terça-feira, 4 de novembro de 2008

Saudade de ti, meu pequeno, por Eduardo Murta

Eduardo Murta (*)



Amor de perdição paterna se vira pouco como aquele. Patrício convertido em mestre de cerimônias da pequena Tita. Se derretendo sem medidas a seus pés, adoçando-lhe desejos incondicionalmente. A caçula em laços de fita, se incumbia ele mesmo de bordar-lhe pintas ao rostinho barroco. Na curta história dos 9 anos, só não fora ainda apresentada a duendes. Tudo o mais lhe chegara ao patrimônio afetivo. Fosse em datas festivas, ou numa segunda-feira furtiva, o pai cuidava de surpreender-lhe.

A fizera crescer, assim, sob o signo do sonho: vê aquela estrela, a mais brilhante, ao centro? Vou trazer-lhe. Sente o vento pondo árvores em reverência absoluta? Farei com que se curve por você. Percebe o alfabeto desconexo, sem sentido? Zelarei a que forme palavras encantadoras, rimas e significados por ti.

Tita sorria, por ingênua. E haveria de sorrir, diante do campo de girassóis alinhados a sua homenagem. O amarelo celebrando a vida, desenhando seu nome às curvas do vale. Dos almoços sob a copa das gameleiras, reunindo o que mais lhe encantava: farofa de andu, carne de sereno, arroz carreteiro. Suspirava já de perceber a movimentação à cozinha, a lenha crepitando ao fogão de avó.

Ela se acostumara àquela cota de exageros caprichosos. A própria comunidade também se habituara. Mas dessa vez, Patrício passara dos limites. Daí o cerco à caminhonete tão logo ele estacionou na praça. Risonho. A gatinha amaria o presente de aniversário, estava seguro. Ainda que perdesse o ar de surpresa, porque a notícia se espalhou pronto se revelara. Inusual. Um pingüim em pleno coração do sertão.

Ia desfazendo as amarras da carroceria, e vislumbrou a menininha ao longe, fazendo poeira na descida do morro. Cachos namorando o vento. Vinha com feição risonha, infantil contentamento. Saltou diretamente dos braços do pai, roupa e tudo, para o container de gelo que abrigava o bichinho. Menor que ela. Foi se aproximando e o enlaçou em abraço que imitava reencontro de velhos amigos – longo, intenso, de entrega e acolhimento.

Era ele, creiam, postado à mesa exatamente ao lado do bolo de parabéns. Quase se esvaindo em calor. Ganhara o nome de Floquinho. Mais tarde, as posições se invertiam: a menina se espremendo entre os blocos gelados e um pingüim que começava a estranhar um ambiente a que não pertencia.

Vá lá que adorasse os mergulhos de cisterna, mas a presença no banco de escola do vilarejo ou os passeios pelo quintal sombreado, atado a uma coleirinha de cachorro, lhe faziam mal. Não demorou a que caísse em prostração. Estado febril, trêmulo, enfraquecido. Pai Patrício suspendeu as saídas da casinha congelada, tornou mais generosas as porções de peixe, e deu a se perguntar se agira bem em trazê-lo.

Deduziu que não. E se punha agora em dilema original. Tita pegara amor à criatura... Como dela se desfazer sem traço de mágoa? Matutou noite adentro e, pela manhã, a chamou. Disse que era conversa madura. Os olhinhos então marejaram, porque já sabia do desfecho. Pediu uma só coisa. Que fosse junto na despedida. Seguiram assim, pai, filha e Floquinho, atravessando o país rumo ao Sul continental. Cinco dias, cinco noites de estrada.O silêncio pesando feito um fardo.

São eles diante dos icebergs colossais. A imensidão da Patagônia desafiando, ela deixou sua sombra projetar-se à de Floquinho. Sugeria comunhão. Mergulhou os pés naquelas águas geladas, abotoou-lhe a correntinha em torno do pescoço. Levava sua foto. E ele mansamente partiu, até desaparecer à linha dos olhos. Compreendia, porque eram mesmo de reinos distintos. Inda assim, chora. Hoje aplaca lembranças chupando pedrinhas de gelo. Vendo tudo escorrer-lhe por entre os dedos, banhar-lhe o corpo. Degustando saudade intangível.

(*) Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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