segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Notas particulares, por Notas particulares, por Eduardo Oliveira Freire

Eduardo Oliveira Freire (*)



Gosto de ouvir o som dissonante da cidade. O costume é que me faz até apreciar a buzina alta de um carro. Os ensinamentos do professor ecoam na cabeça. Hoje, ele diferenciou a exoneração da demissão do cargo público. Estou preocupado com o edital do concurso que ainda não saiu.

O sol desta manhã me aqueceu e almocei muito bem. Não sei em quem vou votar e me dá ódio das musiquinhas das propagandas, que passam nas alturas. Uma colega me disse que não vai votar e depois pagará uma multa de três reais. Realmente, isso é tentador...

Na TV a cabo está passando um novo canal, só de desenhos animados japoneses. Não sou um conhecedor profundo, porém me atraem os olhos grandes das personagens, que mostram diversas emoções. No rosto só há um traço de nariz, salvo mínimas rugas quando as personagens são idosas.

Parei de ver novelas. Leio um pouco e navego na Internet. Tenho segredos que não prejudicam ninguém. Quem não os têm? Eu gostaria de não sentir mais a necessidade de ser bom em alguma coisa e receber elogios. Não gosto muito deste meu lado exibido.

Quero ser ação e parar de me preocupar com opiniões alheias. Lógico que as críticas construtivas são bastante relevantes. Fiz um comentário no blog de uma pessoa amiga e ela me questionou a razão de sempre fazer elogios, deixando de articular comentários críticos. Respondi: “É que sempre gostei do estilo como escreve. Faz pensar. Agora, dar palpite no estilo, sinceramente, estou muito verde para dizer algo, cometer gafes e dizer algo sem fundamentos”.

É a pura verdade. Mesmo que eu sinta a mesma coisa, ao ouvir um comentário artificial. Ela sempre me ajuda e dá boas dicas. Não quero passar por uma pessoa artificial. Todavia, o que as pessoas pensam da gente independe de nós. O jeito é relaxar e jogar para fora as neuroses...

(*) Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Mecanizada, por Samuel C. da Costa

Samuel C. da Costa (*)



Toda a poesia será castigada?
Pergunte ao suicida.
Oh cidade claustrofóbica!

Por que?
Mil vezes por que
me deixaste sozinho
para morrer?

Oh palavras que se repetem
e se repetem
e se repetem,
sonho mecanizado
do mundo diluído
nas telas das tevês!

Cidade cinzenta,
vazia,
concreto armado,
mente vazia...

Frasco de remédio vazio,
sonho mecanizado
em mecanografia
a tabular os dados
de mais um suicídio...

Mais um suicídio
na Central do Brasil,
Babilônia de todos pecados!

Centro do poder,
Capital do Brasil.
Toda a arte será castigada?
São santos a chorar,
Pois toda a arte será castigada!

Sonho mecanizado,
cinza,
como só eu sei ser!

(*) Cronista e poeta em Itajaí/SC

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Reprise, por Eduardo Oliveira Freire

Eduardo Oliveira Freire (*)



Prefiro o revelado ao escondido. Escuto as notícias de corrupções e que pessoas que eram consideradas intocáveis estão sendo investigadas e que, caso existam provas contundentes, deverão ser punidas. O processo democrático se consolida. Depois de tantos anos de ditadura, a Democracia é uma adolescente de dezenove anos que amadurece aos poucos.

Digo isso porque, depois de muitos anos de ditadura, as eleições de 1989 marcaram o processo de redemocratização do país, sendo a primeira eleição direta à Presidência da república. A Imprensa, mesmo sendo parcial ou imparcial, divulga informação. Pelo menos o cidadão tem livre-arbítrio e pode acreditar ou não nas reportagens.

