Rodrigo Viana (*)
Não tem jeito. Todo Natal é assim: tempo de clausura interna. Deve haver um mecanismo bio/psicológico responsável por esse ato quase mecânico do ser humano ensimesmar-se em dezembro. A explicação pseudo-inteligente é a de que, percorrido o ano, chega o momento de analisarmos objetivos traçados, atingidos ou não. Mas não creio que essa internalização se explique assim, simplória.
Por trás desse aparente movimento reflexivo da alma, há um componente etéreo. Algo que transcende o mecânico-comportamental da época. Não sei dizer do que se trata. Talvez seja aquilo que nos impulsione a enviar mensagens de Natal pré-concebidas, nos slides toma-tempo da internet. Nada contra manifestações virtuais, mas confesso ter saudade de recebê-las pelo correio. Por esta, e outras, vou rabiscar meu desejo de próprio punho.
Escrevo aos que me acompanham a jornada do dia a dia. Também àqueles que me vêem em flashes, somente no de vez em quando da vida. Escrevo com a amargura do remédio que me engole durante o ano. Escrevo porque vivo docemente.
São 365 dias convivendo com pensamentos e sentimentos flutuando no mesmo espectro. São vários “começar do zero”. Vidas e mortes. Esperamos, mesmo contra toda a esperança. Um vir a ser possível, um refazimento.
De minha parte tentei, de todas as maneiras, escolher o lado certo da estrada. Por vezes não consegui. Meu lado humano, imperfeito, fez-se meu maior inimigo. E todo meu esforço do ano foi em combater minhas próprias inferioridades. Muitas vezes não tive forças para encaminhar minha proposta. Ou, simplesmente, fraquejei e aceitei a derrota.
Mas este é um texto novinho em folha. E como todo Natal vem acompanhado do ano novo, é sempre uma oportunidade de recomeço. Nascer, morrer e renascer, tal é a Lei. Nas palavras de Alan Kardek, recolho-me em mim mesmo, nos meus outros “eus” imanifestados. Escrevo minhas verdades maiores e aspirações honestas de um mundo melhor, sabendo que o primeiro passo é sempre meu. A decisão é interna.
Ao contrário da vida, a literatura é imortal, sobrevive aos tempos e ventos. Então escrevo para não morrer. Grito nas palavras um grito mudo e agudo na direção de vocês, caros amigos. Não houvesse esta presença, também não sobreviveria.
Desejo-lhes, por fim, um Natal refletido e um ano novo pós-concebido, mastigado e ruminado na certeza do aprendizado. Quem muito errou pode acertar mais e melhor.
Com o meus honestos votos de um Natal em Cristo e um Ano realmente Novo.
(*) Jornalista
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
Tempestade, por Aliene Coutinho
Aliene Coutinho (*)
Em dia de chuva,
através da janela
vê-se na rua,
nada.
Desenha-se em pingos
que descem pelo vidro
figuras inanimadas.
Busca-se no frio
o aconchego de braços
distantes.
Sente-se vencido pelo
som dos trovões
e adormece
cansado
pelo tempo.
(*) Jornalista e professora de Telejornalismo
Em dia de chuva,
através da janela
vê-se na rua,
nada.
Desenha-se em pingos
que descem pelo vidro
figuras inanimadas.
Busca-se no frio
o aconchego de braços
distantes.
Sente-se vencido pelo
som dos trovões
e adormece
cansado
pelo tempo.
(*) Jornalista e professora de Telejornalismo
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
Sentimento de urgência, por Risomar Fasanaro
Risomar Fasanaro (*)
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações. Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações. Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
domingo, 23 de agosto de 2009
Ansiedade dominical, por Luiz Delcides R. SilvaLuiz Delcides R. Silva (*)
Domingo à tarde, parecia que as ruas paulistanas estavam livres. Pelo contrário, o primeiro dia da semana é o dia das compras, da procura de um “apê”, da visita à família e do passeio com o cãozinho.
Uma avenida movimentada, muitos carros, famílias, pessoas ouvindo todos os estilos musicais. De repente, uma longa fila de automóveis, que atingia uma grande extensão da avenida e um congestionamento em pleno domingo.
O desespero toma conta dos motoristas, os igrejeiros começam a “jogar” os veículos e dar “fechadas”. No cruzamento da Avenida Aricanduva com a Avenida dos Latinos, a irritação, a raiva. Ao acender a lâmpada verde do semáforo, cidadãos desesperados, como uma largada de carros de corrida para cruzar a principal e seguir em direção a outras alternativas.
Artistas crentes que tinham que “passar o som” às cinco, pastor que iria fazer a “concentração”, tocador de violão que saía desesperado pelas avenidas da paulicéia para chegar no horário combinado com seus “parceiros” de palco.
Após muita correria, o artista chega ansioso, desesperado, afina o instrumento, pluga e passa o som. Um jovem, que fazia parte do backing vocal, passava a voz, todo cheio de estrelismo e interrompia a passagem para chamar a atenção do sonoplasta. Já, o “rapaz do som”, todo servil, estava disposto a ajudá-lo.
A passagem de som, que começaria às 17h00, teve um atraso de quarenta minutos. A estrela, o artista, o super-vocalista que não perdoava nenhuma “sobra” de freqüência, estavam lá fazendo caras e bocas, numa “humildade” fora do comum.
Enfim, os talentosos músicos tocaram e o ansioso tocador de violão, após 2 anos longe do palco da grande tenda, estava de volta, todo cheio, detalhista e mandando uns acordes e toques bastante interessantes, que seguravam as bases das melodias com firmeza.
No final, uma garota, toda simpática, vai cumprimentá-lo e o convida para sair com a sua turma. O músico e a bela moça saem, chegam na frente e iniciam a conversa. Depois, a turma chega com novos assuntos..
Ela não tirava o olho e sempre prestava atenção aos movimentos do rapaz. Quando o tocador de violão iniciava alguma conversa, ela cortava e quando sugeria algum lugar diferente ela discordava. Ao falar de Jazz e de alguns bares de São Paulo que tocam esse belo movimento rítmico norte-americano, ela torceu o nariz e já mandou um sonoro:
“NÃO GOSTO! QUERO IR NO METRÓPOLIS, LÁ TOCA ROCK!”
O jovem músico, com toda a sua simplicidade e singeleza, ficou na dele, deixou a “estrela” falar e educadamente a acompanhou até o seu automóvel. Não esboçou nenhuma reação para dar um amasso ou um beijo na boca e seguiu o seu caminho. Algumas pessoas, para o jovem instrumentista, como essa garota, desagradam e não têm a conveniência em aprender a respeitar e ter a curiosidade em conhecer novos lugares, novas pessoas. Perdeu “pontos” com o rapaz, moral da história.
(*) Luís Delcides R Silva, estudante de jornalismo, micro-empresário e escreve para o blog Casos Urbanos.
Uma avenida movimentada, muitos carros, famílias, pessoas ouvindo todos os estilos musicais. De repente, uma longa fila de automóveis, que atingia uma grande extensão da avenida e um congestionamento em pleno domingo.
O desespero toma conta dos motoristas, os igrejeiros começam a “jogar” os veículos e dar “fechadas”. No cruzamento da Avenida Aricanduva com a Avenida dos Latinos, a irritação, a raiva. Ao acender a lâmpada verde do semáforo, cidadãos desesperados, como uma largada de carros de corrida para cruzar a principal e seguir em direção a outras alternativas.
Artistas crentes que tinham que “passar o som” às cinco, pastor que iria fazer a “concentração”, tocador de violão que saía desesperado pelas avenidas da paulicéia para chegar no horário combinado com seus “parceiros” de palco.
Após muita correria, o artista chega ansioso, desesperado, afina o instrumento, pluga e passa o som. Um jovem, que fazia parte do backing vocal, passava a voz, todo cheio de estrelismo e interrompia a passagem para chamar a atenção do sonoplasta. Já, o “rapaz do som”, todo servil, estava disposto a ajudá-lo.
A passagem de som, que começaria às 17h00, teve um atraso de quarenta minutos. A estrela, o artista, o super-vocalista que não perdoava nenhuma “sobra” de freqüência, estavam lá fazendo caras e bocas, numa “humildade” fora do comum.
Enfim, os talentosos músicos tocaram e o ansioso tocador de violão, após 2 anos longe do palco da grande tenda, estava de volta, todo cheio, detalhista e mandando uns acordes e toques bastante interessantes, que seguravam as bases das melodias com firmeza.
No final, uma garota, toda simpática, vai cumprimentá-lo e o convida para sair com a sua turma. O músico e a bela moça saem, chegam na frente e iniciam a conversa. Depois, a turma chega com novos assuntos..
Ela não tirava o olho e sempre prestava atenção aos movimentos do rapaz. Quando o tocador de violão iniciava alguma conversa, ela cortava e quando sugeria algum lugar diferente ela discordava. Ao falar de Jazz e de alguns bares de São Paulo que tocam esse belo movimento rítmico norte-americano, ela torceu o nariz e já mandou um sonoro:
“NÃO GOSTO! QUERO IR NO METRÓPOLIS, LÁ TOCA ROCK!”
O jovem músico, com toda a sua simplicidade e singeleza, ficou na dele, deixou a “estrela” falar e educadamente a acompanhou até o seu automóvel. Não esboçou nenhuma reação para dar um amasso ou um beijo na boca e seguiu o seu caminho. Algumas pessoas, para o jovem instrumentista, como essa garota, desagradam e não têm a conveniência em aprender a respeitar e ter a curiosidade em conhecer novos lugares, novas pessoas. Perdeu “pontos” com o rapaz, moral da história.
(*) Luís Delcides R Silva, estudante de jornalismo, micro-empresário e escreve para o blog Casos Urbanos.
domingo, 16 de agosto de 2009
Sentimento de urgência, por Risomar Fasanaro
Risomar Fasanaro (*)
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações.
Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Amanheci hoje com um sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis, aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas, poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem: Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com essa coisa que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da Itália buscar os filhos porque não agüentava de saudade, mas os filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei, respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso, penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através das gerações.
Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga. Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha vida.
Será que todas as pessoas têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos, antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma também tem uma ampulheta...
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
domingo, 2 de agosto de 2009
Minha querida secretária eletrônica, por Juarez José Viaro
Juarez José Viaro (*)
Somos muito desumanos com nossos aparelhos eletrônicos. Na maioria das vezes não retribuímos a dedicação e fidelidade com que eles se empenham para nos prestarem serviços, faça sol ou faça chuva.
Esses abnegados auxiliares de nossos serviços domésticos e profissionais nem sempre recebem nossa atenção e carinho pelos serviços prestados em tantos anos de convivência. Quando lembramos de agradecer um aparelho de fax por ter transmitido documentos importantes de nossas vidas? Ou um aparelho telefônico de disco que durante anos foi fiel a nossos dedos quando esses buscaram números de algum ente querido para falar?
O avanço tecnológico tem sido muito cruel com esses aparelhos e nem sempre prestamos as devidas homenagens quando se tornam obsoletos e são substituídos por mais novos, mais avançados e mais eficientes.
Recentemente, minha velha secretária eletrônica veio a falecer... Depois de anos e anos prestados com fidelidade quase canina, anotando recados nem sempre educados de amigos e parentes, ela deixou de funcionar e partiu desta para uma melhor. Técnicos diagnosticaram pane eletrônica generalizada causada pela obsolescência de seus componentes que já não tinham reposição no mercado.
Pensei em prestar-lhe as devidas homenagens de praxe, nesse momento doloroso para mim. Segurei cuidadosamente sua caixa fria e envelhecida, envolvi com quatro cordões o corpo agora inerte e baixei vagarosamente na lata de lixo reciclável, numa cerimônia simples e solitária, mas cheia de emoção e saudades.
Minha secretária eletrônica foi assim sepultada e apagada de minha memória. Espero que minha nova secretária eletrônica, digital e moderna, faça jus na substituição de tão dedicada prestadora de serviços, que tantas saudades tem deixado.
(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.
Somos muito desumanos com nossos aparelhos eletrônicos. Na maioria das vezes não retribuímos a dedicação e fidelidade com que eles se empenham para nos prestarem serviços, faça sol ou faça chuva.
Esses abnegados auxiliares de nossos serviços domésticos e profissionais nem sempre recebem nossa atenção e carinho pelos serviços prestados em tantos anos de convivência. Quando lembramos de agradecer um aparelho de fax por ter transmitido documentos importantes de nossas vidas? Ou um aparelho telefônico de disco que durante anos foi fiel a nossos dedos quando esses buscaram números de algum ente querido para falar?
O avanço tecnológico tem sido muito cruel com esses aparelhos e nem sempre prestamos as devidas homenagens quando se tornam obsoletos e são substituídos por mais novos, mais avançados e mais eficientes.
Recentemente, minha velha secretária eletrônica veio a falecer... Depois de anos e anos prestados com fidelidade quase canina, anotando recados nem sempre educados de amigos e parentes, ela deixou de funcionar e partiu desta para uma melhor. Técnicos diagnosticaram pane eletrônica generalizada causada pela obsolescência de seus componentes que já não tinham reposição no mercado.
Pensei em prestar-lhe as devidas homenagens de praxe, nesse momento doloroso para mim. Segurei cuidadosamente sua caixa fria e envelhecida, envolvi com quatro cordões o corpo agora inerte e baixei vagarosamente na lata de lixo reciclável, numa cerimônia simples e solitária, mas cheia de emoção e saudades.
Minha secretária eletrônica foi assim sepultada e apagada de minha memória. Espero que minha nova secretária eletrônica, digital e moderna, faça jus na substituição de tão dedicada prestadora de serviços, que tantas saudades tem deixado.
(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.
segunda-feira, 27 de julho de 2009
O crime da negra, por Urariano Mota
Urariano Mota (*)
Era uma negra do cabelo bom, diziam. Qualificavam-na com essa valorização ambígua para realçar o seu gênero de fêmea, como uma ferradura impressa no crânio e na pele. Pois sendo negra, deveria ter o cabelo ruim, como chamavam e chamam o cabelo crespo, pixaim. Apesar de negra, aquela negra tinha um quê de beleza marcada a ferro ao nascer, o cabelo bom, e isso queria dizer, por extensão, que ela possuía boa bunda, coxas grossas, sexo no ponto de se comer. Era uma qualificação digna de uso por vendedores de cavalos, que assim qualificariam os seus dentes alvos, fortes, resistentes, se cavalos sorrissem, como ela.
Aquela negra tinha no cabelo a qualidade das negras de olhos verdes, das negras sararás, tórridas, quentes, que se montam e se cruzam como as cabras que agarradas, abraçadas, dão massagem no pênis com os músculos da vulva.
Para seus familiares, não, aquela negra, aquela fêmea que se fizera puta no conceito de toda a gente, era Elza, gostariam de dizer, mas apenas se referiam a ela por círculos, silêncios constrangidos, elipses, pois ela era a mulher que os cobrira de vergonha. E dizendo-a assim afastavam-se da sua parte ruim, pois se afastavam do seu cabelo bom, que se havia tornado uma qualidade especial de puta. Afastavam-se sem cortar os vínculos, no entanto, pois a ela se sentiam ligados por correntes, contra a própria vontade. Em mais de um sentido, eram seus semelhantes.
Uma das razões ocultas era que Elza não se misturou a um homem branco, ou a um mestiço de pele mais clara, que se assemelhasse a um branco. Tendo o cabelo bom, achou de se casar com um negro igual à sua pele, com o agravo do cabelo pixaim do macho. Está certo, os parentes dela reconheciam, o seu namorado era um rapaz estudioso, que seria um professor, e com isso cumpriam uma lei de perdas e ganhos relativos, ainda que não conhecessem tal lei por palavras faladas ou escritas. Esta era a troca: negro bom, ou de futuro, com mestiça ruim, porque sem grandes aspirações. Mas aqui, nessa troca, ainda não estava a gênese do crime cometido por Elza. O problema começou com o passo seguinte. Como uma surpresa má da lei de compensações relativas, ela, que não era branca, mas era uma fêmea de cabelo bom, casou-se e foi viver com os parentes do marido. Uma casa de 10 quartos, uma longa e comprida casa povoada de negros. Negros, só negros. Na pele, no cabelo, nos costumes, na conjunta perdição. Negros com o cheiro dos ferros na pele e o azinhavre dos metais com que trabalhavam, todos ferreiros, torneiros, mecânicos. Nove famílias de negros em uma só casa. Desse modo, Elza terminara por arrastar os parentes dela até os ancestrais, para os negros negros, e isto muito os avergonhava. O seu cabelo bom de nada adiantara. Ou melhor, ou pior, até que adiantara, porque o seu cabelo foi um componente da sua desgraça.
Abstraída a pujança de mulher saudável, forte, de encher as vistas, que poderia ser anunciada num mercado de escravos como uma negra de pernas sólidas, de colunas graciosamente curvas, de bunda grande, esférica, de Angola, de peitos rijos e bem pronunciados, de boca de lábios grossos, abstraída do seu valor de mercado e de danação, Elza possuía uma qualidade de espírito sob medida para o seu crime. Para melhor punição no mundo, a sua alma branca, mestiça, negra, a sua alma, enfim, era de uma inocência quase primitiva. De uma cor verde, de mato, de selva, se tivesse cor.
A qualidade do seu espírito só a distância, no tempo destas linhas escritas, é percebida. Flor do mandacaru, lembra, pelo desabrochar à noite. Flor de um cacto distante, não vista, de percepção a se formar, porque nos chegam dela relatos muito insensíveis, quase bárbaros, sobre a sua natureza. Como arqueólogos de um ser raro, temos que retirar as faixas sucessivas de incompreensão que cobrem a sua pessoa. É impressionante: pelos mais variados relatos, as percepções dela nos chegam sempre como acontecimentos de sua vida sentimental. Como se o seu sentimento, numa paródia, como se o seu sentimento fosse o seu destino. Como se a sua individualidade, a sua vida, já viesse montada numa seqüência de fatos, sentimentais, numa cadeia de fatos amorosos que só poderiam dar no seu crime. E pedimos aos que nos lêem agora o favor da humildade, para que não lhes fujam da retina os acontecimentos pequenos, que remetem à sua inocência. Evitem o sorriso, aquele, com que sorriam e zombavam dela os conhecedores experientes, os sábios do mundo.
Elza casou com o primeiro namorado. Um irmão dela assim contava um pequeno acontecimento desse namoro. “Uma vez a gente saiu, eu, Elza e Misael, para um cinema. Eu não me lembro do filme. Eu me lembro que ao sair, Misael pagou sorvete pra gente. Não sei se porque achou muito gelado, ou se porque Elza nunca havia provado antes, por que diabo foi, ela mal provou e deixou de lado o sorvete. Ela ficou com vergonha. Então eu disse: venha! Ela era muito besta, não era?”. Ao contar esse fato quase como um ato de bravura, de esperteza, o irmão esquece e deixa em sombra a fome que ambos passavam, o privilégio que era um sorvete nos anos 50, e vê nessa recusa de Elza, sem ver o próprio avanço animal, uma prova de retardamento mental da irmã, quase. “Venha!”. Ele não se constrange de contar isto.
(E penso nesta altura nas pequenas safadezas que todos cometemos um dia, e que nos envergonham por toda uma vida. Lembro agora, enquanto censuro esse homem, as mesquinharias de todos nós. São equivalentes ou bem piores que a contada. São piores no gênero, no geral da infâmia, lembro. Mas no episódio contado, simples, sem pretensão, choca mais o que está por trás das palavras ditas. Esse irmão conheceu o destino posterior da irmã, sabe da punição dura que ela sofreu, sabe da relação entre o namorado e os maus dias vividos por ela, e não a tendo mais junto a si, conta o assalto que deu no alimento que não lhe pertencia como quem conta uma brincadeira, um jogo de memória, de lembrança, para realçar a idiotice da mocinha envergonhada.)
“Venha”, nem precisava da ênfase da exclamação. No chamado já se encontra o lugar de mulher que Elza ocupava. Pois o que é a mulher dos anos 50 senão um ser generoso, só generosidade, que se abre, dá prazer e fornece a vida? Nos peitos, no sexo, no leite, fonte, escrava e mãe, que ao fim é sempre uma vaca que se abate, ou uma árvore que cai, depois do fruto e da semente, o que é essa mulher, a não ser isto? Ela era uma contradição da violência, que se escreve como um paradoxo: Um mundo com mulheres, para nosso gozo e usufruto, mas que seja um mundo sem mulheres, para nosso melhor gozo e usufruto. Uma escrava para nosso prazer, que lhe negamos. Venha, sempre.
Penso agora em uma particular Maria, penso em todas as Marias, penso na Santa Virgem Maria, quando penso em Elza: “Então Maria disse: Minha alma exalta o Senhor, e meu espírito se encheu de júbilo por causa de Deus, meu Salvador, porque ele pôs os olhos sobre a sua humilde serva”. Então Elza, com fome, deixou de lado o sorvete. “Venha”, o irmão disse, e Elza ficou a olhar, cheia de graça. Casou-se com o primeiro namorado, e com o destino, que voou, rápido e insuportavelmente breve.
