Rodrigo Ramazzini (*)
- Bah! Essa pescaria veio na hora certa. Estava precisando dar uma espairecida. A mulher só me torrando a paciência em casa. Não agüentava mais...
- Capaz! Mas por quê?
- Não te contei?
- Não!
- Vou te contar a história então. Foi sábado passado. Eu estava sozinho em casa. A Cleuza tinha ido a um instituto de beleza. Olhava um jogo na Sky, Real Madrid contra... Contra... Não lembro o adversário. Enfim, um jogão! Foi quando escutei um barulho de algo cair ao chão e se despedaçar...
- Ué! O que era?
- Calma! Vou chegar lá. Aí eu escutei o tal barulho e corri na cozinha. Chegando lá, encontrei no chão, em caquinhos, um vaso da Cleuza. Ou ex-vaso, né? Herança de família, mas nada de valor. Sabe dessas coisas que mulher se agarra sem explicação?
- Sei!
- Pois é! Era a Cleuza e o tal vaso...
- Mas quebrou muito? Não dava para colar?
- Mas que jeito! O troço se despedaçou de uma maneira, mas de uma maneira, que eu iria passar um ano e não ia conseguir juntar as partes...
- Capaz?
- Arãn!
- Tá! Mas como ele caiu?
- Rapaz! Não é que foi a praga do cachorro. Um passarinho entrou na cozinha por uma janela que estava aberta e não conseguia sair. O cachorro enlouqueceu tentando pegar o bicho. Pulou pra cá, pulou pra lá e bateu na mesa de jantar, onde estava o tal do vaso, aí se deu o estrago...
- Aquele teu cachorro branco?
- Arãn!
- Tá! Só não entendi uma coisa ainda: por que a tua mulher está braba contigo se foi o cachorro?
- Calma! Vou chegar lá...
- Continua então!
- Bom! Como eu não tinha mais nada a fazer, apenas limpei os “restos mortais” do vaso do chão e esperei a Cleuza chegar...
- Que ficou uma fera?
- Mais que isso! Mais do que isso!
- E aí?
- Aí ela chegou, conversou um pouco, coisa e tal e foi na cozinha. Só ouvi um grito! E veio bufando de lá...
- E aí?
- Bah! Me encheu de perguntas: “como tinha quebrado?” “Quem tinha quebrado?” E coisa e tal...
- E tu?
- Eu assumi o estrago! Disse que tinha batido na mesa, tentando tirar o tal passarinho... Contei uma estória.
- Ué! Mas tu estás ficando louco, homem? Por que tu fizeste isto? Por que assumiste a culpa?
- Pois é, meu amigo... Talvez movido pelo remorso! Ou melhor... Eu penso que fiz uma retribuição a um amigo! Essa é a definição certa. O que é um vasinho? Outro dia mesmo, eu rasguei uma almofada da Cleuza com as unhas dos pés... E... E o cachorro assumiu a culpa...
(*) Jornalista e cronista
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
Notícias do coração, por Fábio de Lima
Fábio de Lima (*)
Sentei no sofá, de frente para a TV. Ela estava desligada. Fiquei olhando para aquela tela escura por quase quinze minutos. Na verdade, fiquei parado diante da TV, desligada, por quase duas horas, mas sinto até vergonha em dizer isso. Parecia coisa de louco. Mas não era. Aquilo era amor. Eu amava Marina e saber do casamento dela foi um choque para mim. Eu sabia que ela casaria um dia. Eu sabia que não seria comigo. Mas entre imaginar e deparar com a realidade existia uma distância grande.
Levantei do sofá e senti o rosto grudento das lágrimas que escorreram e secaram. Subi para o quarto e deitei na cama. Olhei para o teto até adormecer. Só acordei no outro dia, às 8h00 da manhã. Meu corpo estava dolorido. Até parecia que eu havia levado uma surra. Pensei em Marina, assim que levantei, e também durante todo o restante do dia, enquanto pisava sobre meus calcanhares pelas ruas paulistanas.
Voltei para casa somente à noite e sentei novamente na frente da TV. Mais uma ou duas horas olhando aquela tela escura. Não sei. Acordei no outro dia e percebi que havia dormido no sofá mesmo. Tomei um banho em silêncio, me troquei e fui embora para mais um dia de devaneios. O sol já ardia a pele quando sai de casa. Senti o suor escorrer tímido pela testa. Senti a dor andando comigo lado a lado.