Nos “Anos de Chumbo” não se podia dizer nada. Jornalistas eram censurados e os que protestavam, eram caçados. Quantas imoralidades aconteciam e não havia como provar, porque as CPIS nem sonhavam em existir! Hoje, mesmo com jogos de interesses e idéias nebulosas, pelo menos algo está sendo feito e os cidadãos ficam a par (mesmo existindo controvérsias a esse respeito) da situação do país.

O mundo perfeito não existe, está no plano das idéias. A História provou que tanto as ditaduras capitalistas, quanto as socialistas mataram inocentes e quem ousava criticar o regime vigente, no qual era obrigado a viver. Um vereador, até, foi assassinado, por elaborar uma lei contra o nepotismo.

Isso é uma vergonha nacional, concordo. Porém, emergiram as grandes mazelas da corrupção, os cabides de emprego, que por gerações assolaram o País; consumindo a saúde e a alegria da população desde que o Brasil era colônia e nos tempos em que morto até votava na era da “República dos Coronéis”.

Não estou querendo dizer que hoje em dia é um mar de rosas. Pelo contrário, nós, como cidadãos, precisamos escolher melhor os políticos, cobrar moralização em todos os níveis de governo, para que não haja tanto dinheiro desviado e que realmente melhore a moradia, a educação a saúde de todos. E também que os direitos dos brasileiros sejam respeitados.

Não posso me esquecer do trabalho do Ministério Público, em que os promotores de justiça ajudam, ao máximo, à sociedade, punindo quem a lesa. Afirmo que não acredito num mundo ideal, por isso prefiro viver nessa época (mesmo com graves problemas) do que em outras, em que quando acontecia algum crime, tudo era abafado e ninguém tomava consciência.

(*) Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Ladrões de vida, por Cecília França

Cecília França (*)



Passara mais de sessenta e cinco anos ao lado dele numa vida que considerava vitoriosa, emocional e materialmente. No entanto, a imprevisibilidade a surpreendia agora. Aqueles dois corpos estendidos na estrada de chão punham fim à sua certeza de morte tranqüila, tão esperada, quem sabe durante o sono. Naquela idade, imaginava, nada mais de trágico poderia acontecer a ela ou ao marido.

Octogenários, já haviam superado as armadilhas da juventude e as rixas que inevitavelmente permeiam a vida e desencadeiam desafetos que podem promover tragédias. Até então, estava certa de que restava a eles dormir todas as noites na expectativa de não mais despertar. Esse era o esperado, o correto. Mas dois tiros acabavam de roubar-lhe esse sonho tão bem-moldado. Dois balaços fatais levavam-lhe não apenas o companheiro fiel como também o fruto único daquela união.

Ambos jaziam de bruços, inertes, já com os membros rígidos. Haviam deixado a casa da cidade na manhã anterior rumo ao sítio da família e, daquela vez, não retornaram às sete da noite ansiando pelo jantar. Os corpos só foram encontrados na manhã seguinte. Latrocínio, diziam os policiais. Incompreensível para ela. Bastava o que via: dois corpos sendo lacrados, cobertos por uma mistura de sangue coagulado e terra.

O rosto de seu querido companheiro, por sorte, em nada fora deformado pelo tiro. Parecia até que lhe sorria, o que a fez pensar que, talvez ele, de onde estivesse, já soubesse que ela não tardaria em reencontrá-lo. Não haveria muito tempo para sofrer. Era o que esperava.

Ao ver as urnas já fechadas sentiu o peito encolhendo, enchendo-se de uma dor que não deixava espaço para o trânsito do ar. Viu-se desfalecendo à espera de uma outra urna que a acolhesse. Mas seu corpo não quis se entregar e ela foi levada de volta para casa como uma sonâmbula. O desfecho de sua história de vida, de roteiro tão lapidado e apropriado, o qual ela imaginava dominar e agora pregara-lhe uma peça, trazia-lhe desconforto impossível de ser amenizado.

Sentou-se no sofá e lá está ainda hoje, com os olhos parados no dia em que lhe roubaram o final da vida.