O pai, homem rude, contava o que foi a estréia da filha no leito nupcial. O pai era um mulato que fazia da brutalidade o conteúdo, o sinal, a própria razão de ser do macho. “Bato num filho como quem bate num inimigo”, dizia. E da filha, que estava abaixo da brutalidade física reservada aos machos, o que diria dela? Numa relação de desconhecimento e desprezo, a filha aparecia-lhe nos momentos mais crus de sexualidade. Esses momentos deveriam ser destruídos, mais que contados, para que ele lhe arrancasse o hímen, ou melhor, deixasse-a sem, como se nunca houvesse existido, porque a sua destruição era um império. Pois a sua filha não seria uma puta, e ter sexo uma filha, para ele, era o mesmo que ser uma puta. O que diria da filha na noite de núpcias? Ele não diria, vale dizer, ele não inventaria os fatos ocorridos. A sua função, como a de todo bom contador de histórias, resumia-se em realçar dos acontecimentos o que mais lhe servisse aos objetivos. A sua diretriz, o peso da mão era certeiro, impactante, como um punch, um soco no queixo, um knock-out, ou como um chute de ponta de bico de metal de sapato no útero da filha. E para isso ele escolhia a ocasião, em noites de festa, aniversários, fins de ano, com a mesa repleta de convidados, presentes a filha e o marido, ele na cabeça da mesa a trovejar com voz de se ouvir nas casas vizinhas:
- Na primeira noite de casamento, Elza mijou na cama!
A filha baixava os olhos, com rubor na face escura, enquanto os risos estouravam, pelo uso do verbo mijar, em lugar do mais educado urinar, pela vergonha imposta à senhora casada, presente, que assim pagava, e sempre, e para sempre a falta de ser filha, não um filho digno de levar uma surra como um inimigo, a falta e o pecado de ter sexo de mulher para levar pica do mundo. Os risos rebentavam também como uma adulação, como um pagamentos dos convidados pela bebida e comida fartas. Não é gratuito dizer que até Elza ria, ria-se, sorria, como uma máscara para evitar o pior que a desonra pública. Sabia lá o que poderia vir do pai bêbado, prepotente, com toda corda e fogo da sua verve? O que seria se ele contasse que na primeira menstruação a filha correra pela sala, a gritar que tivera uma hemorragia, que estava a ponto de morrer? Que seria dela, ali na mesa, se ele achasse da melhor grosseria e comicidade gritar que os trapos e panos íntimos da filha, usados como absorventes, possuíam um cheiro tão forte que eram lavados às ocultas, pela madrugada? Que mais ele diria, com sua calorosa imaginação de vingança, para aviltá-la no sexo, por ter sexo, e ter aquele sexo de fêmea, de puta? O marido, covarde, covardão, também ria às espirituosas revelações do sogro. Não gargalhava mais alto porque seria um despropósito, um desrespeito ao chefe da casa, ao meio-dono da esposa. Misael sorria a meio rir, sorria educadamente, com a simpatia mais fingida dos seus olhos rasgados e negros, como a perguntar, enquanto mostrava os dentes, “O senhor, o senhor, quem pode com o senhor?”. Misael sorria também porque, por vias indiretas, era proclamado publicamente em sua macheza. Pois que membro tão vigoroso seria este que fez uma negra robusta mijar-se na cama?
É interessante notar que a urina de Elza não era contada como um gozo, como uma chuva de orgasmo, ou como uma reação de dor, do rasgar-se de dor um hímen rompido à ponta de ferro. A urina, o mijo de Elza, era apenas uma prova do quanto ela era desajeitada, inábil, em cenas e atos de sexo. Tão estúpida era que se mijava, em vez de sangrar. Em lugar do sangue, urina, como os comediantes que em lugar de comer recebem tortas pela cara, ou tão cômica quanto um adulto que em público usasse fralda e mamadeira, ou como um palhaço que tivesse um coração desenhado no cu, no largo traseiro de seda. A urina na primeira noite deveria ser a expressão do quanto era inadequada a filha para o coito – sexo, para a filha, não teria orgasmo, porque a vulva da filha era um órgão de mijar.
O crime de Elza passou então a ser feito. Paciente, lenta e furtivamente. Um crime em que ela não era agente, era a mão que obedecia às circunstâncias. Em meio a nove famílias de negros, ela, que não era tão negra, agravava a sua condição como esposa de um quase negro, pois que ele era um estudante, fadado a sair da quase aldeia. Mulher de um negro de passagem. Mulher de malungo provisório. Mulher ruim, mulher bruxa. Não lhe serviram os cinco filhos paridos de Misael, porque ela era observada por todos os cantos da comprida casa, por todos os recantos do longo quintal, noite e dia, perseguida até no buraco da fechadura, nas moitas dos muros, por entre a folhagem das árvores. Desejada e invocada era a sua queda. E assim, de tal maneira observada, Elza cometeu o seu crime. Sem nenhum heroísmo, sem revolta ou rancor. Cometeu-o porque assim o quiseram. E aqui, mais uma vez, sabemos e transmitimos o que dela contavam.
O soldador Efésio uma tarde passou-lhe a mão na bunda, diziam. As indicações desse ato eram bem ricas. Efésio era um homem alto, forte, glabro. Musculoso como um guerreiro, como a estampa de um vilão negro dos filmes de Tarzan. Sem camisa, a expor o peito escuro e montanhoso, agiu menos por um impulso que por uma história prévia, anterior ao passar a mão na bunda de Elza, diziam. E assim diziam porque, acrescentavam, ela sorrira ao atrevimento como se recebesse uma corte, um galanteio de um namorado, diziam. E assim dizendo, apontavam como indício de prova a grande e desejosa bunda de Elza. Bunda de Angola, bunda legítima e aperfeiçoada, que exposta aos requebros ao passar próxima a um macho era um convite, irrecusável, porque é dos machos machos a bunda bunda. E ao receber o convidado ela sorrira, diziam. E apontavam como segura prova o seu silêncio, e para melhor contundência da prova acrescentavam, “quem cala consente, é do adágio”. E Elza de fato calou, porque sorrira, porque tivera uma história anterior, porque recebera um afago vigoroso na bunda, diziam, nessa ordem, numa lógica infernal.
- Cadê que ela falou? Calou porque gostou, diziam.
Dona Sinhá, tia do marido, uma velha tísica, “seca de sexo”, pelo que lhe gritavam as sobrinhas, quando brigavam com ela, Dona Sinhá completava o que diziam: “Depois de sorrir, ela olhou para os lados, assustada”. Com esse fato consumado, ajuntava, fina: “Que sorrir ela sorri pra tudo que é macho. Mas por que olhou de banda, assustada? Quem não deve, não teme”. Desse ponto Elza teria piscado um olho para o enamorado e saído aos requebros, “para atiçar o homem”.
Diziam, e assim dizendo pouco se importavam com a segunda natureza plantada, com a redução da pessoa da mulher a uma bunda, com a nova pele que impunham na alma que possuíra vergonha de um sorvete e que se urinara na cama. Na verdade, consciência culpada da perseguição, consciência sabedora do sofrimento que lhe faziam, as nove famílias achavam natural que uma esposa sem privacidade, asfixiada, sem ar naquele minúsculo povoado da casa comprida, na verdade achavam natural que essa mulher procurasse homem diferente do marido. Pois era assim que aquela bruxa se vingava: com a bunda oferecida ao primeiro desclassificado. Do mesmo nível que ela. Meneando o traseiro gordo e engordado pelo trabalho da gente. “Era a vingança”, em consciência íntima diziam, para acrescentar, em voz alta, de “puta”.
Então o crime cresceu e ganhou a sua definitiva prova. Como uma ligação necessária entre o requebro, entre o expor a bunda à mão afoita, entre o sorriso à mão e a cama, como um fio lácteo de secreção, a colar os fatos, então houve o bilhete. Ninguém jamais teve a ousadia de perguntar se as linhas escritas do crime existiram. Aceitaram-nas como existentes. Assim como se dão por vistas, porque imaginadas, as linhas do rosto desfigurado de um defunto. Sem a vista material e objetiva das linhas, o bilhete dizia o que as diferentes versões e pessoas da comunidade diziam. Quando escrito pelo amante, assim se escrevia: “Elza, espero-te hoje às 8 da noite, por trás da oficina”. Ou “Elza, hoje de noite, no lugar de sempre, sem falta”. Ou então, “Debaixo do pé de jambo, de noite”. Nas versões atribuídas à infiel, o bilhete vinha dessa maneira: “Efésio, querido, hoje de noite. Um beijo bem forte”. Ou então, ainda: “Efésio, olha para mim, de vez em quando. Beijos. Elza, a sua mulher”.
Depois do bilhete, ou dos bilhetes, o soldador não foi morto ou sequer ameaçado. Pelo contrário, dir-se-ia que, aos olhos das virtuosas mulheres da comunidade, o seu perfil de macho e guerreiro foi muito valorizado. Quem sabe, saudado até com abraços e carinhos mais ardentes, reais e verdadeiros. Mas disso não há registros, escritos ou de boatos. O que há, com absoluta certeza, é que depois dos bilhetes as línguas de fogo voltaram-se contra Elza, e com todo ardor expulsaram-na, deixando-lhe o direito de carregar uma trouxa de trapos. Sem os filhos, que mãe vadia não tem filhos, conforme o costume.
Isto se sabe. Os registros de memória dos irmãos atestam, nebulosamente, que ela sobreviveu depois como empregada doméstica, lavando e passando roupas numa casa burguesa. Sabe-se por fim que faleceu depois de se jogar à frente das rodas de um táxi, ou depois de um aborto, num dos açougues clandestinos para mulheres no Recife. Em uma e outra hipótese, as línguas são unânimes, ela morreu grávida do soldador Efésio. Desajeitada no amor até o fim. A negra, que todos diziam ser do cabelo bom.
(*) Urariano Mota é jornalista e escritor. Tem colaborado em sites da Espanha, de Portugal, da Rússia (no Pravda) e do Brasil. Publicou o romance Os Corações Futuristas, e tem inédito O caso Dom Vital, ainda à procura de editor.
Era uma negra do cabelo bom, diziam. Qualificavam-na com essa valorização ambígua para realçar o seu gênero de fêmea, como uma ferradura impressa no crânio e na pele. Pois sendo negra, deveria ter o cabelo ruim, como chamavam e chamam o cabelo crespo, pixaim. Apesar de negra, aquela negra tinha um quê de beleza marcada a ferro ao nascer, o cabelo bom, e isso queria dizer, por extensão, que ela possuía boa bunda, coxas grossas, sexo no ponto de se comer. Era uma qualificação digna de uso por vendedores de cavalos, que assim qualificariam os seus dentes alvos, fortes, resistentes, se cavalos sorrissem, como ela.
Aquela negra tinha no cabelo a qualidade das negras de olhos verdes, das negras sararás, tórridas, quentes, que se montam e se cruzam como as cabras que agarradas, abraçadas, dão massagem no pênis com os músculos da vulva.
Para seus familiares, não, aquela negra, aquela fêmea que se fizera puta no conceito de toda a gente, era Elza, gostariam de dizer, mas apenas se referiam a ela por círculos, silêncios constrangidos, elipses, pois ela era a mulher que os cobrira de vergonha. E dizendo-a assim afastavam-se da sua parte ruim, pois se afastavam do seu cabelo bom, que se havia tornado uma qualidade especial de puta. Afastavam-se sem cortar os vínculos, no entanto, pois a ela se sentiam ligados por correntes, contra a própria vontade. Em mais de um sentido, eram seus semelhantes.
Uma das razões ocultas era que Elza não se misturou a um homem branco, ou a um mestiço de pele mais clara, que se assemelhasse a um branco. Tendo o cabelo bom, achou de se casar com um negro igual à sua pele, com o agravo do cabelo pixaim do macho. Está certo, os parentes dela reconheciam, o seu namorado era um rapaz estudioso, que seria um professor, e com isso cumpriam uma lei de perdas e ganhos relativos, ainda que não conhecessem tal lei por palavras faladas ou escritas. Esta era a troca: negro bom, ou de futuro, com mestiça ruim, porque sem grandes aspirações. Mas aqui, nessa troca, ainda não estava a gênese do crime cometido por Elza. O problema começou com o passo seguinte. Como uma surpresa má da lei de compensações relativas, ela, que não era branca, mas era uma fêmea de cabelo bom, casou-se e foi viver com os parentes do marido. Uma casa de 10 quartos, uma longa e comprida casa povoada de negros. Negros, só negros. Na pele, no cabelo, nos costumes, na conjunta perdição. Negros com o cheiro dos ferros na pele e o azinhavre dos metais com que trabalhavam, todos ferreiros, torneiros, mecânicos. Nove famílias de negros em uma só casa. Desse modo, Elza terminara por arrastar os parentes dela até os ancestrais, para os negros negros, e isto muito os avergonhava. O seu cabelo bom de nada adiantara. Ou melhor, ou pior, até que adiantara, porque o seu cabelo foi um componente da sua desgraça.
Abstraída a pujança de mulher saudável, forte, de encher as vistas, que poderia ser anunciada num mercado de escravos como uma negra de pernas sólidas, de colunas graciosamente curvas, de bunda grande, esférica, de Angola, de peitos rijos e bem pronunciados, de boca de lábios grossos, abstraída do seu valor de mercado e de danação, Elza possuía uma qualidade de espírito sob medida para o seu crime. Para melhor punição no mundo, a sua alma branca, mestiça, negra, a sua alma, enfim, era de uma inocência quase primitiva. De uma cor verde, de mato, de selva, se tivesse cor.
A qualidade do seu espírito só a distância, no tempo destas linhas escritas, é percebida. Flor do mandacaru, lembra, pelo desabrochar à noite. Flor de um cacto distante, não vista, de percepção a se formar, porque nos chegam dela relatos muito insensíveis, quase bárbaros, sobre a sua natureza. Como arqueólogos de um ser raro, temos que retirar as faixas sucessivas de incompreensão que cobrem a sua pessoa. É impressionante: pelos mais variados relatos, as percepções dela nos chegam sempre como acontecimentos de sua vida sentimental. Como se o seu sentimento, numa paródia, como se o seu sentimento fosse o seu destino. Como se a sua individualidade, a sua vida, já viesse montada numa seqüência de fatos, sentimentais, numa cadeia de fatos amorosos que só poderiam dar no seu crime. E pedimos aos que nos lêem agora o favor da humildade, para que não lhes fujam da retina os acontecimentos pequenos, que remetem à sua inocência. Evitem o sorriso, aquele, com que sorriam e zombavam dela os conhecedores experientes, os sábios do mundo.
Elza casou com o primeiro namorado. Um irmão dela assim contava um pequeno acontecimento desse namoro. “Uma vez a gente saiu, eu, Elza e Misael, para um cinema. Eu não me lembro do filme. Eu me lembro que ao sair, Misael pagou sorvete pra gente. Não sei se porque achou muito gelado, ou se porque Elza nunca havia provado antes, por que diabo foi, ela mal provou e deixou de lado o sorvete. Ela ficou com vergonha. Então eu disse: venha! Ela era muito besta, não era?”. Ao contar esse fato quase como um ato de bravura, de esperteza, o irmão esquece e deixa em sombra a fome que ambos passavam, o privilégio que era um sorvete nos anos 50, e vê nessa recusa de Elza, sem ver o próprio avanço animal, uma prova de retardamento mental da irmã, quase. “Venha!”. Ele não se constrange de contar isto.
(E penso nesta altura nas pequenas safadezas que todos cometemos um dia, e que nos envergonham por toda uma vida. Lembro agora, enquanto censuro esse homem, as mesquinharias de todos nós. São equivalentes ou bem piores que a contada. São piores no gênero, no geral da infâmia, lembro. Mas no episódio contado, simples, sem pretensão, choca mais o que está por trás das palavras ditas. Esse irmão conheceu o destino posterior da irmã, sabe da punição dura que ela sofreu, sabe da relação entre o namorado e os maus dias vividos por ela, e não a tendo mais junto a si, conta o assalto que deu no alimento que não lhe pertencia como quem conta uma brincadeira, um jogo de memória, de lembrança, para realçar a idiotice da mocinha envergonhada.)
“Venha”, nem precisava da ênfase da exclamação. No chamado já se encontra o lugar de mulher que Elza ocupava. Pois o que é a mulher dos anos 50 senão um ser generoso, só generosidade, que se abre, dá prazer e fornece a vida? Nos peitos, no sexo, no leite, fonte, escrava e mãe, que ao fim é sempre uma vaca que se abate, ou uma árvore que cai, depois do fruto e da semente, o que é essa mulher, a não ser isto? Ela era uma contradição da violência, que se escreve como um paradoxo: Um mundo com mulheres, para nosso gozo e usufruto, mas que seja um mundo sem mulheres, para nosso melhor gozo e usufruto. Uma escrava para nosso prazer, que lhe negamos. Venha, sempre.
Penso agora em uma particular Maria, penso em todas as Marias, penso na Santa Virgem Maria, quando penso em Elza: “Então Maria disse: Minha alma exalta o Senhor, e meu espírito se encheu de júbilo por causa de Deus, meu Salvador, porque ele pôs os olhos sobre a sua humilde serva”. Então Elza, com fome, deixou de lado o sorvete. “Venha”, o irmão disse, e Elza ficou a olhar, cheia de graça. Casou-se com o primeiro namorado, e com o destino, que voou, rápido e insuportavelmente breve.
O pai, homem rude, contava o que foi a estréia da filha no leito nupcial. O pai era um mulato que fazia da brutalidade o conteúdo, o sinal, a própria razão de ser do macho. “Bato num filho como quem bate num inimigo”, dizia. E da filha, que estava abaixo da brutalidade física reservada aos machos, o que diria dela? Numa relação de desconhecimento e desprezo, a filha aparecia-lhe nos momentos mais crus de sexualidade. Esses momentos deveriam ser destruídos, mais que contados, para que ele lhe arrancasse o hímen, ou melhor, deixasse-a sem, como se nunca houvesse existido, porque a sua destruição era um império. Pois a sua filha não seria uma puta, e ter sexo uma filha, para ele, era o mesmo que ser uma puta. O que diria da filha na noite de núpcias? Ele não diria, vale dizer, ele não inventaria os fatos ocorridos. A sua função, como a de todo bom contador de histórias, resumia-se em realçar dos acontecimentos o que mais lhe servisse aos objetivos. A sua diretriz, o peso da mão era certeiro, impactante, como um punch, um soco no queixo, um knock-out, ou como um chute de ponta de bico de metal de sapato no útero da filha. E para isso ele escolhia a ocasião, em noites de festa, aniversários, fins de ano, com a mesa repleta de convidados, presentes a filha e o marido, ele na cabeça da mesa a trovejar com voz de se ouvir nas casas vizinhas:
- Na primeira noite de casamento, Elza mijou na cama!
A filha baixava os olhos, com rubor na face escura, enquanto os risos estouravam, pelo uso do verbo mijar, em lugar do mais educado urinar, pela vergonha imposta à senhora casada, presente, que assim pagava, e sempre, e para sempre a falta de ser filha, não um filho digno de levar uma surra como um inimigo, a falta e o pecado de ter sexo de mulher para levar pica do mundo. Os risos rebentavam também como uma adulação, como um pagamentos dos convidados pela bebida e comida fartas. Não é gratuito dizer que até Elza ria, ria-se, sorria, como uma máscara para evitar o pior que a desonra pública. Sabia lá o que poderia vir do pai bêbado, prepotente, com toda corda e fogo da sua verve? O que seria se ele contasse que na primeira menstruação a filha correra pela sala, a gritar que tivera uma hemorragia, que estava a ponto de morrer? Que seria dela, ali na mesa, se ele achasse da melhor grosseria e comicidade gritar que os trapos e panos íntimos da filha, usados como absorventes, possuíam um cheiro tão forte que eram lavados às ocultas, pela madrugada? Que mais ele diria, com sua calorosa imaginação de vingança, para aviltá-la no sexo, por ter sexo, e ter aquele sexo de fêmea, de puta? O marido, covarde, covardão, também ria às espirituosas revelações do sogro. Não gargalhava mais alto porque seria um despropósito, um desrespeito ao chefe da casa, ao meio-dono da esposa. Misael sorria a meio rir, sorria educadamente, com a simpatia mais fingida dos seus olhos rasgados e negros, como a perguntar, enquanto mostrava os dentes, “O senhor, o senhor, quem pode com o senhor?”. Misael sorria também porque, por vias indiretas, era proclamado publicamente em sua macheza. Pois que membro tão vigoroso seria este que fez uma negra robusta mijar-se na cama?
É interessante notar que a urina de Elza não era contada como um gozo, como uma chuva de orgasmo, ou como uma reação de dor, do rasgar-se de dor um hímen rompido à ponta de ferro. A urina, o mijo de Elza, era apenas uma prova do quanto ela era desajeitada, inábil, em cenas e atos de sexo. Tão estúpida era que se mijava, em vez de sangrar. Em lugar do sangue, urina, como os comediantes que em lugar de comer recebem tortas pela cara, ou tão cômica quanto um adulto que em público usasse fralda e mamadeira, ou como um palhaço que tivesse um coração desenhado no cu, no largo traseiro de seda. A urina na primeira noite deveria ser a expressão do quanto era inadequada a filha para o coito – sexo, para a filha, não teria orgasmo, porque a vulva da filha era um órgão de mijar.