Foi assim que envelheci um ano em um mês. Foi assim que envelheci seis anos em seis meses. Foi assim que envelheci doze anos em um ano. Os amigos falavam que eu estava magro demais, chato demais, melancólico demais. Eu não sei como estava – só sei que sentia a falta de Marina e isso doía muito. O tempo passou e eu vivi minha vida. O calendário nasceu e morreu por mais de vinte invernos. Na semana passada o telefone tocou e uma voz conhecida falou comigo.
Marina se separou faz oito meses. Ela ligou para saber como eu estava. Disse que estava com saudades de conversar comigo. Disse que tem visto meus livros nas livrarias de todo o País e nas mãos das pessoas. Falou ter gostado muito do meu último livro. Disse que minha literatura amadureceu e que depois que se começa a ler um livro meu, só se pára na última página. Sorri ao telefone e fingi acreditar em tudo que ela me disse.
No último final de semana eu sentei no sofá e liguei a TV. Lá estava passando um desenho do Tom & Jerry. Fiquei dez minutos dando risadas e me sentindo muito feliz por fazer coisas tão simples e sentir prazer com elas. Tenho pensando muito sobre as coisas do coração e espero que Marina encontre o seu caminho. O meu sei que não é ao seu lado e sigo bem sozinho, mesmo que meu coração ainda teime em saber notícias.
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
Sentei no sofá, de frente para a TV. Ela estava desligada. Fiquei olhando para aquela tela escura por quase quinze minutos. Na verdade, fiquei parado diante da TV, desligada, por quase duas horas, mas sinto até vergonha em dizer isso. Parecia coisa de louco. Mas não era. Aquilo era amor. Eu amava Marina e saber do casamento dela foi um choque para mim. Eu sabia que ela casaria um dia. Eu sabia que não seria comigo. Mas entre imaginar e deparar com a realidade existia uma distância grande.
Levantei do sofá e senti o rosto grudento das lágrimas que escorreram e secaram. Subi para o quarto e deitei na cama. Olhei para o teto até adormecer. Só acordei no outro dia, às 8h00 da manhã. Meu corpo estava dolorido. Até parecia que eu havia levado uma surra. Pensei em Marina, assim que levantei, e também durante todo o restante do dia, enquanto pisava sobre meus calcanhares pelas ruas paulistanas.
Voltei para casa somente à noite e sentei novamente na frente da TV. Mais uma ou duas horas olhando aquela tela escura. Não sei. Acordei no outro dia e percebi que havia dormido no sofá mesmo. Tomei um banho em silêncio, me troquei e fui embora para mais um dia de devaneios. O sol já ardia a pele quando sai de casa. Senti o suor escorrer tímido pela testa. Senti a dor andando comigo lado a lado.
Foi assim que envelheci um ano em um mês. Foi assim que envelheci seis anos em seis meses. Foi assim que envelheci doze anos em um ano. Os amigos falavam que eu estava magro demais, chato demais, melancólico demais. Eu não sei como estava – só sei que sentia a falta de Marina e isso doía muito. O tempo passou e eu vivi minha vida. O calendário nasceu e morreu por mais de vinte invernos. Na semana passada o telefone tocou e uma voz conhecida falou comigo.
Marina se separou faz oito meses. Ela ligou para saber como eu estava. Disse que estava com saudades de conversar comigo. Disse que tem visto meus livros nas livrarias de todo o País e nas mãos das pessoas. Falou ter gostado muito do meu último livro. Disse que minha literatura amadureceu e que depois que se começa a ler um livro meu, só se pára na última página. Sorri ao telefone e fingi acreditar em tudo que ela me disse.
No último final de semana eu sentei no sofá e liguei a TV. Lá estava passando um desenho do Tom & Jerry. Fiquei dez minutos dando risadas e me sentindo muito feliz por fazer coisas tão simples e sentir prazer com elas. Tenho pensando muito sobre as coisas do coração e espero que Marina encontre o seu caminho. O meu sei que não é ao seu lado e sigo bem sozinho, mesmo que meu coração ainda teime em saber notícias.
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
domingo, 16 de novembro de 2008
Guerreiro da luz, por Eduardo Oliveira Freire
Eduardo Oliveira Freire (*)
– Filho, você está em pecado, irei, salvá-lo.
Essa garota não presta, é uma perdida. Filho, escuta a palavra. Vou resgatá-lo. Você só se envolve com as pessoas erradas, é um fraco. Só eu que posso ajudá-lo. Não saia hoje. Vamos ficar juntos e ouvir a palavra.
Tem idéias esquisitas; precisa de luz. Ouve-me, espera. Não vire as costas pra mim. Não vá se encontrar com aquela pervertida. Não ABRA A PORTA...
