – mas que diferente dos dekasseguis eu não tinha nenhuma ligação com o País e precisava de uma ajuda. Eles entenderam minha situação rapidamente, pois se eles que tinham raízes japonesas sofriam discriminação e enfrentavam as mais diversas dificuldades, sabiam que minha estadia lá seria muito mais difícil ainda.
Numa dessas colônias, já no Sul do Japão, conheci o Marcos, bisneto de japoneses, que estava no Japão fazia dois anos. Ele me levou até um mercadinho para me apresentar aos donos e tentar me arrumar um emprego. Lá passei a trabalhar como empacotador ao lado de um velhinho de quase 90 anos e que falava português por já ter morado no Brasil. Esse empacotador antigo era Nashimura que não só me ajudou em meu novo trabalho como também me ensinou a pensar – coisa que sempre achei que fazia, mas que descobri, somente no Japão, que eu nunca pensara de verdade. Eu apenas achava que fazia isso. Pensar é algo diferente. Pensar é algo sublime e poucos o fazem.
- Depois que a gente nasce não pára de aprender. Aprende a andar, falar, estudar e trabalhar. Mas aí a gente chega à idade adulta e acha que já aprendeu tudo. Está aí o erro.
- Verdade, mestre. Mas não podemos generalizar. Nem todo mundo é assim. Alguns levam a vida toda aprendendo, mesmo nas coisas mais simples.
- Sim. São pessoas mais evoluídas. Elas sabem que por mais que saibam não sabem muito. Se assim o fosse não estariam aqui e sim em dimensões mais evoluídas.
- Dimensões mais evoluídas! Essas coisas existem mesmo, mestre?
- Não sei. Isso não é importante agora.
- Pensei que o senhor soubesse ou pelo menos me diria que acreditava nessas dimensões, em outros planetas, sei lá.
- Eu acredito. Mas acreditar não é saber. Eu não tenho certeza de nada. E também não tenho vergonha em dizer que não sei.
- Entendo.
Eu vivi oito meses em Okinawa, no Sul do Japão. Trabalhava de segunda a sábado, das 7h00 às 17h00. No domingo gostávamos, eu e Nashimura, de andar pela região – viajar pelas cidades e vilas vizinhas. Estive na montanha Tonasso por umas 15 vezes, pelo menos. Foi lá que mestre Nashimura me ensinou filosofia, psicologia, sociologia – entre várias outras coisas. Tudo de uma maneira simples, com conversas sobre gente, vida, morte, trabalho e inúmeros outros assuntos.
- Você já vai embora na próxima semana?
- Sim, mestre. Sinto saudade do Brasil.
- Saudade boa?
- Sim. Acho que sim. Vontade de rever minha família e meus amigos.
- Bom.
- Também vou sentir saudade disso aqui. Sentirei saudade do senhor.
- Bom.
- O senhor não quer ir comigo para o Brasil?
- Não.
- Não?! O senhor não sente saudade de lá?
- Não.
- Mas o senhor me disse ter gostado muito de viver lá.
- Gostei.
- Então?!
- Então o quê?
- Deveria sentir saudade, não?
- Não sei. Só sei que não sinto. Acho que depois de uma certa idade a gente não sente saudade de muita coisa. A gente lembra com carinho, mas saudade não sente mais. Eu acho que é assim com todo mundo.
Três semanas depois que regressei ao Brasil recebi um e-mail do Marcos me contando que Nashimura havia morrido. Ele morreu dormindo. Assim, foi embora o meu mestre. Aprendi a chamá-lo dessa forma, carinhosamente, desde o primeiro dia que o conheci. Ele me ensinou a ser um homem mais tranqüilo. Segundo suas palavras, só a tranqüilidade não resolve nenhum problema, mas a intranqüilidade faz aflorar todos os problemas do mundo. Ao receber aquele e-mail eu fechei os olhos por alguns minutos e durante esse tempo pude ter Nashimura novamente ao meu lado me ensinando sobre a vida que ele tanto amava e valorizava. Depois meus olhos tiveram que novamente serem abertos, porque como dizia o mestre, o ser humano só aprendeu a fechar os olhos para dormir e para morrer. Saudade, mestre!
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
quinta-feira, 5 de junho de 2008
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