O crime de Elza passou então a ser feito. Paciente, lenta e furtivamente. Um crime em que ela não era agente, era a mão que obedecia às circunstâncias. Em meio a nove famílias de negros, ela, que não era tão negra, agravava a sua condição como esposa de um quase negro, pois que ele era um estudante, fadado a sair da quase aldeia. Mulher de um negro de passagem. Mulher de malungo provisório. Mulher ruim, mulher bruxa. Não lhe serviram os cinco filhos paridos de Misael, porque ela era observada por todos os cantos da comprida casa, por todos os recantos do longo quintal, noite e dia, perseguida até no buraco da fechadura, nas moitas dos muros, por entre a folhagem das árvores. Desejada e invocada era a sua queda. E assim, de tal maneira observada, Elza cometeu o seu crime. Sem nenhum heroísmo, sem revolta ou rancor. Cometeu-o porque assim o quiseram. E aqui, mais uma vez, sabemos e transmitimos o que dela contavam.
O soldador Efésio uma tarde passou-lhe a mão na bunda, diziam. As indicações desse ato eram bem ricas. Efésio era um homem alto, forte, glabro. Musculoso como um guerreiro, como a estampa de um vilão negro dos filmes de Tarzan. Sem camisa, a expor o peito escuro e montanhoso, agiu menos por um impulso que por uma história prévia, anterior ao passar a mão na bunda de Elza, diziam. E assim diziam porque, acrescentavam, ela sorrira ao atrevimento como se recebesse uma corte, um galanteio de um namorado, diziam. E assim dizendo, apontavam como indício de prova a grande e desejosa bunda de Elza. Bunda de Angola, bunda legítima e aperfeiçoada, que exposta aos requebros ao passar próxima a um macho era um convite, irrecusável, porque é dos machos machos a bunda bunda. E ao receber o convidado ela sorrira, diziam. E apontavam como segura prova o seu silêncio, e para melhor contundência da prova acrescentavam, “quem cala consente, é do adágio”. E Elza de fato calou, porque sorrira, porque tivera uma história anterior, porque recebera um afago vigoroso na bunda, diziam, nessa ordem, numa lógica infernal.
- Cadê que ela falou? Calou porque gostou, diziam.
Dona Sinhá, tia do marido, uma velha tísica, “seca de sexo”, pelo que lhe gritavam as sobrinhas, quando brigavam com ela, Dona Sinhá completava o que diziam: “Depois de sorrir, ela olhou para os lados, assustada”. Com esse fato consumado, ajuntava, fina: “Que sorrir ela sorri pra tudo que é macho. Mas por que olhou de banda, assustada? Quem não deve, não teme”. Desse ponto Elza teria piscado um olho para o enamorado e saído aos requebros, “para atiçar o homem”.
Diziam, e assim dizendo pouco se importavam com a segunda natureza plantada, com a redução da pessoa da mulher a uma bunda, com a nova pele que impunham na alma que possuíra vergonha de um sorvete e que se urinara na cama. Na verdade, consciência culpada da perseguição, consciência sabedora do sofrimento que lhe faziam, as nove famílias achavam natural que uma esposa sem privacidade, asfixiada, sem ar naquele minúsculo povoado da casa comprida, na verdade achavam natural que essa mulher procurasse homem diferente do marido. Pois era assim que aquela bruxa se vingava: com a bunda oferecida ao primeiro desclassificado. Do mesmo nível que ela. Meneando o traseiro gordo e engordado pelo trabalho da gente. “Era a vingança”, em consciência íntima diziam, para acrescentar, em voz alta, de “puta”.
Então o crime cresceu e ganhou a sua definitiva prova. Como uma ligação necessária entre o requebro, entre o expor a bunda à mão afoita, entre o sorriso à mão e a cama, como um fio lácteo de secreção, a colar os fatos, então houve o bilhete. Ninguém jamais teve a ousadia de perguntar se as linhas escritas do crime existiram. Aceitaram-nas como existentes. Assim como se dão por vistas, porque imaginadas, as linhas do rosto desfigurado de um defunto. Sem a vista material e objetiva das linhas, o bilhete dizia o que as diferentes versões e pessoas da comunidade diziam. Quando escrito pelo amante, assim se escrevia: “Elza, espero-te hoje às 8 da noite, por trás da oficina”. Ou “Elza, hoje de noite, no lugar de sempre, sem falta”. Ou então, “Debaixo do pé de jambo, de noite”. Nas versões atribuídas à infiel, o bilhete vinha dessa maneira: “Efésio, querido, hoje de noite. Um beijo bem forte”. Ou então, ainda: “Efésio, olha para mim, de vez em quando. Beijos. Elza, a sua mulher”.
Depois do bilhete, ou dos bilhetes, o soldador não foi morto ou sequer ameaçado. Pelo contrário, dir-se-ia que, aos olhos das virtuosas mulheres da comunidade, o seu perfil de macho e guerreiro foi muito valorizado. Quem sabe, saudado até com abraços e carinhos mais ardentes, reais e verdadeiros. Mas disso não há registros, escritos ou de boatos. O que há, com absoluta certeza, é que depois dos bilhetes as línguas de fogo voltaram-se contra Elza, e com todo ardor expulsaram-na, deixando-lhe o direito de carregar uma trouxa de trapos. Sem os filhos, que mãe vadia não tem filhos, conforme o costume.
Isto se sabe. Os registros de memória dos irmãos atestam, nebulosamente, que ela sobreviveu depois como empregada doméstica, lavando e passando roupas numa casa burguesa. Sabe-se por fim que faleceu depois de se jogar à frente das rodas de um táxi, ou depois de um aborto, num dos açougues clandestinos para mulheres no Recife. Em uma e outra hipótese, as línguas são unânimes, ela morreu grávida do soldador Efésio. Desajeitada no amor até o fim. A negra, que todos diziam ser do cabelo bom.
(*) Urariano Mota é jornalista e escritor. Tem colaborado em sites da Espanha, de Portugal, da Rússia (no Pravda) e do Brasil. Publicou o romance Os Corações Futuristas, e tem inédito O caso Dom Vital, ainda à procura de editor.
terça-feira, 21 de julho de 2009
Diário Machu Picchu I, por Fábio de Lima
Fábio de Lima (*)
Só hoje publico meu primeiro texto de 2009 aqui no Comunique-se. Tirei umas férias merecidas e resolvi viajar ao Peru. Meu destino final era Machu Picchu, a cidade perdida dos Incas. Mas, já em 1911, ela foi encontrada pelo aventureiro Hiram Bingham. Talvez outras pessoas já a houvesse encontrada antes, mas quis a história que Bingham ficasse conhecido como o homem que popularizou a descoberta.
No Peru estive hospedado na cidade de Cuzco. A cidade está mais de 1.100 km distante de Lima, numa altitude de cerca de 3.400 metros, e tem apenas 300 mil habitantes – embora receba mais de 1,5 milhão de turistas todo o ano. Ela foi uma espécie de capital do povo Inca e hoje encanta os turistas não só pelas inúmeras construções de estilo colonial, mas também pelos diversos idiomas falados pelas ruas da cidade e, ainda, pelo grande número de sítios arqueológicos em seus arredores.
Eu sempre gostei de paisagens antigas, com jeito de esquecidas. Pensando bem, eu sempre gostei do passado. Então, andando pelas ruas estreitas de Cuzco, que significa umbigo do mundo em quechua, idioma herdado dos Incas e que, ainda hoje, boa parte dos nascidos em Cuzco fala, paralelamente ao espanhol, tive grandes alegrias em olhar o passado valorizado e preservado, seja pelos habitantes locais ou pelos turistas estupefatos com tanta beleza.
Os espanhóis chegaram a Cuzco em 1532 e destruíram quase toda a cidade – só reaproveitando as ruínas de pedras para erguerem suas moradias e igrejas. Eles tentaram apagar a história do povo Inca. Só tentaram. Quanto mais oprimiram aquele povo mais forte as suas raízes e culturas ficaram. Se hoje, todos os anos, milhões de pessoas deixam seus países para visitar o Peru, um país pobre de uma América do Sul pobre, é por que lá existe um povo que nunca abaixou a cabeça, mesmo diante da derrota.
(Continua na próxima semana...)
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta
Só hoje publico meu primeiro texto de 2009 aqui no Comunique-se. Tirei umas férias merecidas e resolvi viajar ao Peru. Meu destino final era Machu Picchu, a cidade perdida dos Incas. Mas, já em 1911, ela foi encontrada pelo aventureiro Hiram Bingham. Talvez outras pessoas já a houvesse encontrada antes, mas quis a história que Bingham ficasse conhecido como o homem que popularizou a descoberta.
No Peru estive hospedado na cidade de Cuzco. A cidade está mais de 1.100 km distante de Lima, numa altitude de cerca de 3.400 metros, e tem apenas 300 mil habitantes – embora receba mais de 1,5 milhão de turistas todo o ano. Ela foi uma espécie de capital do povo Inca e hoje encanta os turistas não só pelas inúmeras construções de estilo colonial, mas também pelos diversos idiomas falados pelas ruas da cidade e, ainda, pelo grande número de sítios arqueológicos em seus arredores.
Eu sempre gostei de paisagens antigas, com jeito de esquecidas. Pensando bem, eu sempre gostei do passado. Então, andando pelas ruas estreitas de Cuzco, que significa umbigo do mundo em quechua, idioma herdado dos Incas e que, ainda hoje, boa parte dos nascidos em Cuzco fala, paralelamente ao espanhol, tive grandes alegrias em olhar o passado valorizado e preservado, seja pelos habitantes locais ou pelos turistas estupefatos com tanta beleza.
Os espanhóis chegaram a Cuzco em 1532 e destruíram quase toda a cidade – só reaproveitando as ruínas de pedras para erguerem suas moradias e igrejas. Eles tentaram apagar a história do povo Inca. Só tentaram. Quanto mais oprimiram aquele povo mais forte as suas raízes e culturas ficaram. Se hoje, todos os anos, milhões de pessoas deixam seus países para visitar o Peru, um país pobre de uma América do Sul pobre, é por que lá existe um povo que nunca abaixou a cabeça, mesmo diante da derrota.
(Continua na próxima semana...)
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta
domingo, 12 de julho de 2009
Emoções soltas, por Flávia Gomes
Flávia Gomes (*)
O que fazer quando a única vontade é de chorar? Por que o conselho não é o mesmo quando me dizem para sorrir? As emoções deveriam ser equilibradas. E o conselho deveria sempre ser: ponha para fora suas vontades. Essa mania de controle. Quem somos nós para controlar nossas emoções?
Acredito que todos desejariam ter seus próprios controles ao alcance da mão. Quem sabe um controle-remoto para que pudéssemos zapear dentro de nossos próprios canais. A programação de uma vida. Ou uma vida muito menos programada. Tiraríamos os medos, frustrações? Perguntaríamos mais, arriscaríamos mais?
O que faríamos para não deixar o medo da resposta sufocar a pergunta? Como viver deixando tudo para trás e ficando leve, carregando apenas o que necessitamos na jornada a cada instante? Mas jornada para onde? Como saber o que é preciso carregar? A cabeça pesa tanto quanto a mochila cheia de tralhas. Que bom seria viver a vida sem carregar nada! Imagine a leveza de cada um de nós. Talvez desse até para voar.
Carregaríamos apenas corações remendados, com pedaços de outros, com alguns buracos. Um coração parecido com uma colcha de retalhos. Cada emoção com uma cor, uma estampa, um desenho diferente. Falaríamos com todos pelo caminho, satisfazendo todas as nossas vontades. Vivendo um dia de cada vez.
(*) Jornalista.
O que fazer quando a única vontade é de chorar? Por que o conselho não é o mesmo quando me dizem para sorrir? As emoções deveriam ser equilibradas. E o conselho deveria sempre ser: ponha para fora suas vontades. Essa mania de controle. Quem somos nós para controlar nossas emoções?
Acredito que todos desejariam ter seus próprios controles ao alcance da mão. Quem sabe um controle-remoto para que pudéssemos zapear dentro de nossos próprios canais. A programação de uma vida. Ou uma vida muito menos programada. Tiraríamos os medos, frustrações? Perguntaríamos mais, arriscaríamos mais?
O que faríamos para não deixar o medo da resposta sufocar a pergunta? Como viver deixando tudo para trás e ficando leve, carregando apenas o que necessitamos na jornada a cada instante? Mas jornada para onde? Como saber o que é preciso carregar? A cabeça pesa tanto quanto a mochila cheia de tralhas. Que bom seria viver a vida sem carregar nada! Imagine a leveza de cada um de nós. Talvez desse até para voar.
Carregaríamos apenas corações remendados, com pedaços de outros, com alguns buracos. Um coração parecido com uma colcha de retalhos. Cada emoção com uma cor, uma estampa, um desenho diferente. Falaríamos com todos pelo caminho, satisfazendo todas as nossas vontades. Vivendo um dia de cada vez.
(*) Jornalista.
domingo, 5 de julho de 2009
De coração ou por educação?, por Sayonara LinoSayonara Lino (*)
Necessidade de aprovação alheia é um sentimento bastante comum, afinal, vivemos em sociedade e quase todos buscamos algum tipo de reconhecimento. É agradável receber incentivo e elogio principalmente daqueles que nos são caros. Isso torna-se um problema quando queremos agradar sempre e não conseguimos estabelecer limites e dizer a palavrinha “não” quando necessário.
Fazemos favores e assumimos compromissos por educação e não de coração, amorosamente. Dessa forma, ficamos condicionados a agradar a todos, tememos ser rejeitados e abrimos mão de nossos verdadeiros desejos para evitar magoar os outros. O pior é quando não recebemos de forma proporcional ao que foi oferecido e nos sentimos traídos por quem tanto ajudamos.
Considero esse vício comportamental um tremendo engano. Quem acha que ao doar-se demais irá receber o mesmo em troca é iludido e não faz de graça. Quem quer ajudar de fato não espera retorno. É comum a vida nos presentear com ajudas vindas de pessoas que sequer imaginamos. É claro que relacionamento envolve troca, aqui estou falando dos excessos que permeiam algumas relações.
Outro efeito rebote relacionado aos atos dos educados de plantão: quando o outro percebe, aquele mesmo a quem você atendeu com tanto zelo, que suas atitudes estão mais relacionadas ao apreço e à boa-conduta do que ao afeto. Os muito bem-educados que me perdoem, mas respeito a si mesmo e dizer “não posso”, “infelizmente estou de saída” , “vamos deixar para outra ocasião?”, são fundamentais para o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, pautados pela vontade e não pela obrigatoriedade.
(*) Jornalista.
Fazemos favores e assumimos compromissos por educação e não de coração, amorosamente. Dessa forma, ficamos condicionados a agradar a todos, tememos ser rejeitados e abrimos mão de nossos verdadeiros desejos para evitar magoar os outros. O pior é quando não recebemos de forma proporcional ao que foi oferecido e nos sentimos traídos por quem tanto ajudamos.
Considero esse vício comportamental um tremendo engano. Quem acha que ao doar-se demais irá receber o mesmo em troca é iludido e não faz de graça. Quem quer ajudar de fato não espera retorno. É comum a vida nos presentear com ajudas vindas de pessoas que sequer imaginamos. É claro que relacionamento envolve troca, aqui estou falando dos excessos que permeiam algumas relações.
Outro efeito rebote relacionado aos atos dos educados de plantão: quando o outro percebe, aquele mesmo a quem você atendeu com tanto zelo, que suas atitudes estão mais relacionadas ao apreço e à boa-conduta do que ao afeto. Os muito bem-educados que me perdoem, mas respeito a si mesmo e dizer “não posso”, “infelizmente estou de saída” , “vamos deixar para outra ocasião?”, são fundamentais para o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, pautados pela vontade e não pela obrigatoriedade.
(*) Jornalista.
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Primeiros pássaros, por Nei DuclósNei Duclós (*)
Desconheço os pássaros de penas amarelas que flagro às vezes entre a mesmice das espécies voadoras urbanas. Talvez sejam sobreviventes de velhos massacres, da época em que o Brasil decidiu importar pardais numa súbita saudade da distante Paris. Ou então fruto de cruzamento das aves adventícias com os exemplares resistentes da nossa fauna. Eles convivem, anônimos, com outros, de papel passado, como o bem-te-vi, tão disseminado quanto o quero-quero, que agora não é mais exclusivo do pampa. No meu quintal, debruçam-se algumas surpresas, como raras rolinhas que fogem em bando ao primeiro sinal da porta. Ou as corruíras, de alarido insistente, lisas nos seus movimentos de eterna fuga por entre a escassa ramagem. À espreita, gaviões improvisam tocaias em cima de telhados recém construídos. E à distância, mas não muito, o rodopio dos urubus, a sinalizar as presas. Lembro dos bandos em formação que coroavam a fronteira em determinadas épocas. Fugiam para mais ao sul, e às vezes voltavam rumo aos cerrados, matas atlânticas, chacos. Sempre invoquei com a competência da migração coletiva, a que chamam instinto, mas que é pura sabedoria. Os pássaros pensam, como os outros bichos. Chegaram à excelência da viagem por meio de tentativa e erro, como o resto de nós. Quantas não sucumbiram nas improvisações e nos rumos errados? As criaturas possuem esse dom de achar o caminho, nem que levem a eternidade para conseguir. Por isso, quando vemos as coesas esquadrilhas de patos em direção ao verão, ou a desfaçatez dos espécimes saltimbancos, devemos atentar para essa evidência: a de que as aves trafegam e aprendem enquanto se movimentam. Se fixarmos o olhar, deixando-o ao mesmo tempo solto, à mercê dos pulos, bater de asas, pios e olhares rápidos em cabeças ariscas, saberemos um pouco do que se trata e o que essa presença significa. Os pássaros estão conectados aos sonhos, premonições, encantamentos. Há sempre um corvo sobre um caldeirão fervente da feiticeira. Um papagaio no ombro do pirata. Andorinhas que conduzem o vestido de Cinderela. Gansos em investidas contra a vilania. Corujas atentas aos mistérios do escuro. Penas em sortilégios, pombas ao redor de sinos, revoadas em coreografias perfeitas sobre os cardumes, mergulhos em linha reta fisgando escamas indefesas. Os pássaros anunciam não apenas os movimentos definitivos do sol, quando raia o dia ou quando se recolhe no crepúsculo. A árvore carregada de sons nos traz a notícia ainda oculta, os sinais evidentes de um acontecimento poderoso. Talvez seja o amor que acene numa algazarra na água, na brincadeira barulhenta na ramaria das margens. Talvez o solitário filhote que escapou do ninho e pousa, ressabiado, no poste, seja aquela visita tão esperada que está pronta para tocar o telefone. Os primeiros pássaros, anunciadores, têm a força das vitórias fecundas, as que nem saem destacadas em jornais ou blogs. Fazem parte do currículo da vida e nos ajudam a sobreviver, do mesmo modo que um grão, um miolo de pão, uma flor carregados até o ninho, nossa memória. A criança que inaugura o andar sob a tutela dos adultos e é aplaudida quando, cruzando as pernas, consegue cumprir seu primeiro grande objetivo; a vítima de acidente que encontra forças para recuperar os movimentos com o apoio da medicina e dos laços familiares; o estudante que entra pela primeira vez no Terceiro Grau ainda sob o efeito do mergulho insano para vencer o vestibular; o filho pródigo que enfim se decide e volta para abraçar os pais; o casal de aposentados que consegue fazer sua primeira viagem internacional; o devoto que se concentra antes da longa caminhada até o altar santo: todos esses primeiros passos são sagrados e transcendem a data em que são realizados. São vitórias pessoais de criaturas limitadas, que ultrapassam a fronteira do sonho e impregnam a realidade de grandeza. São gestos acima do normal, degraus para uma visão mais ampla do que chamamos vida, esse mistério que nos convoca e que pode nos abandonar de uma hora para outra. Passos, pássaros: a linguagem aproxima o que parece disperso.
(*) Autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
(*) Autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Recife, 1970, por Risomar Fasanaro
Risomar Fasanaro (*)
Em julho de 1970 voltei ao Recife pela primeira vez, desde que viera morar em Osasco- SP. E foi lá, na minha terra natal que senti de perto os tentáculos da ditadura. Viajei com três amigas: Ilíada, e Maria Antônia, duas estudantes de História e minha amiga Maria clara e eu de Letras.
Escolhemos uma pousada em um sobrado antigo para nos hospedar. Os quartos eram bem grandes, com janelas e portas altíssimas, uma escadaria de metal em caracol que unia o andar térreo ao andar superior. Uma construção da época do Brasil colonial.
Ficamos todas no mesmo quarto, e à noite, já deitadas, contei às minhas amigas uma história que se passou no Recife e que desde pequena me fascinou: a história da emparedada da Rua Nova, que muitas vezes ouvi minha mãe contar. História que o escritor Carneiro Vilela registrou em seu romance “A emparedada da Rua Nova”.
Havia, no século XIX, um senhor de engenho casado e que tinha uma filha. A mulher dele tinha um amante que, dizem, seduziu também a moça e a engravidou. Ao saber da gravidez da filha o senhor de engenho contratou alguns pedreiros, e tanto os homens quanto a moça foram levados encapuzados a um casarão onde a moça foi emparedada viva em uma das paredes do casarão.
Contam também que quando começaram a demolir algumas construções antigas no centro daquela cidade, encontraram em um casarão o esqueleto de uma mulher e de um feto, presos em uma parede. Se é verdade, não sei. Dirá melhor quem vive lá.