(*) Jornalista. Inspira-se em fatos do cotidiano para escrever seus contos.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Sagrado profano, por Laís de Castro

Laís de Castro (*)



Não, eu não vou dizer que é normal. É estranho mesmo, é esdrúxulo, é tudo quanto você quiser dizer que é. Uma menina mongolóide, como se dizia antigamente, os olhos puxados, o sorriso mole, o corpo gordo e descoordenado, dançando, frouxa, no meio daquele montão de veados naquela discoteca gay. Uma noite atrás da outra, sem descanso, a mãe sentada numa cadeira dura, olhando, observando, consciente de que a única alegria da menina é aquele momento de dança, onde os rapazes todos olham para ela, lhe dão a mão, brincam e sorriem (mós sabemos que nenhum rapaz olha para uma menina assim, caruncho).

É esquisito mesmo, mas eu posso contar como começou e como acabou esta história que teve começo, meio e fim. Bem ao contrário dos filmes americanos e das novelas brasileiras, essa parece que não teve um final de soltar foguetes. Eu gosto de histórias de verdade que não têm melaço, não têm rapadura, não têm glicose, sacarose e os cambose, e nem favos de mel. Não são açucaradas, quero dizer, não têm aquela amolação de brincar de casinha, de amor sem fim que não duram e que qualquer dor de dente pode acabar com uma paixão destas em dez minutos, um tendo que abrir mão da praia para levar a outra ao dentista e ficando furibundo de raiva que lá fora está o maior sol.

Vou contar, então desde o começo.

A menina, que nasceu com Síndrome de Down, veja só como a denominação do mal já está politicamente correta, morava ao lado de uma discoteca gay que tinha shows metidos a hollywoodianos, com direito a escadaria e transformistas equilibrados em altíssimas sandálias plataforma, roupa de Carmen Miranda, dublando a Maddona. Maddona não, naquele tempo ela nem existia, a dublagem era da Lisa Minelli mesmo, New York, New York, que veado adora dublar mulher. Bem que eles poderiam dublar o Frank Sinatra em New York, New York, mas o que? Nem pensar! Acho que também tinha dublagem da Barbra Streisand e de outras cantoras, mas confesso que sou muito ruim com músicas americanas, tudo que eu ouço acho igual, com exceção daquelas maravilhas de New Orleans.

Estive naquela discoteca uma meia dúzia de vezes e, assim, conheci a menina a quem vou chamar Maria porque não lembro o nome dela, que dançava, dançava e dançava a noite inteira sem descanso. Girava o corpo desengonçado e olhava as luzes e sorria, aquele sorriso inexpressivo (nós sabemos que é assim, caruncho) com a alegria dos inocentes.

Na primeira vez que passou na porta da discoteca, Maria parou e ficou vidrada, olhando para dentro, ansiosa, balançando para frente e para trás, no ritmo, como nunca antes. A mãe, que vamos chamar D. Sonia, tomara que o nome não coincida com o verdadeiro há muito esquecido, com um sorriso de acabar com festa de reveillon em navio de tão triste, tomou um susto. Aquela menina que vivia há 20 anos prostrada, olhos baixos, desolada, apática, jogada feito uma boneca dorminhoca, parecia, ali naquela porta, acordar de um longo sono. Assim, mesmo tendo uma bolsa de parcos recursos, resolveu pagar o ingresso para as duas. Pequena, tímida e simples, aquela mater-dolorosa, que nunca tinha visto um veado de perto e agora estava no meio de mais de 200, era o susto personificado, parecia uma estátua de bronze enquanto a filha, pela primeira vez na vida, exibia um brilho nos olhos e quase ria, enquanto ia para pista de dança e começava, sozinha, a dançar.