Seu rosto está roxo: acorda! Vejo as marcas de dedos no seu pescoço... Não fui eu, foi o dito cujo!
Abra os olhos, o papai tá aqui. Alguém, me ajude! Ouço sirenes... preciso sair daqui.
(*) Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor
– Filho, você está em pecado, irei, salvá-lo.
Essa garota não presta, é uma perdida. Filho, escuta a palavra. Vou resgatá-lo. Você só se envolve com as pessoas erradas, é um fraco. Só eu que posso ajudá-lo. Não saia hoje. Vamos ficar juntos e ouvir a palavra.
Tem idéias esquisitas; precisa de luz. Ouve-me, espera. Não vire as costas pra mim. Não vá se encontrar com aquela pervertida. Não ABRA A PORTA...
Seu rosto está roxo: acorda! Vejo as marcas de dedos no seu pescoço... Não fui eu, foi o dito cujo!
Abra os olhos, o papai tá aqui. Alguém, me ajude! Ouço sirenes... preciso sair daqui.
(*) Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
Auto-retrato, por Talis Andrade
Talis Andrade (*)
Pele clara
cabelos revoltos
sardas no rosto
nariz grande
para cheirar
as mulheres
nariz grande
para farejar
as mudanças
os perigos
a visão aguçada
para avistar
os inimigos
no embrenhado
das tocaias
o ouvido absoluto
para escutar
as difamações
ditas
pelas costas
a boca grande
para o festim
as santidades de comer
Chapeuzinho
Vermelho
- eis o retrato
três por quatro
da carteira
de identidade
o retrato oficial
que mostra
o rosto convencional
que a polícia
conhece
o rosto
que nada esclarece
sobre o coração
que não aparece
(Do livro “Cavalos da Miragem”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).
(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite,“Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).
Pele clara
cabelos revoltos
sardas no rosto
nariz grande
para cheirar
as mulheres
nariz grande
para farejar
as mudanças
os perigos
a visão aguçada
para avistar
os inimigos
no embrenhado
das tocaias
o ouvido absoluto
para escutar
as difamações
ditas
pelas costas
a boca grande
para o festim
as santidades de comer
Chapeuzinho
Vermelho
- eis o retrato
três por quatro
da carteira
de identidade
o retrato oficial
que mostra
o rosto convencional
que a polícia
conhece
o rosto
que nada esclarece
sobre o coração
que não aparece
(Do livro “Cavalos da Miragem”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).
(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite,“Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
E ela despediu-se de si, por Renata Alves
Renata Alves (*)
A dor era indescritível, como se um punhal houvesse sido cravado em seu peito. Sentia-se esvaziar, paulatinamente, como se aquela sensação nunca fosse acabar – talvez uma tática para nunca ser esquecida.
Olhou-se no espelho e não mais se reconheceu. De repente, viu a mulher forte que levou anos para construir, cruzar a porta sem olhar para trás.
Sentiu-se ninguém, sentiu-se alguém, sentiu muito, sentiu-se nada. E pensava...
Aquela que um dia disse nunca se resignar e abrir mão de seu ponto de vista, fechar os olhos ou silenciar-se para agradar a outrem. E pensava.
Dizem que algumas mulheres fazem coisas verdadeiramente insensatas por amor e dizem também que aquelas que não o fazem é porque nunca amaram. Duvidar? Acreditar? Ela simplesmente não sabia. Naquele momento apenas uma certeza: por ora basta.
Movida pela sua paixão deixou-se levar e permitiu-se, melhor, obrigou-se a abrir mão de algumas de suas convicções.
Valeria a pena? Não sabia, apenas pensava: por ora basta.
E a dor cresceu, cortou, rasgou, feriu. As lágrimas rolaram e ela chorou. Disse adeus? Não. A mulher, na verdade, não se foi, apenas se ausentou para melhor ser notada.
Palavras sem sentido de uma mente desconexa. Apenas uma visão pragmática dos fragmentos da vida.
(*) Jornalista
A dor era indescritível, como se um punhal houvesse sido cravado em seu peito. Sentia-se esvaziar, paulatinamente, como se aquela sensação nunca fosse acabar – talvez uma tática para nunca ser esquecida.
Olhou-se no espelho e não mais se reconheceu. De repente, viu a mulher forte que levou anos para construir, cruzar a porta sem olhar para trás.
Sentiu-se ninguém, sentiu-se alguém, sentiu muito, sentiu-se nada. E pensava...
Aquela que um dia disse nunca se resignar e abrir mão de seu ponto de vista, fechar os olhos ou silenciar-se para agradar a outrem. E pensava.