Aquela noite, junto com minhas amigas olhando aquele teto altíssimo e vendo a espessura daquelas paredes fiquei imaginando o sofrimento daquela moça amarrada e amordaçada sem poder reagir. Pensava na possibilidade de aquela história ser real e a que crimes o poder patriarcal, e o falso puritanismo levam. Muitas vezes maiores que os do próprio réu.
Alguns amigos me pedem que conte algumas passagens que vivi durante os anos de chumbo. É para atender a esses pedidos que início hoje algumas passagens que vivi durante os anos de chumbo. E, se for autorizada, contar histórias de pessoas próximas que também viveram alguns momentos difíceis naquela época.
Saí do Recife com onze anos, conheço muito pouco minha cidade, e a sede de conhecê-la é muito grande até hoje. Aquela viagem tinha tudo para ser perfeita: estava com três pessoas interessadíssimas em conhecer a história e a cultura de Pernambuco, por isso eu estava muito feliz. Fotografava tudo que achava interessante: mulheres rendeiras, as crianças, as vendedoras de tapioca nas ruas, as pontes, as igrejas, e o rio. O Rio Capibaribe que é minha maior paixão naquela cidade.
E não só fotografava. Anotava palavras, frases, tudo que nos interessava. Maria Clara andava com um bloquinho, pois este era um conselho da professora Ada Natal Rodrigues, nossa professora de Lingüística. Até hoje tenho o hábito de anotar e fotografar tudo que posso, e era o que estávamos fazendo naquele dia chuvoso de julho.
À tarde iríamos a Natal; já estávamos com as passagens compradas, e de Natal partiríamos de volta para São Paulo, mas não voltaria sem ir a Socorro onde passei minha infância.
Saímos cedinho, Alba e eu. E quando entramos no ônibus comecei a sentir angústia, um sentimento que me toma sempre que vai acontecer algo ruim a mim ou a alguém muito ligado a mim. Já desacreditei disso, tentei achar que era ilusão, mas a cada dia mais isso se confirma. Algo dentro de mim recebe antes o que vai acontecer. Contei a Alba o que estava sentindo e ela me acalmou: “é a emoção da volta”.
Chegando a Socorro, nos dirigimos à guarita da sentinela, já que desde criança me acostumara que só se entrava na vila depois de se identificar junto ao soldado que ali fica de plantão.
O soldado nos informou que para entrar era preciso pedir autorização ao oficial de dia. Para isso teríamos de nos dirigir a um prédio que ficava a uns trezentos metros de distância.
Saímos, minha amiga e eu, em direção ao outro prédio. No espaço que liga a guarita ao prédio, ficam a igreja, a escola e o cinema, os locais que frequentei quase diariamente durante vários anos. Por isso resolvi ir fotografando cada um. Começou a chover e nos abrigamos sob a marquise do cinema, para esperar a chuva passar. De lá se via todo o quartel, e olhando a neblina que formava uma leve cortina de água, li a frase em letras garrafais de cimento branco, sobre o gramado, que se encontra em frente ao prédio: AQUI SE APRENDE A AMAR E A DEFENDER A PÁTRIA.
Tirei uma foto daquela frase para trazer para meu pai que ali servira muitos anos. Mas logo, logo saberíamos de que forma os que ali dentro trabalhavam, defendiam meu país, minha pátria. Na próxima semana conto o que vivemos naquele local.
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Em julho de 1970 voltei ao Recife pela primeira vez, desde que viera morar em Osasco- SP. E foi lá, na minha terra natal que senti de perto os tentáculos da ditadura. Viajei com três amigas: Ilíada, e Maria Antônia, duas estudantes de História e minha amiga Maria clara e eu de Letras.
Escolhemos uma pousada em um sobrado antigo para nos hospedar. Os quartos eram bem grandes, com janelas e portas altíssimas, uma escadaria de metal em caracol que unia o andar térreo ao andar superior. Uma construção da época do Brasil colonial.
Ficamos todas no mesmo quarto, e à noite, já deitadas, contei às minhas amigas uma história que se passou no Recife e que desde pequena me fascinou: a história da emparedada da Rua Nova, que muitas vezes ouvi minha mãe contar. História que o escritor Carneiro Vilela registrou em seu romance “A emparedada da Rua Nova”.
Havia, no século XIX, um senhor de engenho casado e que tinha uma filha. A mulher dele tinha um amante que, dizem, seduziu também a moça e a engravidou. Ao saber da gravidez da filha o senhor de engenho contratou alguns pedreiros, e tanto os homens quanto a moça foram levados encapuzados a um casarão onde a moça foi emparedada viva em uma das paredes do casarão.
Contam também que quando começaram a demolir algumas construções antigas no centro daquela cidade, encontraram em um casarão o esqueleto de uma mulher e de um feto, presos em uma parede. Se é verdade, não sei. Dirá melhor quem vive lá.
Aquela noite, junto com minhas amigas olhando aquele teto altíssimo e vendo a espessura daquelas paredes fiquei imaginando o sofrimento daquela moça amarrada e amordaçada sem poder reagir. Pensava na possibilidade de aquela história ser real e a que crimes o poder patriarcal, e o falso puritanismo levam. Muitas vezes maiores que os do próprio réu.
Alguns amigos me pedem que conte algumas passagens que vivi durante os anos de chumbo. É para atender a esses pedidos que início hoje algumas passagens que vivi durante os anos de chumbo. E, se for autorizada, contar histórias de pessoas próximas que também viveram alguns momentos difíceis naquela época.
Saí do Recife com onze anos, conheço muito pouco minha cidade, e a sede de conhecê-la é muito grande até hoje. Aquela viagem tinha tudo para ser perfeita: estava com três pessoas interessadíssimas em conhecer a história e a cultura de Pernambuco, por isso eu estava muito feliz. Fotografava tudo que achava interessante: mulheres rendeiras, as crianças, as vendedoras de tapioca nas ruas, as pontes, as igrejas, e o rio. O Rio Capibaribe que é minha maior paixão naquela cidade.
E não só fotografava. Anotava palavras, frases, tudo que nos interessava. Maria Clara andava com um bloquinho, pois este era um conselho da professora Ada Natal Rodrigues, nossa professora de Lingüística. Até hoje tenho o hábito de anotar e fotografar tudo que posso, e era o que estávamos fazendo naquele dia chuvoso de julho.
À tarde iríamos a Natal; já estávamos com as passagens compradas, e de Natal partiríamos de volta para São Paulo, mas não voltaria sem ir a Socorro onde passei minha infância.
Saímos cedinho, Alba e eu. E quando entramos no ônibus comecei a sentir angústia, um sentimento que me toma sempre que vai acontecer algo ruim a mim ou a alguém muito ligado a mim. Já desacreditei disso, tentei achar que era ilusão, mas a cada dia mais isso se confirma. Algo dentro de mim recebe antes o que vai acontecer. Contei a Alba o que estava sentindo e ela me acalmou: “é a emoção da volta”.
Chegando a Socorro, nos dirigimos à guarita da sentinela, já que desde criança me acostumara que só se entrava na vila depois de se identificar junto ao soldado que ali fica de plantão.
O soldado nos informou que para entrar era preciso pedir autorização ao oficial de dia. Para isso teríamos de nos dirigir a um prédio que ficava a uns trezentos metros de distância.
Saímos, minha amiga e eu, em direção ao outro prédio. No espaço que liga a guarita ao prédio, ficam a igreja, a escola e o cinema, os locais que frequentei quase diariamente durante vários anos. Por isso resolvi ir fotografando cada um. Começou a chover e nos abrigamos sob a marquise do cinema, para esperar a chuva passar. De lá se via todo o quartel, e olhando a neblina que formava uma leve cortina de água, li a frase em letras garrafais de cimento branco, sobre o gramado, que se encontra em frente ao prédio: AQUI SE APRENDE A AMAR E A DEFENDER A PÁTRIA.
Tirei uma foto daquela frase para trazer para meu pai que ali servira muitos anos. Mas logo, logo saberíamos de que forma os que ali dentro trabalhavam, defendiam meu país, minha pátria. Na próxima semana conto o que vivemos naquele local.
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
As últimas sessões de Marilyn, por Evelyne FurtadoEvelyne Furtado (*)
"Os homens querem ir à lua, mas não se interessam pelo coração humano".(Fala de Marilyn Monroe no livro Marilyn “As ùltimas Sessões”).
”Marilyn ùltimas Sessões”. Comprei por impulso. Já estava com outro livro na mão quando meus olhos pousaram no volume de capa escura com uma foto de Marilyn Monroe, sorrindo sutilmente com um cigarro na mão.
Li a orelha falando sobre o autor Michel Scheneider. Psicanalista francês, escritor premiado que entrelaça, no romance, o relacionamento da atriz com seu psicanalista Ralfh Greenson nos dois últimos anos de vida da atriz.
Não tinha como errar na aquisição. Adoro biografias e a psicanálise é um assunto a mim muito interessante, apesar de conhecê-la pouco.
Comecei a ler, porém o autor não me seduziu a princípio. Acredito que a tradução tenha prejudicado a narrativa. Deixei o livro, marcado e dediquei-me à leitura de outro que já havia iniciado.
Quando encerro a leitura de um livro envolvente sinto um vazio. Como se um amor fosse embora. Despedi-me dos personagens queridos e naquela mesma noite ganhei um brinco cuja a embalagem trazia o nome da loja: Nunca Fui Santa.
Ao me recolher, tarde da noite, retornei a “Marilyn Últimas Sessões”, exatamente no capítulo em que o autor se referia às filmagens de “Nunca Fui Santa”, filme no qual Marilyn atuou. Não parei mais de ler e mergulhei na alma de Norma Jeane Baker, a menina perdida que se tornou o maior mito sexual da história moderna.
Se antes me comovia sua morte precoce, aos 36 anos, no ano em que nasci; hoje me espanto por Marilyn Monroe ter resistido esses anos todos, diante da fragilidade de sua estrutura emocional.
Sua alma era de uma sobrevivente, a despeito do glamour e da sexualidade aparente. Reiventou-se, descolorindo os cabelos e adotando um novo nome, deixando de ser Norma Jeane para se tornar Marilyn Monroe.
Tentou apagar anos de rejeição, ocasionados pela doença mental da mãe que a abandonou e pelas passagens por orfanatos e por várias famílias, onde foi abusada por pais adotivos, com a troca de sexo para obter amor em sua vida adulta.
Marilyn teve muitos homens, entre eles: Joe DiMagio, jogador de basebol e Arthur Miller, dramaturgo, com quem se casou. Teve casos com Elia Kazan, Frank Sinatra, Ives Montand e, finalmente, com os irmãos John e Bobby Kennedy.
Mas, o livro aborda superficialmente esses relacionamentos. O autor explora a relação de dependência total entre a paciente e o psicanalista Ralph Greenson, revelando o caos emocional da mulher por trás da imagem. As estrelas são fascinantes e tentamos descobrir o que existe além do brilho. É então que atua a psicanálise adentrando e revelando, mais de quarenta anos após a sua morte, a alma da mulher que lutou para fugir do estereótipo que Hollywood criara para ela: loura, sexi e boba.
Marilyn Monroe não era pouco superficial. Embora amasse sua imagem, a estrela lia bons autores, preocupava-se em aprender e se aprofundava em seus fantasmas para se livrar deles.. Foi analisada inclusive por Ana Freud e citou Joyce em fitas que deixou para o seu Doutor.
Era uma criança órfã em um corpo de mulher que amadurecia, que tinha medo e que era incrivelmente só. Entupia-se de barbitúricos, anfentaminas e outras drogas para se manter viva.
Greenson não conseguiu salvá-la da dor e do vazio que a perseguia, apesar de ter, por dois anos, tomado conta de todos os aspectos da vida da mocinha que se tornara atriz para sobreviver a si mesma. O autor deixa claro, no entanto, que não havia relacionamento sexual entre eles.
A leitura tem um lado pueril por revelar um pouco a intimidade de alguns mitos do cinema e da política dos anos sessenta, porém é mórbida. E não tinha como escapar disso, pois a iniciamos sabendo como foi trágico e ainda incompreendido o fim da vida de Marilyn.
O mito superou a mulher, que em agosto de 1962 sucumbiu ao desespero não se sabe se por acidente ou se por intenção. Ainda hoje as fotos de Marilyn Monroe são disputadas em leilões e seu rosto é conhecido até pelos que nasceram muito depois de sua morte.
Depois do livro, sugiro uma nova sessão de “O Pecado Mora ao Lado”. Volta-se, então, à ilusão que o cinema criou.
"Ela ficava em polvorosa enquanto a paz não fosse restabelecida"(Do relatório do Dr. Greenson a Ana Freud). (*) Cronista e poetisa em Natal/RN.
”Marilyn ùltimas Sessões”. Comprei por impulso. Já estava com outro livro na mão quando meus olhos pousaram no volume de capa escura com uma foto de Marilyn Monroe, sorrindo sutilmente com um cigarro na mão.
Li a orelha falando sobre o autor Michel Scheneider. Psicanalista francês, escritor premiado que entrelaça, no romance, o relacionamento da atriz com seu psicanalista Ralfh Greenson nos dois últimos anos de vida da atriz.
Não tinha como errar na aquisição. Adoro biografias e a psicanálise é um assunto a mim muito interessante, apesar de conhecê-la pouco.
Comecei a ler, porém o autor não me seduziu a princípio. Acredito que a tradução tenha prejudicado a narrativa. Deixei o livro, marcado e dediquei-me à leitura de outro que já havia iniciado.
Quando encerro a leitura de um livro envolvente sinto um vazio. Como se um amor fosse embora. Despedi-me dos personagens queridos e naquela mesma noite ganhei um brinco cuja a embalagem trazia o nome da loja: Nunca Fui Santa.
Ao me recolher, tarde da noite, retornei a “Marilyn Últimas Sessões”, exatamente no capítulo em que o autor se referia às filmagens de “Nunca Fui Santa”, filme no qual Marilyn atuou. Não parei mais de ler e mergulhei na alma de Norma Jeane Baker, a menina perdida que se tornou o maior mito sexual da história moderna.
Se antes me comovia sua morte precoce, aos 36 anos, no ano em que nasci; hoje me espanto por Marilyn Monroe ter resistido esses anos todos, diante da fragilidade de sua estrutura emocional.
Sua alma era de uma sobrevivente, a despeito do glamour e da sexualidade aparente. Reiventou-se, descolorindo os cabelos e adotando um novo nome, deixando de ser Norma Jeane para se tornar Marilyn Monroe.
Tentou apagar anos de rejeição, ocasionados pela doença mental da mãe que a abandonou e pelas passagens por orfanatos e por várias famílias, onde foi abusada por pais adotivos, com a troca de sexo para obter amor em sua vida adulta.
Marilyn teve muitos homens, entre eles: Joe DiMagio, jogador de basebol e Arthur Miller, dramaturgo, com quem se casou. Teve casos com Elia Kazan, Frank Sinatra, Ives Montand e, finalmente, com os irmãos John e Bobby Kennedy.
Mas, o livro aborda superficialmente esses relacionamentos. O autor explora a relação de dependência total entre a paciente e o psicanalista Ralph Greenson, revelando o caos emocional da mulher por trás da imagem. As estrelas são fascinantes e tentamos descobrir o que existe além do brilho. É então que atua a psicanálise adentrando e revelando, mais de quarenta anos após a sua morte, a alma da mulher que lutou para fugir do estereótipo que Hollywood criara para ela: loura, sexi e boba.
Marilyn Monroe não era pouco superficial. Embora amasse sua imagem, a estrela lia bons autores, preocupava-se em aprender e se aprofundava em seus fantasmas para se livrar deles.. Foi analisada inclusive por Ana Freud e citou Joyce em fitas que deixou para o seu Doutor.
Era uma criança órfã em um corpo de mulher que amadurecia, que tinha medo e que era incrivelmente só. Entupia-se de barbitúricos, anfentaminas e outras drogas para se manter viva.
Greenson não conseguiu salvá-la da dor e do vazio que a perseguia, apesar de ter, por dois anos, tomado conta de todos os aspectos da vida da mocinha que se tornara atriz para sobreviver a si mesma. O autor deixa claro, no entanto, que não havia relacionamento sexual entre eles.
A leitura tem um lado pueril por revelar um pouco a intimidade de alguns mitos do cinema e da política dos anos sessenta, porém é mórbida. E não tinha como escapar disso, pois a iniciamos sabendo como foi trágico e ainda incompreendido o fim da vida de Marilyn.
O mito superou a mulher, que em agosto de 1962 sucumbiu ao desespero não se sabe se por acidente ou se por intenção. Ainda hoje as fotos de Marilyn Monroe são disputadas em leilões e seu rosto é conhecido até pelos que nasceram muito depois de sua morte.
Depois do livro, sugiro uma nova sessão de “O Pecado Mora ao Lado”. Volta-se, então, à ilusão que o cinema criou.
"Ela ficava em polvorosa enquanto a paz não fosse restabelecida"(Do relatório do Dr. Greenson a Ana Freud). (*) Cronista e poetisa em Natal/RN.
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Inquietude, por Marleuza Machado
Marleuza Machado (*)
Nasceu do nada, através do que não foi.
A onda chegou de mansinho, de repente era furacão.
Preencheu o vazio do “não ter”,
Fechando a lacuna do “perder”...
Tendo ilusões, ganhando cor.
É o recobrar da consciência batendo à porta.
É o “sentir quê” ocupando o lugar do “ter quê”.
Ficaram espaços vazios? Outros sonhos virão!
Houve lágrimas? Está de cara e alma lavadas!
O amor se foi? Ficaram boas lembranças!
Percebe não “ser só” apenas “está só”.
Percorre o árduo caminho de quem ousa sonhar...
Usa atalhos, desvios, sombras e remansos.
Tropeça, cai, levanta, trata das feridas e vai em frente...
Novas aventuras, encontros e reencontros?
Quem venham!
Corre todos os riscos para "bem viver".
" É um carinho guardado no cofre
De um coração que voou
É um afeto deixado nas veias
De um coração que ficou"... (Gonzaguinha)
(*) Estudante de Jornalismo.
Nasceu do nada, através do que não foi.
A onda chegou de mansinho, de repente era furacão.
Preencheu o vazio do “não ter”,
Fechando a lacuna do “perder”...
Tendo ilusões, ganhando cor.
É o recobrar da consciência batendo à porta.
É o “sentir quê” ocupando o lugar do “ter quê”.
Ficaram espaços vazios? Outros sonhos virão!
Houve lágrimas? Está de cara e alma lavadas!
O amor se foi? Ficaram boas lembranças!
Percebe não “ser só” apenas “está só”.
Percorre o árduo caminho de quem ousa sonhar...
Usa atalhos, desvios, sombras e remansos.
Tropeça, cai, levanta, trata das feridas e vai em frente...
Novas aventuras, encontros e reencontros?
Quem venham!
Corre todos os riscos para "bem viver".
" É um carinho guardado no cofre
De um coração que voou
É um afeto deixado nas veias
De um coração que ficou"... (Gonzaguinha)
(*) Estudante de Jornalismo.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
O violão e o tapa, por Marco Albertim
Marco Albertim (*)
Quem mantém a crônica na memória, arrisca-se a misturá-la com outros fatos, a atabalhoar-se com outras lembranças. Quem decide fazer o registro com letras, por miúdas que sejam, corre o risco de atropelar nomes; e só este risco paga o feito. Assim, grosso modo, tenho a licença para o resgate de um episódio. Muitos, do gênero, já foram resgatados. A memória sentir-se-ia poltrona caso renunciasse aos ditames de si mesma. Foi aqui perto de mim, onde passo todos os dias, distinguindo num banco de praça, os coturnos de soldados do exército, pisando na grama, mais fortes que o piso de cimento já estropiado, em volta do tanque com um jacaré moldado num cimento branco.
A Praça do Jacaré, em Olinda, logo será ocupada por troças de carnaval; já foi ocupada por uma milícia verde-oliva, tão raivosa quanto o jacaré real que inspirara a mão do escultor. A viatura estacionou na avenida em frente, em frente ao Colégio São Bento, com alunos ignorando os instintos liberticidas dos oficiais desaquartelados.
Frederico tinha pouco mais de dezessete anos. Junto com outros de sua idade, pôs-se a vibrar a corda do violão recém-comprado; comprara com o dinheiro obtido dando aulas a vizinhos carentes de informações sobre regra de três, equações. Não tinham dinheiro para pagar o cursinho particular, valiam-se da habilidade de Fred no manejo de cálculos.
Os soldados, à frente um oficial, bateram com a porta da viatura. O ruído confundiu-se com o dos motores em marcha na avenida. Os rapazes não se deram conta, visto que a viatura, verde-escura, misturava-se, camuflava-se no escuro das poucas luzes na avenida.
Frederico Carlos, cujo último nome é o mesmo do autor do presente texto, fora inquirido pela mãe, dois dias antes, de como comprara o violão, um instrumento caro. A velha Dudinha, entretida nos quitutes da cozinha, na costura de uma máquina Singer já fora de linha, não desconfiara, jamais suspeitara que o filho fosse capaz de amealhar por um ano; para comprar não um custoso DiGiorgio ou um Giannini, mas um violão ordinário, de marca desconhecida como o Tonante. Voltou, ele, do colégio, almoçou sem mastigar direito e foi para Recife. Comprou o violão na primeira loja, para não perder tempo com pesquisa de preços; comprou com a ansiedade dos moços.