Entre o pavor e a cerimônia, entre a alegria de ver a filha sorrir e dançar e o pejo que sentia em estar ali, Dona Sonia foi se chegando devagar, como quem não quer chegar (nós sabemos como isso funciona, caruncho) e escolheu, para encostar o corpo hirto, uma cadeira num cantinho sob o palco, de onde podia vigiar a menina e, ao mesmo tempo, esconder-se para encarar a encalistração e o retraimento que a faziam suar dos pés à cabeça. Tonta, o ouvido zunindo de medo, o que eu estou fazendo aqui, pensava, apavorada, meu marido vai me matar, que coisa mais louca esses homens que só conversam com outros homens, encafifava, são veados, mas são tão bonitos. Ali, escondida, ela derramava lágrimas sofridas e afortunadas, lágrimas de mãe, ao ver a filha, que durante duas décadas havia caminhado inerte diante da vida, sorrindo e girando, feliz como um pássaro que se solta da gaiola e voa, ainda que baixo, mas voa.

Assim se passou a primeira noite. Dona Sonia não conseguiu tirar Maria da pista até que a música terminasse, as luzes se apagassem e tudo ficasse, de novo, triste como túmulo de criança. Exausta, ela contou tudo ao marido que surpreendentemente entendeu e não fez nenhuma referência ao fato daquilo ser uma boite, ainda mais uma boite gay e, ainda mais misteriosamente, parecia também feliz com o que havia acontecido. Se a menina gostou você pode levar ela uma duas vezes por semana que mais que isso a gente não pode gastar, mas se ela fica feliz lá dentro... Aquela filha única era o doloroso xodó de ambos, era sua amargura, sua dor, sua cruz, pesada como chumbo que curva os ombros e destrói a vontade de viver, enfim.

Os homens e algumas mulheres, bem vestidos, bem postos na vida, que agitavam os corpos malhados naquela pista de danças, de início, fingiam não ver o que estava acontecendo, como se a menina fosse de vidro. Depois, foram se acostumando e não viam mesmo. Ela era mais um fato daquele contexto e assim foi aceita, com uma indefectível paciência no início e depois com um acachapante querer-bem. Sem querer ser piegas, que eu já disse lá atrás, tenho ódio de frase de novela, todos se apaixonaram por aquela presença comovente e real, se um dia ela faltava porque tinha um gripe ou porque a mãe estivesse com gripe, parecia que havia uma lacuna ali, no lugar da menina ficava pairando no ar uma espécie de apreensão...

Não vou ficar entrando em detalhes porque esses detalhes só machucam o coração dos mais sensíveis, a mãe chorando porque tinha descoberto um motivo de alegria para a filha, o pai juntando os trocados na carteira, para elas voltarem à boite, Maria pulando de felicidade e correndo para debaixo das luzes negras e coloridas, para aquela arena simples e pura, que os ascetas e falsos moralistas chamariam de antro de perdição, nós sabemos, caruncho, que não é bem isso. Aquele lugar não era uma furna de pecado, não. Há trinta anos atrás, aquilo era quase que um convento... Não, não é isso. Nem tudo de antigamente é melhor do que hoje, não. Mas eu posso garantir, porque fui testemunha ocular, que as pessoas iam lá para se divertir, conhecer-se e assistir aos shows. Era um lugar de lazer, sem perversão, nem dó, nem drama.

Pois bem, para encurtar essa conversa que já vai longa, eu vou dizer que essa menina nunca mais deixou de dançar, todas as noites, eu disse todas as noites e a mãe, insone, nunca mais dormiu, ficava ali sentada na cadeira dura, esperando o sol. No entanto, o que aconteceu (e aqui entra o sobrenatural, o belo, e eu que não sou dada a estas bobagens, nesse caso devo me render aos efeitos não racionais da bondade humana) foi que depois de algumas semanas, a menina já não dançava sozinha. Todos os rapazes e senhores que ali dançavam e, vou repetir, algumas mulheres também, passavam por Maria, davam um beijo, pegavam sua mão e giravam, brincavam com ela, alegravam ainda mais seu olhar com um gesto de carinho, um abraço, um toque cuidadoso.