Dizem que algumas mulheres fazem coisas verdadeiramente insensatas por amor e dizem também que aquelas que não o fazem é porque nunca amaram. Duvidar? Acreditar? Ela simplesmente não sabia. Naquele momento apenas uma certeza: por ora basta.
Movida pela sua paixão deixou-se levar e permitiu-se, melhor, obrigou-se a abrir mão de algumas de suas convicções.
Valeria a pena? Não sabia, apenas pensava: por ora basta.
E a dor cresceu, cortou, rasgou, feriu. As lágrimas rolaram e ela chorou. Disse adeus? Não. A mulher, na verdade, não se foi, apenas se ausentou para melhor ser notada.
Palavras sem sentido de uma mente desconexa. Apenas uma visão pragmática dos fragmentos da vida.
(*) Jornalista
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Saudade de ti, meu pequeno, por Eduardo Murta
Eduardo Murta (*)
Amor de perdição paterna se vira pouco como aquele. Patrício convertido em mestre de cerimônias da pequena Tita. Se derretendo sem medidas a seus pés, adoçando-lhe desejos incondicionalmente. A caçula em laços de fita, se incumbia ele mesmo de bordar-lhe pintas ao rostinho barroco. Na curta história dos 9 anos, só não fora ainda apresentada a duendes. Tudo o mais lhe chegara ao patrimônio afetivo. Fosse em datas festivas, ou numa segunda-feira furtiva, o pai cuidava de surpreender-lhe.
A fizera crescer, assim, sob o signo do sonho: vê aquela estrela, a mais brilhante, ao centro? Vou trazer-lhe. Sente o vento pondo árvores em reverência absoluta? Farei com que se curve por você. Percebe o alfabeto desconexo, sem sentido? Zelarei a que forme palavras encantadoras, rimas e significados por ti.
Tita sorria, por ingênua. E haveria de sorrir, diante do campo de girassóis alinhados a sua homenagem. O amarelo celebrando a vida, desenhando seu nome às curvas do vale. Dos almoços sob a copa das gameleiras, reunindo o que mais lhe encantava: farofa de andu, carne de sereno, arroz carreteiro. Suspirava já de perceber a movimentação à cozinha, a lenha crepitando ao fogão de avó.
Ela se acostumara àquela cota de exageros caprichosos. A própria comunidade também se habituara. Mas dessa vez, Patrício passara dos limites. Daí o cerco à caminhonete tão logo ele estacionou na praça. Risonho. A gatinha amaria o presente de aniversário, estava seguro. Ainda que perdesse o ar de surpresa, porque a notícia se espalhou pronto se revelara. Inusual. Um pingüim em pleno coração do sertão.
Ia desfazendo as amarras da carroceria, e vislumbrou a menininha ao longe, fazendo poeira na descida do morro. Cachos namorando o vento. Vinha com feição risonha, infantil contentamento. Saltou diretamente dos braços do pai, roupa e tudo, para o container de gelo que abrigava o bichinho. Menor que ela. Foi se aproximando e o enlaçou em abraço que imitava reencontro de velhos amigos – longo, intenso, de entrega e acolhimento.
Era ele, creiam, postado à mesa exatamente ao lado do bolo de parabéns. Quase se esvaindo em calor. Ganhara o nome de Floquinho. Mais tarde, as posições se invertiam: a menina se espremendo entre os blocos gelados e um pingüim que começava a estranhar um ambiente a que não pertencia.
Vá lá que adorasse os mergulhos de cisterna, mas a presença no banco de escola do vilarejo ou os passeios pelo quintal sombreado, atado a uma coleirinha de cachorro, lhe faziam mal. Não demorou a que caísse em prostração. Estado febril, trêmulo, enfraquecido. Pai Patrício suspendeu as saídas da casinha congelada, tornou mais generosas as porções de peixe, e deu a se perguntar se agira bem em trazê-lo.
Deduziu que não. E se punha agora em dilema original. Tita pegara amor à criatura... Como dela se desfazer sem traço de mágoa? Matutou noite adentro e, pela manhã, a chamou. Disse que era conversa madura. Os olhinhos então marejaram, porque já sabia do desfecho. Pediu uma só coisa. Que fosse junto na despedida. Seguiram assim, pai, filha e Floquinho, atravessando o país rumo ao Sul continental. Cinco dias, cinco noites de estrada.O silêncio pesando feito um fardo.