Os soldados se acercaram dos rapazes sentados, ouvindo, apreciando o instrumento novo. Convém dizer que violão era instrumento de subversivos, visto que com ele alguns artistas se atreviam a compor músicas com letras sediciosas.
- Que reunião é essa aí!? – quis saber o soldado.
Se violão era instrumento inconfiável, o que dizer de uma reunião de moços numa praça de uso popular? Oscar, o professor de violão, foi o primeiro a assustar-se; não demoraria dois minutos e ele se sentiria aliviado por não ser o dono do violão, não segurá-lo no momento.
- Vamos! Eu estou perguntando! Que reunião é essa aí?
Fred, que ainda não descobrira o lirismo de músicas antiditatoriais, alienando-se na frivolidade recém-criada da jovem guarda, não soube o que responder. Pôs o violão sob o braço, apoiando-o na coxa. O braço, com as cordas, ficou de frente para o militar. Sentiu-se desfeiteado o soldadinho, justo no instante em que, mesmo sem qualquer divisa na farda, podia falar, gritar como um general, pôr-se maior do que a própria altura. O soldado olhara só para Fred, porque fora ele o mais atrevido. Onde já se viu estudante com violão em praça pública!?
- A gente está só conversando... – gaguejou Fred.
- Trate-me de senhor!
O tapa no rosto do estudante soou conforme a indignação balofa do soldadinho, tão balofa quanto o olhar de aprovação do oficial no comando da patrulha. Cruzara os braços, o oficial; tinha mais era que cruzá-los... Adestrara seus homens, apurara-os no instinto de um guabiru catando carniça subversiva.
Pôs a mão no rosto, Fred; dor, ardor, vergonha de apanhar em público; na frente do jacaré que o vira crescer. Olhou para trás quando virou o rosto. Pediu ajuda ao jacaré, forçou-se telepático com a estátua inamovível. Teve pena do bicho, porque também o bicho que o vira menino, sentiu-se estapeado sem poder reagir com as presas na boca.
Oscar-Perna-Torada esqueceu as notas, arrependendo-se de tê-las repassado ao aluno; sentiu alívio porque não trouxera seu Giannini.
O soldado, puxando das mãos de sua presa o violão, sentiu alguma resistência no estudante insubmisso. Deu-lhe um pontapé na cintura, de lado, deixando-o penso; aproveitou para puxar de vez o violão. Depois, quebrou-o na amurada do tanque, deixou-o em pedaços; destruiu-o para em seguida registrar o feito à frente de um coronel. Não receberia uma medalha, seria elogiado, talvez permanecesse por mais tempo no exército, evitando a rejeição social por ser semianalfabeto.
A reunião foi desfeita. Os estudantes voltaram para casa. Fred, sem violão, entrou no quarto sem falar com a mãe. Para quê! Para dizer que perdera o violão, fora estapeado na rua?
(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Quem mantém a crônica na memória, arrisca-se a misturá-la com outros fatos, a atabalhoar-se com outras lembranças. Quem decide fazer o registro com letras, por miúdas que sejam, corre o risco de atropelar nomes; e só este risco paga o feito. Assim, grosso modo, tenho a licença para o resgate de um episódio. Muitos, do gênero, já foram resgatados. A memória sentir-se-ia poltrona caso renunciasse aos ditames de si mesma. Foi aqui perto de mim, onde passo todos os dias, distinguindo num banco de praça, os coturnos de soldados do exército, pisando na grama, mais fortes que o piso de cimento já estropiado, em volta do tanque com um jacaré moldado num cimento branco.
A Praça do Jacaré, em Olinda, logo será ocupada por troças de carnaval; já foi ocupada por uma milícia verde-oliva, tão raivosa quanto o jacaré real que inspirara a mão do escultor. A viatura estacionou na avenida em frente, em frente ao Colégio São Bento, com alunos ignorando os instintos liberticidas dos oficiais desaquartelados.
Frederico tinha pouco mais de dezessete anos. Junto com outros de sua idade, pôs-se a vibrar a corda do violão recém-comprado; comprara com o dinheiro obtido dando aulas a vizinhos carentes de informações sobre regra de três, equações. Não tinham dinheiro para pagar o cursinho particular, valiam-se da habilidade de Fred no manejo de cálculos.
Os soldados, à frente um oficial, bateram com a porta da viatura. O ruído confundiu-se com o dos motores em marcha na avenida. Os rapazes não se deram conta, visto que a viatura, verde-escura, misturava-se, camuflava-se no escuro das poucas luzes na avenida.
Frederico Carlos, cujo último nome é o mesmo do autor do presente texto, fora inquirido pela mãe, dois dias antes, de como comprara o violão, um instrumento caro. A velha Dudinha, entretida nos quitutes da cozinha, na costura de uma máquina Singer já fora de linha, não desconfiara, jamais suspeitara que o filho fosse capaz de amealhar por um ano; para comprar não um custoso DiGiorgio ou um Giannini, mas um violão ordinário, de marca desconhecida como o Tonante. Voltou, ele, do colégio, almoçou sem mastigar direito e foi para Recife. Comprou o violão na primeira loja, para não perder tempo com pesquisa de preços; comprou com a ansiedade dos moços.
Os soldados se acercaram dos rapazes sentados, ouvindo, apreciando o instrumento novo. Convém dizer que violão era instrumento de subversivos, visto que com ele alguns artistas se atreviam a compor músicas com letras sediciosas.
- Que reunião é essa aí!? – quis saber o soldado.
Se violão era instrumento inconfiável, o que dizer de uma reunião de moços numa praça de uso popular? Oscar, o professor de violão, foi o primeiro a assustar-se; não demoraria dois minutos e ele se sentiria aliviado por não ser o dono do violão, não segurá-lo no momento.
- Vamos! Eu estou perguntando! Que reunião é essa aí?
Fred, que ainda não descobrira o lirismo de músicas antiditatoriais, alienando-se na frivolidade recém-criada da jovem guarda, não soube o que responder. Pôs o violão sob o braço, apoiando-o na coxa. O braço, com as cordas, ficou de frente para o militar. Sentiu-se desfeiteado o soldadinho, justo no instante em que, mesmo sem qualquer divisa na farda, podia falar, gritar como um general, pôr-se maior do que a própria altura. O soldado olhara só para Fred, porque fora ele o mais atrevido. Onde já se viu estudante com violão em praça pública!?
- A gente está só conversando... – gaguejou Fred.
- Trate-me de senhor!
O tapa no rosto do estudante soou conforme a indignação balofa do soldadinho, tão balofa quanto o olhar de aprovação do oficial no comando da patrulha. Cruzara os braços, o oficial; tinha mais era que cruzá-los... Adestrara seus homens, apurara-os no instinto de um guabiru catando carniça subversiva.
Pôs a mão no rosto, Fred; dor, ardor, vergonha de apanhar em público; na frente do jacaré que o vira crescer. Olhou para trás quando virou o rosto. Pediu ajuda ao jacaré, forçou-se telepático com a estátua inamovível. Teve pena do bicho, porque também o bicho que o vira menino, sentiu-se estapeado sem poder reagir com as presas na boca.
Oscar-Perna-Torada esqueceu as notas, arrependendo-se de tê-las repassado ao aluno; sentiu alívio porque não trouxera seu Giannini.
O soldado, puxando das mãos de sua presa o violão, sentiu alguma resistência no estudante insubmisso. Deu-lhe um pontapé na cintura, de lado, deixando-o penso; aproveitou para puxar de vez o violão. Depois, quebrou-o na amurada do tanque, deixou-o em pedaços; destruiu-o para em seguida registrar o feito à frente de um coronel. Não receberia uma medalha, seria elogiado, talvez permanecesse por mais tempo no exército, evitando a rejeição social por ser semianalfabeto.
A reunião foi desfeita. Os estudantes voltaram para casa. Fred, sem violão, entrou no quarto sem falar com a mãe. Para quê! Para dizer que perdera o violão, fora estapeado na rua?
(*) Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Alívio, por Marcos Alves
Marcos Alves (*)
O sujeito era emburrado. Ela, muito solta. Ele era caladão. Ela, falante. Dançava e cantava de biquíni na praia, embalada pelo som e generosos goles de cerveja. Ele bebia também, mas era o oposto. Parecia frágil e olhava para a mulher sem saber o que fazer.
“Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz”. O verso de Chico fazia total sentido para esse casal. Famílias se divertindo na praia, e ela era a estrela do lugar. Ele, gordo, desleixado. Ela, corpo escultural, sensualidade aflorada.
A noite se aproxima e a praia vai ficando vazia. O homem pede a conta e enquanto o garçom busca a nota, se vira para ela para chamar-lhe a atenção. “Pára com isso, parece uma p.!” O sorriso dela desaparece num piscar de olhos e dá lugar a um franzir de testa, breve tristeza que por um instante lhe rouba a beleza.
Era só o começo de um enredo que ambos conheciam bem. De volta para casa a discussão começa. O homem diz coisas desagradáveis, tomado pelo despeito. Ele sabe que não pode com tanta beleza, é quase uma agressão para essa alma desprovida de sensibilidade.
Ele agora é dono da situação. Ela é um enigma, uma esfinge, e guarda segredos que teme serem descobertos. Ele fala, gesticula, afirma e reafirma que é quem manda no ‘pedaço’. Paga as contas, é dono da casa, do carro – enfim, é o provedor. Ela deveria, diz ele, agradecer todos os dias por ter um cara assim. Ela desvia o olhar e não responde, pois sabe o que a espera em caso de discordância.
Mesmo calada, mesmo tendo respeitado as regras, leva um tabefe, um empurrão e um chute. Chora, geme, e agora já não é nem sombra da linda mulher da praia. Há mais gente na casa, mas ninguém se atreve a intervir. De certa forma, todos ali dependem do provedor.
Novas agressões começam, agora com mais força. O homem está vermelho de tanta ira, ela está vermelha de tanto apanhar. Finalmente ele pára, sai do quarto. Ela se tranca no banheiro. Veste um pijaminha branco com borboletas e flores bordadas. Escova os cabelos enquanto uma última lágrima cai do canto do olho. Vai para a cama e reza baixinho. Adormece.
De madrugada, acorda com o barulho da maçaneta se mexendo, mas finge dormir. O homem ainda fede a cerveja, tira as calças, a camisa, e se deita ao lado dela. Olha para aquela nuca delicada, mas não se atreve a tocá-la. Vira-se e procura dormir. Não consegue.
Ambos passam a noite em claro. Ela, com medo de ficar ao lado dele. Ele, com medo de perdê-la definitivamente. O homem, enfim, resolve tocá-la. Alisa-lhe as costas, os cabelos. Ela se mexe, mas não esboça qualquer reação. Ele a puxa com mais força, encosta o corpo no dela. A mulher sabe o que vem depois. Deixa que ele tire o seu pijama, alise suas pernas, acaricie seus peitos, seu sexo.
Ele agora deixa escapar um sorriso de canto de boca. “Você é minha mulher e eu estou pronto”, diz. Ela permite. Era assim há anos. Na manhã seguinte, vão de novo à praia. Ela está bem mais calada, ele muito mais falante. Esbanja segurança e diz um monte de besteiras sobre qualquer coisa: comércio, negócios, mulheres, carros, bebida. O pessoal ri, acha graça, afinal, o homem já adiantou que, hoje, a conta é dele.
Ela bebe água de coco, evita cerveja e tampouco dança, mesmo quando aquela música que tanto gosta toca no som do quiosque. A tarde chega, o pessoal vai embora e eles novamente são um dos últimos a sair da areia. Chegam em casa e de novo o ritual se cumpre, mas dessa vez sem brigas. O homem se diz feliz. “Isso é que é vida; a gente aqui curtindo esse verão, perto da família e dos amigos. Não é meu amor?”
Ela faz sinal de positivo com a cabeça, e dá um sorriso inexpressivo. Vai para o quarto, diz que está indisposta e quer dormir cedo. Partiriam no dia seguinte. A viagem seria cansativa, quase mil quilômetros. “Durma bem”, ele diz a ela.
A mulher vai ao banheiro, escova os cabelos, coloca o pijama. Abre o armário e vê as caixas de remédio do marido. Faz um pedido em silêncio e vai se deitar. Dorme profundamente e só acorda com o choro do filho mais velho, de 7 anos.
- O que foi, meu benzinho?
- Papai foi levado às pressas para o hospital.
- Mas, por quê?
A empregada explica que o homem passou mal e teve que ser internado. “Tentamos avisá-la, mas você não acordava e não havia tempo a perder, ele estava muito esquisito”. “Vamos esperar por notícias aqui mesmo”, diz a mulher, enquanto mastiga uma torradinha e afaga os cabelos da criança.
A empregada acha estranha a reação, ou melhor, a falta de reação da patroa, mas não diz palavra. Passam-se mais alguns minutos e o telefone toca. O homem não havia resistido e morreu. A mulher entrou no banheiro, pegou as caixas de remédio e jogou no lixo. Não seriam mais necessários. Nunca mais.
(*) Jornalista.
O sujeito era emburrado. Ela, muito solta. Ele era caladão. Ela, falante. Dançava e cantava de biquíni na praia, embalada pelo som e generosos goles de cerveja. Ele bebia também, mas era o oposto. Parecia frágil e olhava para a mulher sem saber o que fazer.
“Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz”. O verso de Chico fazia total sentido para esse casal. Famílias se divertindo na praia, e ela era a estrela do lugar. Ele, gordo, desleixado. Ela, corpo escultural, sensualidade aflorada.
A noite se aproxima e a praia vai ficando vazia. O homem pede a conta e enquanto o garçom busca a nota, se vira para ela para chamar-lhe a atenção. “Pára com isso, parece uma p.!” O sorriso dela desaparece num piscar de olhos e dá lugar a um franzir de testa, breve tristeza que por um instante lhe rouba a beleza.
Era só o começo de um enredo que ambos conheciam bem. De volta para casa a discussão começa. O homem diz coisas desagradáveis, tomado pelo despeito. Ele sabe que não pode com tanta beleza, é quase uma agressão para essa alma desprovida de sensibilidade.
Ele agora é dono da situação. Ela é um enigma, uma esfinge, e guarda segredos que teme serem descobertos. Ele fala, gesticula, afirma e reafirma que é quem manda no ‘pedaço’. Paga as contas, é dono da casa, do carro – enfim, é o provedor. Ela deveria, diz ele, agradecer todos os dias por ter um cara assim. Ela desvia o olhar e não responde, pois sabe o que a espera em caso de discordância.
Mesmo calada, mesmo tendo respeitado as regras, leva um tabefe, um empurrão e um chute. Chora, geme, e agora já não é nem sombra da linda mulher da praia. Há mais gente na casa, mas ninguém se atreve a intervir. De certa forma, todos ali dependem do provedor.
Novas agressões começam, agora com mais força. O homem está vermelho de tanta ira, ela está vermelha de tanto apanhar. Finalmente ele pára, sai do quarto. Ela se tranca no banheiro. Veste um pijaminha branco com borboletas e flores bordadas. Escova os cabelos enquanto uma última lágrima cai do canto do olho. Vai para a cama e reza baixinho. Adormece.
De madrugada, acorda com o barulho da maçaneta se mexendo, mas finge dormir. O homem ainda fede a cerveja, tira as calças, a camisa, e se deita ao lado dela. Olha para aquela nuca delicada, mas não se atreve a tocá-la. Vira-se e procura dormir. Não consegue.
Ambos passam a noite em claro. Ela, com medo de ficar ao lado dele. Ele, com medo de perdê-la definitivamente. O homem, enfim, resolve tocá-la. Alisa-lhe as costas, os cabelos. Ela se mexe, mas não esboça qualquer reação. Ele a puxa com mais força, encosta o corpo no dela. A mulher sabe o que vem depois. Deixa que ele tire o seu pijama, alise suas pernas, acaricie seus peitos, seu sexo.
Ele agora deixa escapar um sorriso de canto de boca. “Você é minha mulher e eu estou pronto”, diz. Ela permite. Era assim há anos. Na manhã seguinte, vão de novo à praia. Ela está bem mais calada, ele muito mais falante. Esbanja segurança e diz um monte de besteiras sobre qualquer coisa: comércio, negócios, mulheres, carros, bebida. O pessoal ri, acha graça, afinal, o homem já adiantou que, hoje, a conta é dele.
Ela bebe água de coco, evita cerveja e tampouco dança, mesmo quando aquela música que tanto gosta toca no som do quiosque. A tarde chega, o pessoal vai embora e eles novamente são um dos últimos a sair da areia. Chegam em casa e de novo o ritual se cumpre, mas dessa vez sem brigas. O homem se diz feliz. “Isso é que é vida; a gente aqui curtindo esse verão, perto da família e dos amigos. Não é meu amor?”
Ela faz sinal de positivo com a cabeça, e dá um sorriso inexpressivo. Vai para o quarto, diz que está indisposta e quer dormir cedo. Partiriam no dia seguinte. A viagem seria cansativa, quase mil quilômetros. “Durma bem”, ele diz a ela.
A mulher vai ao banheiro, escova os cabelos, coloca o pijama. Abre o armário e vê as caixas de remédio do marido. Faz um pedido em silêncio e vai se deitar. Dorme profundamente e só acorda com o choro do filho mais velho, de 7 anos.
- O que foi, meu benzinho?
- Papai foi levado às pressas para o hospital.
- Mas, por quê?
A empregada explica que o homem passou mal e teve que ser internado. “Tentamos avisá-la, mas você não acordava e não havia tempo a perder, ele estava muito esquisito”. “Vamos esperar por notícias aqui mesmo”, diz a mulher, enquanto mastiga uma torradinha e afaga os cabelos da criança.
A empregada acha estranha a reação, ou melhor, a falta de reação da patroa, mas não diz palavra. Passam-se mais alguns minutos e o telefone toca. O homem não havia resistido e morreu. A mulher entrou no banheiro, pegou as caixas de remédio e jogou no lixo. Não seriam mais necessários. Nunca mais.
(*) Jornalista.
segunda-feira, 18 de maio de 2009
A esposa, por Talis Andrade
Talis Andrade (*)
Na longa espera
Penélope tece
a branca túnica
que vestirei
Encontrarei o quarto arrumado
A água de cheiro
a toalha de banho
os quatro chinelos
Descalçarei os sapatos
Os meus pés
os meus pés penetrarão a terra
em busca da profundidade
(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).
(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).
Na longa espera
Penélope tece
a branca túnica
que vestirei
Encontrarei o quarto arrumado
A água de cheiro
a toalha de banho
os quatro chinelos
Descalçarei os sapatos
Os meus pés
os meus pés penetrarão a terra
em busca da profundidade
(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).
(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).
quarta-feira, 13 de maio de 2009
A obra morre, por Pedro J. Bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk (*)
A identidade de pensamentos, sentimentos e crenças é a única forma de tentarmos preservar nossas obras do esquecimento e da morte, tão logo venhamos a esgotar nosso tempo sobre a Terra. É uma imensa tolice, portanto, nadar contra a correnteza e pretender “fazer cabeças”, com vistas a modificar gostos e opiniões para fazer proselitismo.
Leio, por exemplo, com maior atenção e gosto, apenas livros de escritores com os quais me identifico, que tenho empatia nem que seja minimamente, que pensam como penso e que aprofundam e justificam esses meus pensamentos. Os outros... Não me proponho sequer a refutar o que pensam. Ignoro-os. Quase todas as pessoas agem assim.
O mesmo vale em relação às outras artes, como pintura, escultura, música etc. Temos a vã ilusão que as obras que deixarmos irão preservar nossa memória através dos séculos e milênios e que não “morrerão” jamais. Ledo engano.
Mesmo que aquilo que deixarmos venha a despertar a identidade de milhões de pessoas (que tenham os mesmos pensamentos, sentimentos e crenças que nós), não há a mínima garantia de que essas realizações nos sobrevivam, digamos, por dois, cinco ou dez anos, quanto mais “para sempre”. Não tardará para sermos esquecidos, como se sequer tivéssemos existido, salvo uma ou outra exceção e por motivos inexplicáveis racionalmente.
Vira e mexe, por exemplo, descubro, em sebos, livros excelentes, que mereceriam tratamento muito mais nobre e que, no entanto, estão esquecidos, vendidos “aos quilos”, como papéis inúteis. Certamente, quem os escreveu tinha pretensões muito maiores do que esta. Sempre que posso, tento “ressuscitar” esses escritores, na vã esperança de que alguém, algum dia, em algum lugar, dentro de uns cinqüenta anos, por exemplo, faça o mesmo comigo. Quem sabe?!
Uma das maiores decepções que tive, em tempos recentes, foi encontrar meu livro “Por uma nova utopia” em um sebo que visitei. Levei um choque! E eu que achava que aquilo que escrevi havia agradado os leitores! Afinal, esgotaram-se seis edições, o que, no Brasil, não deixa de ser uma façanha.
Fico me perguntando: quem não gostou do livro, a ponto de se desfazer tão rapidamente dele? O que o desagradou? Foram os temas de que tratei? Foi o estilo? Foram minhas conclusões? Sei lá! O fato é que o livro que escrevi com tanto empenho e paixão, com tanta garra e tanta esperança, estava lá, naquele sebo, vendido a preço irrisório, como sucata, papel velho ou sei lá o quê.