Dona Sonia arrumou ali 200 amigos. A dona da discoteca, sabendo de suas dificuldades, nunca mais cobrou a sua entrada e nem a da filha, que tinham lugar de honra como se vips fossem e eram, já que o tinham conquistado o bem querer universal dos freqüentadores. E eu posso falar de cátedra, gays são exigentes como compradores de relógios suíços, carros alemães ou vinhos franceses. Ali, haviam deixado sua alma derreter de compaixão, como sorvete no forno.

Vou contar outra coisa, um dia Dona Sonia teve uma gripe e três convivas assíduos da boite foram buscar Maria para que ela não perdesse a noite de dança. Depois, levaram a menina para casa, como se irmã deles fosse, protegida, serena, exausta, sonolenta. Senhores, eu vi.

Poucas vezes estive naquela discoteca, porque nunca fui dada a excesso de decibéis, mas tive grandes amigos que eram fanáticos pelo lugar. Depois, contudo, do que vi e do que soube que acontecia ali, passei a considerá-la um local sagrado (nós sabemos como é, caruncho).

Todas as noites, naquele altar, Maria e Dona Sonia tinham seus momentos de bem-aventurança: a menina, que na rua e na escola ninguém, praticamente, enxergava, e não venham me dizer que as pessoas dão mais do que 30 segundos de atenção para meninas como ela, agora era objeto das delicadezas e dos afagos generosos de todos ali presentes. Antes praticamente negligenciada por estranhos feito um cão sarnento, agora era amada, querida e alvo de carinho oi gatinha chegou tarde hoje, dizia um, oi Maria, tá tudo bem, oi garota, que roupa bonita, tá de blusa nova, cortou o cabelo ficou linda... Feliz, na sua inconsciência, ela agradecia com seu dançar desajeitado e seu sorriso pastoso e flácido. Muito aqui entre nós: ela não sabia que todos aqueles homens não tinham, exatamente, predileção por mulheres. Portanto, sentia-se cortejada. Dona Sonia, vendo a filha contente e bem tratada, todas as noites deixava escapar algumas lágrimas, agora só de alegria. Ela, sim, sabia que ali a menina não corria nenhum risco.

Alguns anos depois do começo dessa narrativa, no aniversário de um grande amigo, que freqüentava a discoteca, boa noite, boa noite, parabéns a você nesta data querida, tive uma surpreendente emoção: convidadas de honra, tratadas com amor e respeito, lá estavam Maria e Dona Sonia. Lembra delas, claro, lembro, prazer em revê-las, disse correndo, depressa, bobona, comovida, me tranquei no banheiro e chorei cântaros. Somos convidadas para aniversários toda semana, me contaria depois a mãe, orgulhosa, apaixonada pelos novos amigos, eu já faço até os bolos das festas para ganhar um pouco mais. Maria não falava. Apenas, o rosto lavado de satisfação, a alegria exposta sem pudores (nós sabemos, caruncho), comia brigadeiros, como uma criança de 8 anos. A esta altura já tinha uns 28 para 30 anos.

Não posso dizer quanto tempo durou essa fortuna, que não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe. Eu me afastei e, anos depois, passei em frente do que era antes aquela boite gay: em seu lugar, havia uma igreja. Por onde andarão Maria e Dona Sonia, se é que a mãe está viva, dizem que o maior medo de mães assim é o de morrer antes das filhas, que ficam abandonadas, lembrei, naquela tarde escura. Em que discoteca dançará, hoje, a eterna menina que agora deve ser uma senhora na faixa dos cinqüenta? Por onde andarão aqueles que aprenderam a amá-las com generosidade e respeito? Meu amigo, aquele do aniversário, está morto, não pode mais me dar notícias das duas.