São eles diante dos icebergs colossais. A imensidão da Patagônia desafiando, ela deixou sua sombra projetar-se à de Floquinho. Sugeria comunhão. Mergulhou os pés naquelas águas geladas, abotoou-lhe a correntinha em torno do pescoço. Levava sua foto. E ele mansamente partiu, até desaparecer à linha dos olhos. Compreendia, porque eram mesmo de reinos distintos. Inda assim, chora. Hoje aplaca lembranças chupando pedrinhas de gelo. Vendo tudo escorrer-lhe por entre os dedos, banhar-lhe o corpo. Degustando saudade intangível.
(*) Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
Amor de perdição paterna se vira pouco como aquele. Patrício convertido em mestre de cerimônias da pequena Tita. Se derretendo sem medidas a seus pés, adoçando-lhe desejos incondicionalmente. A caçula em laços de fita, se incumbia ele mesmo de bordar-lhe pintas ao rostinho barroco. Na curta história dos 9 anos, só não fora ainda apresentada a duendes. Tudo o mais lhe chegara ao patrimônio afetivo. Fosse em datas festivas, ou numa segunda-feira furtiva, o pai cuidava de surpreender-lhe.
A fizera crescer, assim, sob o signo do sonho: vê aquela estrela, a mais brilhante, ao centro? Vou trazer-lhe. Sente o vento pondo árvores em reverência absoluta? Farei com que se curve por você. Percebe o alfabeto desconexo, sem sentido? Zelarei a que forme palavras encantadoras, rimas e significados por ti.
Tita sorria, por ingênua. E haveria de sorrir, diante do campo de girassóis alinhados a sua homenagem. O amarelo celebrando a vida, desenhando seu nome às curvas do vale. Dos almoços sob a copa das gameleiras, reunindo o que mais lhe encantava: farofa de andu, carne de sereno, arroz carreteiro. Suspirava já de perceber a movimentação à cozinha, a lenha crepitando ao fogão de avó.
Ela se acostumara àquela cota de exageros caprichosos. A própria comunidade também se habituara. Mas dessa vez, Patrício passara dos limites. Daí o cerco à caminhonete tão logo ele estacionou na praça. Risonho. A gatinha amaria o presente de aniversário, estava seguro. Ainda que perdesse o ar de surpresa, porque a notícia se espalhou pronto se revelara. Inusual. Um pingüim em pleno coração do sertão.
Ia desfazendo as amarras da carroceria, e vislumbrou a menininha ao longe, fazendo poeira na descida do morro. Cachos namorando o vento. Vinha com feição risonha, infantil contentamento. Saltou diretamente dos braços do pai, roupa e tudo, para o container de gelo que abrigava o bichinho. Menor que ela. Foi se aproximando e o enlaçou em abraço que imitava reencontro de velhos amigos – longo, intenso, de entrega e acolhimento.
Era ele, creiam, postado à mesa exatamente ao lado do bolo de parabéns. Quase se esvaindo em calor. Ganhara o nome de Floquinho. Mais tarde, as posições se invertiam: a menina se espremendo entre os blocos gelados e um pingüim que começava a estranhar um ambiente a que não pertencia.
Vá lá que adorasse os mergulhos de cisterna, mas a presença no banco de escola do vilarejo ou os passeios pelo quintal sombreado, atado a uma coleirinha de cachorro, lhe faziam mal. Não demorou a que caísse em prostração. Estado febril, trêmulo, enfraquecido. Pai Patrício suspendeu as saídas da casinha congelada, tornou mais generosas as porções de peixe, e deu a se perguntar se agira bem em trazê-lo.
Deduziu que não. E se punha agora em dilema original. Tita pegara amor à criatura... Como dela se desfazer sem traço de mágoa? Matutou noite adentro e, pela manhã, a chamou. Disse que era conversa madura. Os olhinhos então marejaram, porque já sabia do desfecho. Pediu uma só coisa. Que fosse junto na despedida. Seguiram assim, pai, filha e Floquinho, atravessando o país rumo ao Sul continental. Cinco dias, cinco noites de estrada.O silêncio pesando feito um fardo.
São eles diante dos icebergs colossais. A imensidão da Patagônia desafiando, ela deixou sua sombra projetar-se à de Floquinho. Sugeria comunhão. Mergulhou os pés naquelas águas geladas, abotoou-lhe a correntinha em torno do pescoço. Levava sua foto. E ele mansamente partiu, até desaparecer à linha dos olhos. Compreendia, porque eram mesmo de reinos distintos. Inda assim, chora. Hoje aplaca lembranças chupando pedrinhas de gelo. Vendo tudo escorrer-lhe por entre os dedos, banhar-lhe o corpo. Degustando saudade intangível.
(*) Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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