Claro que continuo esperançoso de vir a me constituir em exceção à regra. Claro que continuo me empenhando cada vez mais, lendo, estudando e escrevendo, escrevendo e escrevendo, incansável e compulsivamente, sonhando que meus textos me sobrevivam para sempre e atestem a meu favor junto à posteridade.
Sem nenhum laivo de pessimismo, porém, sei que as chances são pequenas, ínfimas, remotíssimas de que isso venha a ocorrer. Tanta gente melhor do que eu não conseguiu. Busco, porém, reunir qualidade à quantidade, para que, daqui a alguns anos, pelo menos uma simples e reles crônica das milhares que escrevi sobreviva ao tempo e ao esquecimento e ateste que existi, amei, odiei, sofri, fui feliz e, sobretudo, vivi.
Minha obra é como aquelas mensagens que as pessoas escrevem, colocam em uma garrafa e lançam ao mar. A probabilidade é que ela nunca chegue às mãos de ninguém, dada a vastidão do oceano. Mas há sempre remotíssima chance de que um dia alguém, em algum tempo, em algum lugar, provavelmente a milhares de quilômetros do local em que a tal garrafa foi jogada nas ondas, a encontre.
Morris West escreve o seguinte, a respeito, no romance “O Advogado do Diabo”: “A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que um homem é, do que sente, daquilo em que acredita. Se dura, se se desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas porque outros homens pensam, sentem e crêem da mesma maneira”.
É esta a minha esperança. Esta é a confiança que teima em se manter presente, espicaçando-me a escrever, escrever, escrever e escrever, prolífica e compulsoriamente. Por isso é que tento entender as pessoas e estabelecer absoluta empatia com elas. Se vou conseguir fazer a mensagem na garrafa chegar às mãos da posteridade... jamais saberei! Seguirei tentando!
(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
A identidade de pensamentos, sentimentos e crenças é a única forma de tentarmos preservar nossas obras do esquecimento e da morte, tão logo venhamos a esgotar nosso tempo sobre a Terra. É uma imensa tolice, portanto, nadar contra a correnteza e pretender “fazer cabeças”, com vistas a modificar gostos e opiniões para fazer proselitismo.
Leio, por exemplo, com maior atenção e gosto, apenas livros de escritores com os quais me identifico, que tenho empatia nem que seja minimamente, que pensam como penso e que aprofundam e justificam esses meus pensamentos. Os outros... Não me proponho sequer a refutar o que pensam. Ignoro-os. Quase todas as pessoas agem assim.
O mesmo vale em relação às outras artes, como pintura, escultura, música etc. Temos a vã ilusão que as obras que deixarmos irão preservar nossa memória através dos séculos e milênios e que não “morrerão” jamais. Ledo engano.
Mesmo que aquilo que deixarmos venha a despertar a identidade de milhões de pessoas (que tenham os mesmos pensamentos, sentimentos e crenças que nós), não há a mínima garantia de que essas realizações nos sobrevivam, digamos, por dois, cinco ou dez anos, quanto mais “para sempre”. Não tardará para sermos esquecidos, como se sequer tivéssemos existido, salvo uma ou outra exceção e por motivos inexplicáveis racionalmente.
Vira e mexe, por exemplo, descubro, em sebos, livros excelentes, que mereceriam tratamento muito mais nobre e que, no entanto, estão esquecidos, vendidos “aos quilos”, como papéis inúteis. Certamente, quem os escreveu tinha pretensões muito maiores do que esta. Sempre que posso, tento “ressuscitar” esses escritores, na vã esperança de que alguém, algum dia, em algum lugar, dentro de uns cinqüenta anos, por exemplo, faça o mesmo comigo. Quem sabe?!
Uma das maiores decepções que tive, em tempos recentes, foi encontrar meu livro “Por uma nova utopia” em um sebo que visitei. Levei um choque! E eu que achava que aquilo que escrevi havia agradado os leitores! Afinal, esgotaram-se seis edições, o que, no Brasil, não deixa de ser uma façanha.
Fico me perguntando: quem não gostou do livro, a ponto de se desfazer tão rapidamente dele? O que o desagradou? Foram os temas de que tratei? Foi o estilo? Foram minhas conclusões? Sei lá! O fato é que o livro que escrevi com tanto empenho e paixão, com tanta garra e tanta esperança, estava lá, naquele sebo, vendido a preço irrisório, como sucata, papel velho ou sei lá o quê.
Claro que continuo esperançoso de vir a me constituir em exceção à regra. Claro que continuo me empenhando cada vez mais, lendo, estudando e escrevendo, escrevendo e escrevendo, incansável e compulsivamente, sonhando que meus textos me sobrevivam para sempre e atestem a meu favor junto à posteridade.
Sem nenhum laivo de pessimismo, porém, sei que as chances são pequenas, ínfimas, remotíssimas de que isso venha a ocorrer. Tanta gente melhor do que eu não conseguiu. Busco, porém, reunir qualidade à quantidade, para que, daqui a alguns anos, pelo menos uma simples e reles crônica das milhares que escrevi sobreviva ao tempo e ao esquecimento e ateste que existi, amei, odiei, sofri, fui feliz e, sobretudo, vivi.
Minha obra é como aquelas mensagens que as pessoas escrevem, colocam em uma garrafa e lançam ao mar. A probabilidade é que ela nunca chegue às mãos de ninguém, dada a vastidão do oceano. Mas há sempre remotíssima chance de que um dia alguém, em algum tempo, em algum lugar, provavelmente a milhares de quilômetros do local em que a tal garrafa foi jogada nas ondas, a encontre.
Morris West escreve o seguinte, a respeito, no romance “O Advogado do Diabo”: “A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que um homem é, do que sente, daquilo em que acredita. Se dura, se se desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas porque outros homens pensam, sentem e crêem da mesma maneira”.
É esta a minha esperança. Esta é a confiança que teima em se manter presente, espicaçando-me a escrever, escrever, escrever e escrever, prolífica e compulsoriamente. Por isso é que tento entender as pessoas e estabelecer absoluta empatia com elas. Se vou conseguir fazer a mensagem na garrafa chegar às mãos da posteridade... jamais saberei! Seguirei tentando!
(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Duas palavras, por Emilson Pedro Zorzi
Emilson Pedro Zorzi (*)
Bastariam duas palavras...
Que caberiam exatamente nas lacunas
Assombradas pela falta...
Fé e Café...
(*) Poeta e pintor de Jundiaí/SP.
Bastariam duas palavras...
Que caberiam exatamente nas lacunas
Assombradas pela falta...
Fé e Café...
(*) Poeta e pintor de Jundiaí/SP.
segunda-feira, 27 de abril de 2009
Relação sexuada, por Pedro J. Bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk (*)
“A relação entre homem e mulher será sempre sexuada. O homem é homem e a mulher é mulher. Será sempre uma relação pessoal, de uma pessoa feminina com uma pessoa masculina, e não precisa, necessariamente, intervir a sexualidade de ambos. Não precisa assumir a forma amorosa, mas ser apenas a maravilhosa relação pessoal entre o homem e a mulher”.
Esta lúcida afirmação não é minha (por isso, grafei-a entre aspas), mas do filósofo espanhol Julián Marias – que assinava o sobrenome da mãe, Aguilera, como costume na Espanha, e que morreu em dezembro de 2005, aos 91 anos de idade, e foi tido e havido como o principal discípulo do também filósofo, seu conterrâneo, José Ortega y Gasset – em matéria publicada no “Caderno de Sábado”, do “Jornal da Tarde” de São Paulo, publicada em 5 de dezembro de 1987.
Há algum erro ou contradição nessa afirmativa? Existe, nela, o mínimo laivo de machismo ou de menosprezo pela condição feminina? Claro que não, embora alguns entendam, equivocadamente, que sim. Marias (que ao lado de Gasset é dos poucos filósofos que compreendo, sem precisar recorrer a dicionários e, portanto, admiro, pela clareza e exatidão de suas propostas) não quis dizer (e não disse) que o homem seja superior à mulher, ou vice-versa. Limitou-se a constatar o óbvio (algo difícil de muitos entenderem): são diferentes. E viva a diferença! Caso não a houvesse, sequer existiríamos.
Por mais que respeite as mulheres (e as respeito profundamente), e as ame (amo-as de paixão), jamais cometeria a heresia de tratá-las da mesma forma que trato os homens (muitas reclamam essa igualdade de tratamento). Por que? Por machismo? Por menosprezo? Jamais! Por reverência!
Óbvio que essa forma diferente de tratamento não implica em subtrair da mulher seus mais comezinhos direitos, como o da igualdade no trabalho, no lar, na escola e em todo e qualquer lugar. Não implica em questionar sua competência em nenhum setor da vida apenas por causa da diferença de gênero, até porque essa não depende de sexo, de raça, de crença ou seja lá do que for. Não implica em tratá-la como perpétua criança ou como “propriedade” masculina, como não faz muito era costume (alguns imbecis ainda agem assim mundo afora).
Para mim, as mulheres sempre serão diferentes e ficaria aflito e infeliz se assim não fosse. Uma dessas diferenças, por exemplo, é do ponto de vista estético. Não consigo, por mais que tente, ver beleza no homem. Para o meu gosto pessoal, beleza é prerrogativa exclusivamente feminina. Por mais que uma mulher possa ser considerada “feia”, na comparação com muitas outras, ainda assim, para mim, sempre será mais bela do que o mais bonito dos homens. Preconceito? Creio que não. Entendo que se trate de bom-gosto. Em todo o caso... que atire a primeira pedra quem achar que estou errado.
Outrossim, não me entra na cabeça o fato de um homem, que queira merecer esse nome (não confundir com o meramente “macho”, pois o cão, o gato e o veado também o são) agredir qualquer mulher, não importa o motivo. E essa desgraça ocorre, ainda, pelo mundo afora, na maioria das vezes impune, ou com punições que descambam para o ridículo. Isso é absolutamente inconcebível. Recentes estatísticas revelam que, apenas nos Estados Unidos, a cada vinte segundos, em média, uma mulher é agredida. E no Brasil?
Outra coisa que não compreendo (e, obviamente, com a qual jamais irei concordar) é quando duas pessoas, que exerçam a mesmíssima função, são remuneradas de forma diferenciada, apenas por serem de sexos diferentes. No caso, as mulheres continuam ganhando menos. E são preteridas em promoções, sobretudo quando se trata de alguma chefia. E são discriminadas na política. O Brasil, em 509 anos de História, nunca teve uma mulher no comando do País. Qual a razão objetiva? Nenhuma! Puro preconceito (aqui, sim, cabe essa constatação).
Eu, como editor (e, portanto, chefe da minha editoria), sempre preferi (e continuarei preferindo) trabalhar com repórteres femininas. Por que? Por razões puramente práticas. Salvo exceções, elas sempre se mostraram mais objetivas, mais assíduas, mais dinâmicas, mais caprichosas, mais responsáveis, criativas e sensíveis. E afirmo isso do alto de mais de quarenta anos de experiência.
Creio que deixei clara minha posição. Quanto aos direitos, defendo (e sempre defenderei) que as mulheres têm e sempre deverão ter, sem qualquer exceção, os mesmíssimos do homem, quer no trabalho, quer no lar, na igreja, na escola, na sociedade etc. Já quanto ao tratamento, pelo menos da minha parte, este será sempre e sempre diferenciado, com mais respeito, mais afeto, mais ternura e mais admiração pelas mulheres. Quem achar que estou equivocado... atire a primeira pedra.
(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com
“A relação entre homem e mulher será sempre sexuada. O homem é homem e a mulher é mulher. Será sempre uma relação pessoal, de uma pessoa feminina com uma pessoa masculina, e não precisa, necessariamente, intervir a sexualidade de ambos. Não precisa assumir a forma amorosa, mas ser apenas a maravilhosa relação pessoal entre o homem e a mulher”.
Esta lúcida afirmação não é minha (por isso, grafei-a entre aspas), mas do filósofo espanhol Julián Marias – que assinava o sobrenome da mãe, Aguilera, como costume na Espanha, e que morreu em dezembro de 2005, aos 91 anos de idade, e foi tido e havido como o principal discípulo do também filósofo, seu conterrâneo, José Ortega y Gasset – em matéria publicada no “Caderno de Sábado”, do “Jornal da Tarde” de São Paulo, publicada em 5 de dezembro de 1987.
Há algum erro ou contradição nessa afirmativa? Existe, nela, o mínimo laivo de machismo ou de menosprezo pela condição feminina? Claro que não, embora alguns entendam, equivocadamente, que sim. Marias (que ao lado de Gasset é dos poucos filósofos que compreendo, sem precisar recorrer a dicionários e, portanto, admiro, pela clareza e exatidão de suas propostas) não quis dizer (e não disse) que o homem seja superior à mulher, ou vice-versa. Limitou-se a constatar o óbvio (algo difícil de muitos entenderem): são diferentes. E viva a diferença! Caso não a houvesse, sequer existiríamos.
Por mais que respeite as mulheres (e as respeito profundamente), e as ame (amo-as de paixão), jamais cometeria a heresia de tratá-las da mesma forma que trato os homens (muitas reclamam essa igualdade de tratamento). Por que? Por machismo? Por menosprezo? Jamais! Por reverência!
Óbvio que essa forma diferente de tratamento não implica em subtrair da mulher seus mais comezinhos direitos, como o da igualdade no trabalho, no lar, na escola e em todo e qualquer lugar. Não implica em questionar sua competência em nenhum setor da vida apenas por causa da diferença de gênero, até porque essa não depende de sexo, de raça, de crença ou seja lá do que for. Não implica em tratá-la como perpétua criança ou como “propriedade” masculina, como não faz muito era costume (alguns imbecis ainda agem assim mundo afora).
Para mim, as mulheres sempre serão diferentes e ficaria aflito e infeliz se assim não fosse. Uma dessas diferenças, por exemplo, é do ponto de vista estético. Não consigo, por mais que tente, ver beleza no homem. Para o meu gosto pessoal, beleza é prerrogativa exclusivamente feminina. Por mais que uma mulher possa ser considerada “feia”, na comparação com muitas outras, ainda assim, para mim, sempre será mais bela do que o mais bonito dos homens. Preconceito? Creio que não. Entendo que se trate de bom-gosto. Em todo o caso... que atire a primeira pedra quem achar que estou errado.
Outrossim, não me entra na cabeça o fato de um homem, que queira merecer esse nome (não confundir com o meramente “macho”, pois o cão, o gato e o veado também o são) agredir qualquer mulher, não importa o motivo. E essa desgraça ocorre, ainda, pelo mundo afora, na maioria das vezes impune, ou com punições que descambam para o ridículo. Isso é absolutamente inconcebível. Recentes estatísticas revelam que, apenas nos Estados Unidos, a cada vinte segundos, em média, uma mulher é agredida. E no Brasil?
Outra coisa que não compreendo (e, obviamente, com a qual jamais irei concordar) é quando duas pessoas, que exerçam a mesmíssima função, são remuneradas de forma diferenciada, apenas por serem de sexos diferentes. No caso, as mulheres continuam ganhando menos. E são preteridas em promoções, sobretudo quando se trata de alguma chefia. E são discriminadas na política. O Brasil, em 509 anos de História, nunca teve uma mulher no comando do País. Qual a razão objetiva? Nenhuma! Puro preconceito (aqui, sim, cabe essa constatação).
Eu, como editor (e, portanto, chefe da minha editoria), sempre preferi (e continuarei preferindo) trabalhar com repórteres femininas. Por que? Por razões puramente práticas. Salvo exceções, elas sempre se mostraram mais objetivas, mais assíduas, mais dinâmicas, mais caprichosas, mais responsáveis, criativas e sensíveis. E afirmo isso do alto de mais de quarenta anos de experiência.
Creio que deixei clara minha posição. Quanto aos direitos, defendo (e sempre defenderei) que as mulheres têm e sempre deverão ter, sem qualquer exceção, os mesmíssimos do homem, quer no trabalho, quer no lar, na igreja, na escola, na sociedade etc. Já quanto ao tratamento, pelo menos da minha parte, este será sempre e sempre diferenciado, com mais respeito, mais afeto, mais ternura e mais admiração pelas mulheres. Quem achar que estou equivocado... atire a primeira pedra.
(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Golpe de sorte, por Rodrigo Ramazzini
Rodrigo Ramazzini (*)
Deitados na cama.
- Amor!
- Ahhhn?
- Dormindo?
- Arãn!
- Tua bonequinha está...
- Hoje não, Maria Luiza!
- Por quê?
- Estou cansado. Quero dormir...
- Cansado de fazer o quê?
- Ué! Cansado... Não posso?
- Cansado de mim? É isso?
- Não começa, Maria Luiza!
- Responde então...
- Trabalhei demais hoje. Só isso!
- Sei.
- Não entende, né?
- Faz três dias que não transamos... Uma eternidade!
- Realmente uma eternidade! Mas quem agüentou três, agüenta quatro...
- Agora vai ser por agenda?
- Meu Deus! Está difícil hoje... Não, Maria Luiza!
- Smack! vjjj! Smack! vjjj! Smack! vjjj!
- Pára! Pára! Pára!
- O que foi?
- Não quero! Não quero nem beijo hoje...
- Estou te estranhando, Miguel!
- Por que eu tenho que estar sempre com vontade, hein?
- Deixa eu te fazer uma pergunta: tu tens outra?
- Claro que não! Que bobagem...
- Eu li em uma revista que quando o marido perde o interesse é porque pode ter outra...
- Eu não acredito!
- Pois é...
- Faz de conta que a revista está certa e me deixa dormir...
- Quer dizer que há essa possibilidade, então?
- Boa noite, Maria Luiza!
- O que é isso nas TUAS COSTAS?
- Pra que gritar? Isso o quê?
- Esse aranhão! O que é isso?
- Aqui?
- É... Esse mesmo!
- Foi aquele dia no jogo de futebol... Eu tinha te mostrado, não?
- Mostrou pra outra porque pra mim não!
- Mostrei sim!
- Além do mais, essas marcas de unhas são recentes e o futebol foi na semana passada.
- Trabalhando na área de perícia agora?
- Engraçadinho!
- Mas é!
- Vamos!
- Vamos o quê?
- Quero uma explicação!
- Mesmo?
- Lógico!
- Está bem! Eu admito...
- Fala...
- Tenho outra há três anos!
- Nããããããooooooooo!
- O que foi?
- Ufa! Ai amor...
- O que foi?
- Ai amor... Estava tendo um pesadelo contigo. Foi horrível! Tu disseste que tinha outra!
- Capaz! Dá um beijinho...
- Smack! vjjj! Aonde tu vais?
- No banheiro... Já volto!
No banheiro. Olhando-se no espelho.
- Ufa! Como fui esquecer... Será que ela viu alguma coisa? Teria sido uma indireta? Bah! Ainda estão fundas essas drogas de marcas... Que baita unhada aquela louca me deixou!
- Falou comigo, amor?
- Ahn... Ahn... Ahn... Falei! Onde tem uma camiseta? Estou com frio...
(*) Jornalista
Deitados na cama.
- Amor!
- Ahhhn?
- Dormindo?
- Arãn!
- Tua bonequinha está...
- Hoje não, Maria Luiza!
- Por quê?
- Estou cansado. Quero dormir...
- Cansado de fazer o quê?
- Ué! Cansado... Não posso?
- Cansado de mim? É isso?
- Não começa, Maria Luiza!
- Responde então...
- Trabalhei demais hoje. Só isso!
- Sei.
- Não entende, né?
- Faz três dias que não transamos... Uma eternidade!
- Realmente uma eternidade! Mas quem agüentou três, agüenta quatro...
- Agora vai ser por agenda?
- Meu Deus! Está difícil hoje... Não, Maria Luiza!
- Smack! vjjj! Smack! vjjj! Smack! vjjj!
- Pára! Pára! Pára!
- O que foi?
- Não quero! Não quero nem beijo hoje...
- Estou te estranhando, Miguel!
- Por que eu tenho que estar sempre com vontade, hein?
- Deixa eu te fazer uma pergunta: tu tens outra?
- Claro que não! Que bobagem...
- Eu li em uma revista que quando o marido perde o interesse é porque pode ter outra...
- Eu não acredito!
- Pois é...
- Faz de conta que a revista está certa e me deixa dormir...
- Quer dizer que há essa possibilidade, então?
- Boa noite, Maria Luiza!
- O que é isso nas TUAS COSTAS?
- Pra que gritar? Isso o quê?
- Esse aranhão! O que é isso?
- Aqui?
- É... Esse mesmo!
- Foi aquele dia no jogo de futebol... Eu tinha te mostrado, não?
- Mostrou pra outra porque pra mim não!
- Mostrei sim!
- Além do mais, essas marcas de unhas são recentes e o futebol foi na semana passada.
- Trabalhando na área de perícia agora?
- Engraçadinho!
- Mas é!
- Vamos!
- Vamos o quê?
- Quero uma explicação!
- Mesmo?
- Lógico!
- Está bem! Eu admito...
- Fala...
- Tenho outra há três anos!
- Nããããããooooooooo!
- O que foi?
- Ufa! Ai amor...
- O que foi?
- Ai amor... Estava tendo um pesadelo contigo. Foi horrível! Tu disseste que tinha outra!
- Capaz! Dá um beijinho...
- Smack! vjjj! Aonde tu vais?
- No banheiro... Já volto!
No banheiro. Olhando-se no espelho.