Não quero ditar regras e nem sair por aí fazendo discursos pálidos como freiras assustadas e inúteis como reis e rainhas, mas não sei se agora, acolhendo uma casa de orações, aquele espaço seria mais divino do que a discoteca havia sido. Não sei se as pessoas que para ali se encaminham hoje, mesmo lendo textos ditos religiosos, levem consigo a leveza de alma dos que iam lá antes, dançar e tomar cerveja. Tão generosos que receberam Maria e sua mãe de corações, mentes e braços abertos e abriram, da mesma forma, suas casas para as duas. Tão doces que embalavam Maria, com a nobreza de sua atenção e carinho fraterno. Tão magnânimos que, a mil quilômetros de qualquer preconceito, amaram aquela menina como a si mesmos.

Não apostaria que os homens e as poucas mulheres que freqüentavam aquela arena de luzes e música, fossem menos sagrados do que os que vieram depois, com a suposta igreja. Nós sabemos, caruncho.

(*) Jornalista, há 18 anos no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Vou-me embora pra mim mesmo, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia (*)



Ou é agora ou nunca mais, pensei.

Rumei decidido à cata das tardes de esteio firme, aquelas que eram substancialmente tardes de rachar o liso das calçadas, em horas e horas de ócio pra muito além do boulevard. Fui chegando e pus-me à vista das cercas mesmas das casas todas. Cercas feitas de igualdade, talhadas no esquadro do artesão, cercando as sinas semelhantes de homens parecidos no vagar e na fisionomia, no jeito de olhar a serra e de ir tocando a vida em meio a assovios e nomes-do-pai.

Eu voltando, voltava no ventre do retorno eterno, o volver infante, espesso de leite e cheiroso de talco. Entrei de fininho naqueles dias findos, sabendo do risco do reboco desprendendo, das heras há muito não aparadas e das calhas entupidas. O uísque com gelo era um guizo nas mãos trêmulas com as dez vistas que assomaram com cantoneiras nas bordas. Via em cores e confrontava ao branco e preto que ficou e que me impulsionava a cavar naqueles sítios a parte faltante de mim. E dizia, pra encorajar-me, que vinha pra cumprir o que tinha de ser e ficou no intento, por teimosia de seguir caminho outro e não o adjacente, o já disposto em espólio antepassado, o que era a fortuna ou o infortúnio de todos os outros filhos das casas de cercas baixas. Quis-me assim, fora dos médios.

A porta da frente rangeu alto quando ela entrou. Tão pouco mudada, tão secularmente ela, musa do feudo revisitado.
- Eu te disse que ninguém sai impune daqui.
- Isso eu sabia e paguei o preço, essa certeza era o peso que vergava a mala na estação, o andar indeciso renegando a ida, a vontade um milhão de vezes frouxa. Por que veio até aqui, me diga? Mórbida. Parece nome de gente, Mórbida lhe cai tão bem. Trago nas solas o barro do mundo, caríssima, de terra estranha que teimei pisar e amaldiçoei chorando muito, fique ciente.
- Por aqui ficou o que sempre esteve, mais ou menos do jeito que Deus dispôs nos seis dias de trabalho. Não te digo que seja o mesmo o sineiro na matriz, nem o bedel, muito menos as meninas que a medo te ofereceram a carne antes de mim. Mas você também não é o você que esse lugar pariu.
- Hoje sei. Mas eu nunca saberia, se ficasse.
- Ali estão as ferramentas descansadas na bancada do seu velho. Com o olhar de agora talvez veja serventia nelas. Não há mais tua mãe varrendo, nem quem quer que seja cuidando do que foi. Tudo meio triste, aquarela muito aguada. Sabe que não imaginei revê-lo assim, com esse copo na mão, cedendo como as vigas do terraço?
- Desaponta ver essas paredes pelo meio, eu que vi cada fiada de tijolo se erguendo, os beirais se levantando... devia era não voltar e não ter que ver essa escada, que já não leva a parte alguma.
- Me lembro dela com corrimão de bronze e feltro vermelho nos degraus largos. Lá em cima, o tempo bom da gente olhando da janela do seu quarto.
- A gente só não podia com o vento batendo forte.
- O vento leva e traz as coisas. O vento ensina.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