- Ufa! Como fui esquecer... Será que ela viu alguma coisa? Teria sido uma indireta? Bah! Ainda estão fundas essas drogas de marcas... Que baita unhada aquela louca me deixou!
- Falou comigo, amor?
- Ahn... Ahn... Ahn... Falei! Onde tem uma camiseta? Estou com frio...
(*) Jornalista
segunda-feira, 20 de abril de 2009
Os conversadores, por Risomar Fasanaro
Risomar Fasanaro (*)
Apresentar um espetáculo de poesia é um desafio. Envolver o público e torná-lo participante parece-nos mais difícil ainda. Mas é a isto que o poeta Cacá Mendes e o músico Edson Tubinaga se propõem em Os Conversadores que estréia no dia 25 no Teatro Gloria Rocha em Jundiaí.
Trata-se de uma apresentação diferente, em que os dois falam música e executam suas composições e poemas junto com o público, em um espetáculo simples, divertido e comunicativo.
No show, músicas famosas servem de ponto de partida a uma ou outra música falada pela dupla. Algumas delas servem de pretexto para produzir música com partes do corpo como a língua, a cabeça.
Os dois artistas brincam com o público, convidando-o a falar porque, segundo eles palavra presa não dá, e palavra não é presidiária, não cometeu crime, não matou, não roubou...
Em um momento do espetáculo eles convidam o público para entrar em cena e participar de um breve sarau, em que as pessoas poderão falar poesia, contar uma historia curta, cantar e até dançar, porque nesse espetáculo qualquer um pode ser artista.
Um dos pontos altos do espetáculo é quando os dois apresentam a Canção do Elogio, composição dos dois artistas, e que é uma releitura da Canção do Exílio do poeta maranhense Gonçalves Dias. Nesse poema, as pessoas sentem saudade não de sua terra natal, mas do consumismo, dos shoppings e dos belos olhos de um amor que perdeu em outro lugar.
Os dois se despedem do público com o que Cacá e Tobinaga chamam de Rap End, quando revisitam apenas um verso do poema Café com Pão de Manuel Bandeira.
Este espetáculo me chamou a atenção porque é notória a dificuldade que a poesia enfrenta nos mais diversos locais. São raras as editoras que publicam poesia. Na escola são poucos os professores que a levam aos seus alunos. Uns assumem claramente não gostar de textos poéticos, outros falam da dificuldade que consiste em trabalhar com poesia em sala de aula, e isso é lamentável porque poucos textos agradam tanto a crianças e adolescentes, como os poéticos.
Mas é claro que para isso é preciso que o professor se exercite, leia, procure conhecer alguns poetas e suas obras, só assim descobrirá o sabor que só um bom poema produz na alma. Quem sabe a partir daí passe também a gostar, pois isso facilitará a transferência do seu entusiasmo às outras pessoas.
Os professores encontrarão em Os Conversadores um jeito simples de envolver o público, e a partir daí quem sabe poderão encontrar seu próprio caminho, aquele que tem a ver com seu jeito e passem a trabalhar com poesia.
O espetáculo tem direção cênica, figurino e programação visual de Joseane Alfer; as composições musicais são de Tobinaga e Cacá, sendo uma delas em deste último com a cantora e compositora Graziella Hessel. A produção executiva é de Antônio Carlos Fernandes e a produção é da Motiva Produções e Evento.
Para conferir.... (tatatata) (re)estréia do espetáculo vai ser(á) no dia 25, no Teatro Gloria Rocha, em Jundiaí, São Paulo.
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Apresentar um espetáculo de poesia é um desafio. Envolver o público e torná-lo participante parece-nos mais difícil ainda. Mas é a isto que o poeta Cacá Mendes e o músico Edson Tubinaga se propõem em Os Conversadores que estréia no dia 25 no Teatro Gloria Rocha em Jundiaí.
Trata-se de uma apresentação diferente, em que os dois falam música e executam suas composições e poemas junto com o público, em um espetáculo simples, divertido e comunicativo.
No show, músicas famosas servem de ponto de partida a uma ou outra música falada pela dupla. Algumas delas servem de pretexto para produzir música com partes do corpo como a língua, a cabeça.
Os dois artistas brincam com o público, convidando-o a falar porque, segundo eles palavra presa não dá, e palavra não é presidiária, não cometeu crime, não matou, não roubou...
Em um momento do espetáculo eles convidam o público para entrar em cena e participar de um breve sarau, em que as pessoas poderão falar poesia, contar uma historia curta, cantar e até dançar, porque nesse espetáculo qualquer um pode ser artista.
Um dos pontos altos do espetáculo é quando os dois apresentam a Canção do Elogio, composição dos dois artistas, e que é uma releitura da Canção do Exílio do poeta maranhense Gonçalves Dias. Nesse poema, as pessoas sentem saudade não de sua terra natal, mas do consumismo, dos shoppings e dos belos olhos de um amor que perdeu em outro lugar.
Os dois se despedem do público com o que Cacá e Tobinaga chamam de Rap End, quando revisitam apenas um verso do poema Café com Pão de Manuel Bandeira.
Este espetáculo me chamou a atenção porque é notória a dificuldade que a poesia enfrenta nos mais diversos locais. São raras as editoras que publicam poesia. Na escola são poucos os professores que a levam aos seus alunos. Uns assumem claramente não gostar de textos poéticos, outros falam da dificuldade que consiste em trabalhar com poesia em sala de aula, e isso é lamentável porque poucos textos agradam tanto a crianças e adolescentes, como os poéticos.
Mas é claro que para isso é preciso que o professor se exercite, leia, procure conhecer alguns poetas e suas obras, só assim descobrirá o sabor que só um bom poema produz na alma. Quem sabe a partir daí passe também a gostar, pois isso facilitará a transferência do seu entusiasmo às outras pessoas.
Os professores encontrarão em Os Conversadores um jeito simples de envolver o público, e a partir daí quem sabe poderão encontrar seu próprio caminho, aquele que tem a ver com seu jeito e passem a trabalhar com poesia.
O espetáculo tem direção cênica, figurino e programação visual de Joseane Alfer; as composições musicais são de Tobinaga e Cacá, sendo uma delas em deste último com a cantora e compositora Graziella Hessel. A produção executiva é de Antônio Carlos Fernandes e a produção é da Motiva Produções e Evento.
Para conferir.... (tatatata) (re)estréia do espetáculo vai ser(á) no dia 25, no Teatro Gloria Rocha, em Jundiaí, São Paulo.
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
terça-feira, 14 de abril de 2009
Cérebro 0 Km, por Sayonara Lino
Sayonara Lino (*)
Tem gente à espera de um rim, um pulmão, um coração. Transplantes podem salvar vidas e os que saem vitoriosos dessa substituição do que está gasto e não serve mais ganham uma nova chance. É comum e aliás bastante inteligente o receptor reavaliar seus hábitos, posturas diante da vida, fazer uma faxina na alma, reelaborar.
Tem outros, como eu, que estão precisando de um cérebro novo. Adoraria começar 2009 com todas as sinapses reestruturadas em um diálogo harmônico. A Santíssima Trindade depressão leve, ansiedade e stress ficariam longe, meditando em outro templo. Perda de memória, só de for de energético com vodca. Mágoa, rancor, ressentimento? Que é isso, aqui só teria alegria, amor, ternura, generosidade. Se não ganhar meu cérebro 0 Km de presente, vou pedir uma bengala. Pode ser um apoio na esquizofrenia dos dias atuais.
Você nunca pensou em ter um belo par de olhos claros, o cabelo mais liso ou cacheado, uma barriga de dar inveja, perder 10 Kg, parecer com a mocinha ou mocinho da capa? Não? Mentira. Já sim. É humano, geralmente as pessoas desejam melhorar. Tem gente comprando peito, tem gente comprando bunda, tem gente colocando botóx no dedo mínimo. Todo mundo (quase) acha normal, apóia, está certo. Tudo em nome da estética. Precisamos ser belos, sarados. Mas, cá pra nós, também precisamos ser menos perturbados.
Não quero ser pára-raio de maluco, bater papo cabeça comigo cheia de argumentação e no final discordar. Pensar em como estará minha vida em 2025. Sofrer por antecipação, jamais, só haverá sorriso e glória. Um cérebro novo, sustentável, que recicle as emoções direitinho e não me faça pensar nessa maluquice de novo. Não aceito usado. Só quero se for 0 Km.
(*) Jornalista
Tem gente à espera de um rim, um pulmão, um coração. Transplantes podem salvar vidas e os que saem vitoriosos dessa substituição do que está gasto e não serve mais ganham uma nova chance. É comum e aliás bastante inteligente o receptor reavaliar seus hábitos, posturas diante da vida, fazer uma faxina na alma, reelaborar.
Tem outros, como eu, que estão precisando de um cérebro novo. Adoraria começar 2009 com todas as sinapses reestruturadas em um diálogo harmônico. A Santíssima Trindade depressão leve, ansiedade e stress ficariam longe, meditando em outro templo. Perda de memória, só de for de energético com vodca. Mágoa, rancor, ressentimento? Que é isso, aqui só teria alegria, amor, ternura, generosidade. Se não ganhar meu cérebro 0 Km de presente, vou pedir uma bengala. Pode ser um apoio na esquizofrenia dos dias atuais.
Você nunca pensou em ter um belo par de olhos claros, o cabelo mais liso ou cacheado, uma barriga de dar inveja, perder 10 Kg, parecer com a mocinha ou mocinho da capa? Não? Mentira. Já sim. É humano, geralmente as pessoas desejam melhorar. Tem gente comprando peito, tem gente comprando bunda, tem gente colocando botóx no dedo mínimo. Todo mundo (quase) acha normal, apóia, está certo. Tudo em nome da estética. Precisamos ser belos, sarados. Mas, cá pra nós, também precisamos ser menos perturbados.
Não quero ser pára-raio de maluco, bater papo cabeça comigo cheia de argumentação e no final discordar. Pensar em como estará minha vida em 2025. Sofrer por antecipação, jamais, só haverá sorriso e glória. Um cérebro novo, sustentável, que recicle as emoções direitinho e não me faça pensar nessa maluquice de novo. Não aceito usado. Só quero se for 0 Km.
(*) Jornalista
segunda-feira, 6 de abril de 2009
Cair de banda, por Nei Duclós
Nei Duclós (*)
Vou embora, desistir, sair. Deixar para lá, pegar um táxi, metrô, ônibus, avião. Vou a pé até a estrada e peço carona. Abandono tudo, abro um restaurante, vou viver numa gruta, uma ilha deserta. Não quero saber de pauta, de lead, de deadline, de cobertura, de tantos caracteres. Não quero ler, ver ou pensar. Quero ficar de olho parado até o fechamento passar. Nem precisa me indenizar, me trancar na salinha, me advertir. Quero outra vida, sem essa pressão de devorar o mundo todos os dias e vomitá-lo para recomeçar no início de novo expediente.
A vida é outra coisa e está fora da redação. Ok, não existem mais redações, elas sumiram junto com a profissão e hoje o que temos é o conteúdo a ser gerenciado, o cliente a ser atendido, a publicidade no miolo do texto, o título sem sentido, mas com o número exato de toques para caber no espaço devido. Ou sempre foi assim? Lembra daqueles títulos de três linhas nas revistas de luxo, em que a primeira precisava ter sete toques, a segunda oito e a terceira onze? Ou será que sonhei com isso?
É provável que eu tenha perdido a razão depois de dez milhões de edições. Talvez tenham me confinado nessa jaula que eu acho ser o mundo real e visível e estou como criatura de Matriz sonhando a liberdade de não pertencer mais à maquina de moer carne da profissão. Talvez meu desejo de abandonar tudo tenha enfim se concretizado e eu esteja numa espécie de limbo, pronto para reencontrar alguns companheiros que cruzaram comigo neste rio de palavras.
As celebridades, tão consideradas pelos estudantes, e que estiveram muito perto por tanto tempo, nem contam. O que pega são os anônimos, os redatores que não assinavam matérias, os diagramadores que jamais chegavam à direção da arte, os repórteres que sumiam de verdade para nunca mais. O que pega são os office-boys, como aquele tão pernóstico que o patrão dizia ser não um contínuo, mas um Editor de Continuidade. Ou o cara que recortava jornal para fazer clipping. Ou o setorista que dedicou cem anos para seu ofício, cobrindo esportes, ou polícia ou necrológios e por fim foi também embora, envolto em brumas de uma literatura que cheirava a biblioteca antiga, submersa em pó e esquecimento.
Não vá fazer poesia com tanta realidade, que de tão absurda parece ficção. Não diga que esqueceu aquelas dobras de corredor onde revisoras passavam com papéis na mão, concentradas em sua difícil arte. Ou o rapaz do arquivo, que fazia parte dos móveis daquele grande jornal do interior e que um dia respondeu o pedido urgente do editor apressado, que bradava: “Fulano de Tal, sabe quem é?”, com a clássica resposta: “Não sei, mas tenho”. Ou o tempo do off-set quando bravos rapazes analfabetos esforçados da composição colavam parágrafos inteiros de cabeça para baixo, mas no maior capricho, fazendo com que a leitura do dia seguinte fosse festejada com gargalhadas.
No fundo, queres do jornalismo o quem nunca pertenceu a ele. As erratas que se repetiam com os mesmos erros, o foca de bolsa e tênis que chegava com o cerebral “Quatro Quartetos”, de T.S. Elliot, embaixo do braço e arrancava do chefe de reportagem o desabafo: “Pronto, mais um intelectual de sovaco”; a happy hour com o pessoal da oficina; e as despedidas. Sim, quando alguém decidia enfim ir embora e íamos todos na rodoviária ou na estação nos despedir, bêbados, batendo em suas costas como querendo expulsá-lo, mas no fundo sonhando em fazer a mesma coisa.
Partir, ir embora, deixar esta vida. A pior do mundo, mas que não há nem haverá outra igual nem melhor. Longa vida à memória e à loucura: esse tal de jornalismo, profissão extinta, ninho de loucos, que trabalham sob as ordens do destino e tiram de letra qualquer lágrima que venha atrapalhar nossa conversa na calçada, no fim da noite, antes do assombroso amanhecer.
(*) Autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias
Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
Vou embora, desistir, sair. Deixar para lá, pegar um táxi, metrô, ônibus, avião. Vou a pé até a estrada e peço carona. Abandono tudo, abro um restaurante, vou viver numa gruta, uma ilha deserta. Não quero saber de pauta, de lead, de deadline, de cobertura, de tantos caracteres. Não quero ler, ver ou pensar. Quero ficar de olho parado até o fechamento passar. Nem precisa me indenizar, me trancar na salinha, me advertir. Quero outra vida, sem essa pressão de devorar o mundo todos os dias e vomitá-lo para recomeçar no início de novo expediente.
A vida é outra coisa e está fora da redação. Ok, não existem mais redações, elas sumiram junto com a profissão e hoje o que temos é o conteúdo a ser gerenciado, o cliente a ser atendido, a publicidade no miolo do texto, o título sem sentido, mas com o número exato de toques para caber no espaço devido. Ou sempre foi assim? Lembra daqueles títulos de três linhas nas revistas de luxo, em que a primeira precisava ter sete toques, a segunda oito e a terceira onze? Ou será que sonhei com isso?
É provável que eu tenha perdido a razão depois de dez milhões de edições. Talvez tenham me confinado nessa jaula que eu acho ser o mundo real e visível e estou como criatura de Matriz sonhando a liberdade de não pertencer mais à maquina de moer carne da profissão. Talvez meu desejo de abandonar tudo tenha enfim se concretizado e eu esteja numa espécie de limbo, pronto para reencontrar alguns companheiros que cruzaram comigo neste rio de palavras.
As celebridades, tão consideradas pelos estudantes, e que estiveram muito perto por tanto tempo, nem contam. O que pega são os anônimos, os redatores que não assinavam matérias, os diagramadores que jamais chegavam à direção da arte, os repórteres que sumiam de verdade para nunca mais. O que pega são os office-boys, como aquele tão pernóstico que o patrão dizia ser não um contínuo, mas um Editor de Continuidade. Ou o cara que recortava jornal para fazer clipping. Ou o setorista que dedicou cem anos para seu ofício, cobrindo esportes, ou polícia ou necrológios e por fim foi também embora, envolto em brumas de uma literatura que cheirava a biblioteca antiga, submersa em pó e esquecimento.
Não vá fazer poesia com tanta realidade, que de tão absurda parece ficção. Não diga que esqueceu aquelas dobras de corredor onde revisoras passavam com papéis na mão, concentradas em sua difícil arte. Ou o rapaz do arquivo, que fazia parte dos móveis daquele grande jornal do interior e que um dia respondeu o pedido urgente do editor apressado, que bradava: “Fulano de Tal, sabe quem é?”, com a clássica resposta: “Não sei, mas tenho”. Ou o tempo do off-set quando bravos rapazes analfabetos esforçados da composição colavam parágrafos inteiros de cabeça para baixo, mas no maior capricho, fazendo com que a leitura do dia seguinte fosse festejada com gargalhadas.
No fundo, queres do jornalismo o quem nunca pertenceu a ele. As erratas que se repetiam com os mesmos erros, o foca de bolsa e tênis que chegava com o cerebral “Quatro Quartetos”, de T.S. Elliot, embaixo do braço e arrancava do chefe de reportagem o desabafo: “Pronto, mais um intelectual de sovaco”; a happy hour com o pessoal da oficina; e as despedidas. Sim, quando alguém decidia enfim ir embora e íamos todos na rodoviária ou na estação nos despedir, bêbados, batendo em suas costas como querendo expulsá-lo, mas no fundo sonhando em fazer a mesma coisa.
Partir, ir embora, deixar esta vida. A pior do mundo, mas que não há nem haverá outra igual nem melhor. Longa vida à memória e à loucura: esse tal de jornalismo, profissão extinta, ninho de loucos, que trabalham sob as ordens do destino e tiram de letra qualquer lágrima que venha atrapalhar nossa conversa na calçada, no fim da noite, antes do assombroso amanhecer.
(*) Autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias
Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Da beleza imperceptível, por Talis Andrade
Talis Andrade (*)
Amo as mulheres que veneram
a beleza das deusas
Repugna a formosura
das coquetes
que todos tocam
com as mãos andejas
Amo o encanto a magia
da imperceptível beleza
que muitas vezes
só uma mulher
pressente e almeja
(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).
(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite, Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).
Amo as mulheres que veneram
a beleza das deusas
Repugna a formosura
das coquetes
que todos tocam
com as mãos andejas
Amo o encanto a magia
da imperceptível beleza
que muitas vezes
só uma mulher
pressente e almeja
(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).
(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite, Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).
quarta-feira, 25 de março de 2009
Uma página de Rubem Braga, por Evelyne Furtado
Evelyne Furtado (*)
Ivo viu a uva. Ele viu a viúva. Viu e escreveu sobre a viúva em maiô preto com seu filho na praia. Ele também observou o homem nadando. Ele via e descrevia a vida como poucos.
Rubem Braga "será", segundo Millôr Fernandes, "um dos cinco melhores escritores brasileiros do futuro". A frase está na sua página da revista Veja de janeiro último. Braga morreu em 1990.
Com esse aparente anacronismo o mestre Millôr aponta, ao meu ver, a injustiça cometida contra o escritor capixaba, simplesmente por ele ter escolhido a crônica como forma de expressão literária.
Preconceito bobo como a maioria dos preconceitos é, pois Rubem Braga falava do cotidiano com raro lirismo em tom corriqueiro e fluente.
Foi grande exatamente por não ser rebuscado, afinal, quem usa muitos adornos dá a impressão de querer preencher com palavras a falta de conteúdo. Braga não precisava de tais adereços.
Conheci Rubem Braga na coleção “Para Gostar de Ler” na companhia de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Drummond e Otto Lara Rezende. Um cuidado de pai para a filha que já gostava de ler, mas que lia qualquer coisa que lhe caísse às mãos.
Assim, fui conhecendo Cahoreiro de Itapemerim, o Rio de Janeiro de outra época (como já havia feito com Machado), o mar, o menino e o passarinho.
Retornei a Braga, através da observação de Millôr. Encontrei “A Viajante” um terno recado em crônica. Um aviso poético. Uma página somente, mas onde se vê o grande escritor que escolheu o gênero que lhe caiu muitíssimo bem.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
Ivo viu a uva. Ele viu a viúva. Viu e escreveu sobre a viúva em maiô preto com seu filho na praia. Ele também observou o homem nadando. Ele via e descrevia a vida como poucos.
Rubem Braga "será", segundo Millôr Fernandes, "um dos cinco melhores escritores brasileiros do futuro". A frase está na sua página da revista Veja de janeiro último. Braga morreu em 1990.
Com esse aparente anacronismo o mestre Millôr aponta, ao meu ver, a injustiça cometida contra o escritor capixaba, simplesmente por ele ter escolhido a crônica como forma de expressão literária.
Preconceito bobo como a maioria dos preconceitos é, pois Rubem Braga falava do cotidiano com raro lirismo em tom corriqueiro e fluente.
Foi grande exatamente por não ser rebuscado, afinal, quem usa muitos adornos dá a impressão de querer preencher com palavras a falta de conteúdo. Braga não precisava de tais adereços.
Conheci Rubem Braga na coleção “Para Gostar de Ler” na companhia de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Drummond e Otto Lara Rezende. Um cuidado de pai para a filha que já gostava de ler, mas que lia qualquer coisa que lhe caísse às mãos.