As confissões, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



Finalmente naquela sexta-feira, os três irmãos, Toninho, José Arthur e o Marlon, conseguiram “arrastar” o João Paulo para a mesa de um bar. O jovem João Paulo era um cara que despertava muitas curiosidades na turma. Tímido, andava sempre quieto, de cabeça baixa, mal falava com os colegas durante a jornada de trabalho. Trabalhavam juntos há três anos, mas ninguém sabia nada sobre a sua vida. Vivia no seu “mundinho”, como diziam, o que gerava uma série de histórias ao seu respeito. Aparentemente, não tinha vida social, não praticava esportes e era solteiro. Bom! Exatamente neste ponto que a curiosidade do pessoal se aguçava.

Depois de muitas cervejas e as conversas rodarem sobre o trabalho, o chefe e os times de futebol do coração, o assunto mulher entrou em pauta. Aqui começava a ser executado o plano elaborado pela turma para sanar as suas dúvidas, digamos assim. Iniciando pelo José Arthur, para criar o ambiente:
- Aproxima! Aproxima! Vou fazer uma confissão pra vocês...
- Fala, Arthur.
- Sabe aquela negrinha da feira quase em frente ao museu municipal?
- A que vende tomate?
- Não! A outra... Tô pegando!
- Capaz!
- Sério! Fui fazer compras lá esses dias, ela se riu toda para o meu lado, não resisti. Fomos para o motel no início da semana. Que potranca!
- Só não deixa a patroa descobrir! Se não...
- Vira essa boca pra lá! Vou até bater na madeira. Toc toc toc...
- Eu que quase entrei em uma fria essa semana. Sabem aquele meu “bichinho” da Petshop, que eu traço há tempos?
- Claro!
- Arãn!
- Pegou e me ligou toda dengosa, querendo me ver... E eu com a Neide, que tem um ouvido que vou contar pra vocês. Estou dando explicação até agora...
- Vai com calma, Toninho! Ela se amansa... Não é a primeira vez!

Ah! Ah! Ah!
- Eu que ando tranqüilo! Continuo com a “nega véia” e mais duas...

Ah! Ah! Ah!
- Você é demais, Marlon! Um brinde!

Ah! Ah! Ah!
Após as gargalhadas, silêncio. Então, Toninho parte para a fase final do plano, e questiona:
- E contigo, João Paulo, como andam as namoradas?

Novo silêncio. Pela primeira vez João vai “abrir a boca” para falar sobre si e, de quebra, já sentindo os efeitos da cerveja, confessa:
- Eu... Eu “pego” a caixa do banco que fica em frente à empresa! A Elisân...

Pronto! Antes que o João terminasse a frase, a gritaria tomou conta da mesa. Principalmente o Marlon. O “ganhador”.
- Eu falei! Eu falei pra vocês que ele não era veado! Pode passar a grana... Cenzinho de cada um. Aposta é aposta e tem que pagar.
- Está certo Marlon, ganhou... Apostou bem. Toma!

Toninho baixou a cabeça e quieto, balançava-a de um lado ao outro negativamente. José Arthur ainda tentou justificar-se com João Paulo.
- João, não que eu desconfiasse de alguma coisa, mas...

Então, João Paulo, com a voz firme, exige:
- Me dêem o dinheiro das apostas... Se não eu conto tudo!
- Por que motivo? Ainda questionou o Marlon.

Antes que João respondesse, Toninho interferiu:
- Vamos dar o dinheiro a ele. Foi um erro de nossa parte fazermos isso com o garoto...
Marlon ainda insistiu:
- Ficou louco, Toninho! O dinheiro é meu. Eu ganhei a aposta...

E perdendo a paciência, Toninho replicou:
- Seu desgraçado! Não percebeu ainda que ele pode nos entregar? A Elisângela do banco é a irmã que vocês chamam de “solteirona” da Neide, minha mulher!

(*) Jornalista e cronista