Assim, fui conhecendo Cahoreiro de Itapemerim, o Rio de Janeiro de outra época (como já havia feito com Machado), o mar, o menino e o passarinho.
Retornei a Braga, através da observação de Millôr. Encontrei “A Viajante” um terno recado em crônica. Um aviso poético. Uma página somente, mas onde se vê o grande escritor que escolheu o gênero que lhe caiu muitíssimo bem.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
segunda-feira, 23 de março de 2009
Outono, por Solange Sólon Borges
Solange Sólon Borges (*)
Caem as folhas secas no chão irregularmente,/
Mas o fato é que sempre é outono no outono,/
E o inverno vem depois fatalmente...
Fernando Pessoa
As flores vestem cores enganosas. Somente com a luz clara do verão ou da primavera é possível vê-las na totalidade. O que o outono me consente? O branco do fim da tarde avisa sobre o vazio próximo, o inverno, e ele chega de vez, como se diante das intermitências das nuvens todo um universo alicerçado em detalhes pudesse ruir. O branco interior reflete minhas memórias encobertas por pátina, tempos que subsistem em mim, teias ocultas, alma suspensa nesse suave retiro. No inverno não sei dizer nada; no outono ainda sussurro.
Passeio nas últimas horas do dia para ver a noite surgir com seus arminhos feéricos. Azulmente. Há uma plumagem aérea que purifica uma ou outra palavra, e me desenrolo em versos, que enfeitam os cantos desdobrados do meu quarto.
É minha estação de quietude, de teias de aranha no alto do sonhos, quando aparo arestas íntimas, na estagnação lenta dos hábitos que terá seu ápice em dias estranhamente frios. Embarco em mim, em interiores onde nada se macula. Um Sol tímido arde nas janelas reverberando as chamas tênues do fogo e essa suavidade me preenche com promessas.
Meu amado soluciona com habilidade problemas matemáticos, mas não há como me alcançar com álgebras. Então, segura minhas mãos pequenas para que eu tenha a certeza dos poentes e das portas abertas. Não sou náufraga e faço uma amável viagem. Estou bem, informo, é só o rito de passagem para que o que é voraz se aquiete e o que é excessivo silêncio se nomeie. Quando sair dessa época de sombras irregulares serei esplendente, nascente entre sóis invisíveis, amor ressuscitado, intervalo de sedas...
(*) Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.
Caem as folhas secas no chão irregularmente,/
Mas o fato é que sempre é outono no outono,/
E o inverno vem depois fatalmente...
Fernando Pessoa
As flores vestem cores enganosas. Somente com a luz clara do verão ou da primavera é possível vê-las na totalidade. O que o outono me consente? O branco do fim da tarde avisa sobre o vazio próximo, o inverno, e ele chega de vez, como se diante das intermitências das nuvens todo um universo alicerçado em detalhes pudesse ruir. O branco interior reflete minhas memórias encobertas por pátina, tempos que subsistem em mim, teias ocultas, alma suspensa nesse suave retiro. No inverno não sei dizer nada; no outono ainda sussurro.
Passeio nas últimas horas do dia para ver a noite surgir com seus arminhos feéricos. Azulmente. Há uma plumagem aérea que purifica uma ou outra palavra, e me desenrolo em versos, que enfeitam os cantos desdobrados do meu quarto.
É minha estação de quietude, de teias de aranha no alto do sonhos, quando aparo arestas íntimas, na estagnação lenta dos hábitos que terá seu ápice em dias estranhamente frios. Embarco em mim, em interiores onde nada se macula. Um Sol tímido arde nas janelas reverberando as chamas tênues do fogo e essa suavidade me preenche com promessas.
Meu amado soluciona com habilidade problemas matemáticos, mas não há como me alcançar com álgebras. Então, segura minhas mãos pequenas para que eu tenha a certeza dos poentes e das portas abertas. Não sou náufraga e faço uma amável viagem. Estou bem, informo, é só o rito de passagem para que o que é voraz se aquiete e o que é excessivo silêncio se nomeie. Quando sair dessa época de sombras irregulares serei esplendente, nascente entre sóis invisíveis, amor ressuscitado, intervalo de sedas...
(*) Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.
terça-feira, 17 de março de 2009
Viver acima de tudo, por Juliano Luís Pereira Sanches
Juliano Luís Pereira Sanches (*)
Me fizeram analfabeto
Não me entreguei
Tornei-me amigo do alfabeto
Deles me retirei
Me puseram no olho do furação
Não me entreguei
Me libertei com a minha mão
Não me derrotei
Tacaram pedra no meu olho
Não me entreguei
Não me fiz piolho
Me limpei
Me jogaram no chão
Não me entreguei
O corpo aguenta o turbilhão
Ressuscitei
Quiseram me jogar na rua
Não me entreguei
A vida continua
Vencerei
Me fizeram comer poeira
Não me entreguei
Levantei da eira
Superei
Me puseram na estrada
Não me entreguei
Aqui eu fico
Aqui eu morrerei
Me fizeram morto
Não me entreguei
Deixei meu corpo
Continuei
(*) Jornalista, folclorista e poeta de Campinas. Foi repórter de assuntos gerais nos programas Sexta Cultural, Fractal, Jornal da Educativa e Bom Dia Campinas, da Rádio Educativa FM 101.9 (www.campinas.sp.gov.br). Atualmente, é apresentador, repórter e produtor do programa de jornalismo educativo Ponto & Vírgula da Rádio Educativa em parceria com a Secretaria de Educação de Campinas. Colaborador do Portal Sorocult (www.sorocult.com), e colunista do Jornalzen (www.jornalzen.com.br), de Campinas.
Me fizeram analfabeto
Não me entreguei
Tornei-me amigo do alfabeto
Deles me retirei
Me puseram no olho do furação
Não me entreguei
Me libertei com a minha mão
Não me derrotei
Tacaram pedra no meu olho
Não me entreguei
Não me fiz piolho
Me limpei
Me jogaram no chão
Não me entreguei
O corpo aguenta o turbilhão
Ressuscitei
Quiseram me jogar na rua
Não me entreguei
A vida continua
Vencerei
Me fizeram comer poeira
Não me entreguei
Levantei da eira
Superei
Me puseram na estrada
Não me entreguei
Aqui eu fico
Aqui eu morrerei
Me fizeram morto
Não me entreguei
Deixei meu corpo
Continuei
(*) Jornalista, folclorista e poeta de Campinas. Foi repórter de assuntos gerais nos programas Sexta Cultural, Fractal, Jornal da Educativa e Bom Dia Campinas, da Rádio Educativa FM 101.9 (www.campinas.sp.gov.br). Atualmente, é apresentador, repórter e produtor do programa de jornalismo educativo Ponto & Vírgula da Rádio Educativa em parceria com a Secretaria de Educação de Campinas. Colaborador do Portal Sorocult (www.sorocult.com), e colunista do Jornalzen (www.jornalzen.com.br), de Campinas.
segunda-feira, 9 de março de 2009
O milagre, por Fábio de Lima
Fábio de Lima (*)
Veja bem, Maria. Aqui na rua de trás da minha rua mora uma benzedeira. Você até sabe, mas é preciso saber mais. Ela é cega de um olho e enxerga mal com o outro. O nome dela é Dona Rosa. Ela é surda de um ouvido e não escuta bem com o outro. A pele dela é negra. O cabelo é cinza. Dona Rosa deve ter uns 90 anos, mas ninguém sabe a idade dela não.
Veja bem, Maria. Todos os dias na casa de Dona Rosa algumas pessoas entram e algumas pessoas saem. Uns vão até lá andando e outros param seus carros de luxo em sua porta. Ela trata qualquer um do mesmo jeito. A perna esquerda não tem lá muita força. A direita também não é lá muito firme. Mas com uma bengala, de cabo de vassoura, Dona Rosa anda com seus passos curtos por aí.
Veja bem, Maria. A vida de Dona Rosa é ajudar os outros. E isso ela faz quando o sol esquenta. E isso ela faz quando a chuva esfria. E isso Dona Rosa faz desde criança. Dizem os mais velhos que ela benze as pessoas desde que tinha 11 anos de idade. Eu não duvido. Eu mesmo quando tinha uns 7 ou 8 anos fui benzido por Dona Rosa pela primeira vez. E agora já estou com 53 anos, o que dá credito para o que o povo diz.
Veja bem, Maria. Nesse bairro onde vivo não tem uma alma viva ou morta que não conheça Dona Rosa. Ela nunca quis casar. Falam que ela nunca nem namorou. Alguns dizem que ela é santa. Há também quem diga que ela é o próprio capeta. Dona Rosa conversa sozinha, diz que vê pessoas mortas do mesmo jeito que vê as vivas. Ela tem poucos dentes na boca. Ela tem umas unhas grandes. Ela cheira a perfume de rosas qualquer hora do dia.
Veja bem, Maria. Você bem sabe que sou muito observador. Não é por acaso que desde muito novo virei escritor. E sabe também que eu não sou de acreditar no que os outros falam. Sendo assim, mesmo vivendo perto de Dona Rosa eu nunca escrevi sobre ela, porque não tinha certeza se devia falar bem ou mal da velha. Eu não sabia e ainda não sei. Hoje abro uma exceção, mas já vou, em breve, lhe dizer o motivo.
Veja bem, Maria. Ontem à noite eu estava aqui em cima dessa cama e não sei precisar o horário. Talvez meia-noite. Talvez uma da manhã. Talvez duas da manhã. Não sei. Mas, de repente, uma pessoa entrou pela porta de meu quarto sem bater, sem fazer barulho e, digo pra você, sem nem abrir a porta. Eu, medroso que sempre fui, fiquei todo arrepiado, mais que assustado e, com o perdão da palavra: caguei, me caguei todo.
Veja bem, Maria. Eu fechei os olhos para me esconder do medo. Depois abri eles para limpar meu medo. Então, fechei eles de novo e gritei por Deus. Quando abri de novo os olhos a pessoa ainda estava ali. Só aí que reconheci aquele rosto sofrido e aquele corpo franzino. A pessoa era Dona Rosa que segurava uns pedaços de plantas nas mãos e falava, baixinho, palavras que eu não entendia.
Veja bem, Maria. Eu controlando meu medo perguntei o que Dona Rosa fazia ali. Mas a velha não me respondeu. Ela sorriu seu sorriso desdentado e continuou seu ritual. Depois de uns três minutos que eu, entre lágrimas e perguntas sem respostas, fiquei imóvel, pra variar, nessa mesma cama, Dona Rosa firmou-se em sua bengala e foi embora, a passos curtos, do mesmo modo que chegou.
Veja bem, Maria. Mais que nenhuma outra pessoa você sabe minha peleja com a vida. Eu que sempre fui um homem comum até meus 23 anos. Eu que procurei entender e aceitar tanta coisa, embora meu sofrimento nunca me deixou certezas. Dona Rosa partiu e eu, cheirando a merda, precisava de alguma forma me limpar. Eu que tantas vezes precisei de ajuda, fosse no clarão do dia ou fosse na escuridão da noite.
Veja bem, Maria. Dona Rosa em meu quarto caminhando no escuro, passando através da porta, era o impossível. Então, diante da certeza de aquilo não ser um sonho, eu pensei que o impossível estava no meu quarto àquela noite. Fiz força, fiz muita força e fiz mais força ainda. Meu corpo se moveu lentamente e os movimentos dele foram de acordo com minhas vontades. Maria, Maria, Maria – bestificado fiquei quando depois de 30 anos paralisado nessa cama, eu, sozinho, me levantei.
Veja bem, Maria. Estou me levantando na sua frente agora. Veja bem, Maria. Eu estou de pé. Veja bem, Maria. Eu estou andando. Veja bem, Maria. Você se lembra quando foi a última vez que eu havia andado? Fazia tempo, né? Dê-me sua mão e vamos juntos, agora, à casa de Dona Rosa. Veja bem, Maria. Eu nunca acreditei em milagres. Nunca. Mas, de agora em diante, jamais poderei negar a mim mesmo.
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
Veja bem, Maria. Aqui na rua de trás da minha rua mora uma benzedeira. Você até sabe, mas é preciso saber mais. Ela é cega de um olho e enxerga mal com o outro. O nome dela é Dona Rosa. Ela é surda de um ouvido e não escuta bem com o outro. A pele dela é negra. O cabelo é cinza. Dona Rosa deve ter uns 90 anos, mas ninguém sabe a idade dela não.
Veja bem, Maria. Todos os dias na casa de Dona Rosa algumas pessoas entram e algumas pessoas saem. Uns vão até lá andando e outros param seus carros de luxo em sua porta. Ela trata qualquer um do mesmo jeito. A perna esquerda não tem lá muita força. A direita também não é lá muito firme. Mas com uma bengala, de cabo de vassoura, Dona Rosa anda com seus passos curtos por aí.
Veja bem, Maria. A vida de Dona Rosa é ajudar os outros. E isso ela faz quando o sol esquenta. E isso ela faz quando a chuva esfria. E isso Dona Rosa faz desde criança. Dizem os mais velhos que ela benze as pessoas desde que tinha 11 anos de idade. Eu não duvido. Eu mesmo quando tinha uns 7 ou 8 anos fui benzido por Dona Rosa pela primeira vez. E agora já estou com 53 anos, o que dá credito para o que o povo diz.
Veja bem, Maria. Nesse bairro onde vivo não tem uma alma viva ou morta que não conheça Dona Rosa. Ela nunca quis casar. Falam que ela nunca nem namorou. Alguns dizem que ela é santa. Há também quem diga que ela é o próprio capeta. Dona Rosa conversa sozinha, diz que vê pessoas mortas do mesmo jeito que vê as vivas. Ela tem poucos dentes na boca. Ela tem umas unhas grandes. Ela cheira a perfume de rosas qualquer hora do dia.
Veja bem, Maria. Você bem sabe que sou muito observador. Não é por acaso que desde muito novo virei escritor. E sabe também que eu não sou de acreditar no que os outros falam. Sendo assim, mesmo vivendo perto de Dona Rosa eu nunca escrevi sobre ela, porque não tinha certeza se devia falar bem ou mal da velha. Eu não sabia e ainda não sei. Hoje abro uma exceção, mas já vou, em breve, lhe dizer o motivo.
Veja bem, Maria. Ontem à noite eu estava aqui em cima dessa cama e não sei precisar o horário. Talvez meia-noite. Talvez uma da manhã. Talvez duas da manhã. Não sei. Mas, de repente, uma pessoa entrou pela porta de meu quarto sem bater, sem fazer barulho e, digo pra você, sem nem abrir a porta. Eu, medroso que sempre fui, fiquei todo arrepiado, mais que assustado e, com o perdão da palavra: caguei, me caguei todo.
Veja bem, Maria. Eu fechei os olhos para me esconder do medo. Depois abri eles para limpar meu medo. Então, fechei eles de novo e gritei por Deus. Quando abri de novo os olhos a pessoa ainda estava ali. Só aí que reconheci aquele rosto sofrido e aquele corpo franzino. A pessoa era Dona Rosa que segurava uns pedaços de plantas nas mãos e falava, baixinho, palavras que eu não entendia.
Veja bem, Maria. Eu controlando meu medo perguntei o que Dona Rosa fazia ali. Mas a velha não me respondeu. Ela sorriu seu sorriso desdentado e continuou seu ritual. Depois de uns três minutos que eu, entre lágrimas e perguntas sem respostas, fiquei imóvel, pra variar, nessa mesma cama, Dona Rosa firmou-se em sua bengala e foi embora, a passos curtos, do mesmo modo que chegou.
Veja bem, Maria. Mais que nenhuma outra pessoa você sabe minha peleja com a vida. Eu que sempre fui um homem comum até meus 23 anos. Eu que procurei entender e aceitar tanta coisa, embora meu sofrimento nunca me deixou certezas. Dona Rosa partiu e eu, cheirando a merda, precisava de alguma forma me limpar. Eu que tantas vezes precisei de ajuda, fosse no clarão do dia ou fosse na escuridão da noite.
Veja bem, Maria. Dona Rosa em meu quarto caminhando no escuro, passando através da porta, era o impossível. Então, diante da certeza de aquilo não ser um sonho, eu pensei que o impossível estava no meu quarto àquela noite. Fiz força, fiz muita força e fiz mais força ainda. Meu corpo se moveu lentamente e os movimentos dele foram de acordo com minhas vontades. Maria, Maria, Maria – bestificado fiquei quando depois de 30 anos paralisado nessa cama, eu, sozinho, me levantei.
Veja bem, Maria. Estou me levantando na sua frente agora. Veja bem, Maria. Eu estou de pé. Veja bem, Maria. Eu estou andando. Veja bem, Maria. Você se lembra quando foi a última vez que eu havia andado? Fazia tempo, né? Dê-me sua mão e vamos juntos, agora, à casa de Dona Rosa. Veja bem, Maria. Eu nunca acreditei em milagres. Nunca. Mas, de agora em diante, jamais poderei negar a mim mesmo.
(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
terça-feira, 3 de março de 2009
O Poeta, a Musa e a Ilusão, por Evelyne Furtado
Evelyne Furtado (*)
O texto estava lá. Identificado o autor, começou a leitura com a ansiedade de sempre. Deslizou os olhos seduzidos pelas frases bem construídas e se buscou naquelas linhas. Todo leitor busca uma identificação na obra que lê e ela, à medida que admirava a beleza estética da prosa, sentia o texto escapar de si.
A expectadora aplaudia o espetáculo, a mulher lamentava o ato que se desenvolvia à sua frente. A alma apequenava-se e mostrava-se ciumenta. Acostumara-se a ser musa e gostava de se imaginar única. Era dada a fantasiar e ele estimulara seus devaneios.
Onde se escondiam seus traços no retrato impressionista? Persistiu na leitura, encontrou uma flor rebelde e o seu coração ganhou ânimo. O poema era seu. O poeta o escrevera para ela. E havia sinais de amor. Enfim, em meio à bruma, revelava-se uma imagem conhecida. A imagem de um amor bonito, penoso e resistente.
Entregou-se ao calor que acompanhava qualquer contato com ele, o seu poeta. O olhar do poeta acalmava e incendiava, conforme o momento. Sua boca emitia prazer em sons e em toques. Ela preservava cada centímetro de si para ele. Apegava-se aos delírios idílicos; para não enterrar o amor que a fazia vibrar. Porém, a alegria momentânea começou a perder terreno e a apreensão assaltou sua alma inquieta.
O poeta parecia se despedir. Confessava desconfiança; fechava a janela à paisagem tantas vezes idealizada; demolia o futuro. A leitora prendeu a respiração. Faltaram-lhe o ar e o chão. Faltou-lhe vida, ainda que por segundos. Mente e corpo envolviam-se num emaranhado de sensações: onde o sol antes aquecia, ora o gelo queimava, ardia.
Alimentara-se das promessas declamadas. Quisera dar vida ao poema e fora insistente nisso. Acreditara em qualquer aceno vindo do outro lado da janela e não era tarefa fácil enfrentar a dor, pois morava uma menina naquela mulher que lia o amor. A mulher impedia a menina de crescer, protegendo-a da vida real. A menina continuava a correr da rejeição; a mulher encontrara no poeta seu fiel guardião.
Agora em pânico, antevia a sombra de o desamor alcançar sua menina. Num ímpeto, a mulher fechou a janela. Fugiria. Não era hora da menina sofrer. Não poderia aceitar, necessitava do amor, precisava sonhar. Vestiu um jeans, subiu em um scarpin, pôs brilho nos lábios e acentuou o negro dos olhos. Disfarçaria a tristeza, enganaria o coração. Iria ao cinema; trocaria a matriz da ilusão.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
O texto estava lá. Identificado o autor, começou a leitura com a ansiedade de sempre. Deslizou os olhos seduzidos pelas frases bem construídas e se buscou naquelas linhas. Todo leitor busca uma identificação na obra que lê e ela, à medida que admirava a beleza estética da prosa, sentia o texto escapar de si.
A expectadora aplaudia o espetáculo, a mulher lamentava o ato que se desenvolvia à sua frente. A alma apequenava-se e mostrava-se ciumenta. Acostumara-se a ser musa e gostava de se imaginar única. Era dada a fantasiar e ele estimulara seus devaneios.
Onde se escondiam seus traços no retrato impressionista? Persistiu na leitura, encontrou uma flor rebelde e o seu coração ganhou ânimo. O poema era seu. O poeta o escrevera para ela. E havia sinais de amor. Enfim, em meio à bruma, revelava-se uma imagem conhecida. A imagem de um amor bonito, penoso e resistente.
Entregou-se ao calor que acompanhava qualquer contato com ele, o seu poeta. O olhar do poeta acalmava e incendiava, conforme o momento. Sua boca emitia prazer em sons e em toques. Ela preservava cada centímetro de si para ele. Apegava-se aos delírios idílicos; para não enterrar o amor que a fazia vibrar. Porém, a alegria momentânea começou a perder terreno e a apreensão assaltou sua alma inquieta.
O poeta parecia se despedir. Confessava desconfiança; fechava a janela à paisagem tantas vezes idealizada; demolia o futuro. A leitora prendeu a respiração. Faltaram-lhe o ar e o chão. Faltou-lhe vida, ainda que por segundos. Mente e corpo envolviam-se num emaranhado de sensações: onde o sol antes aquecia, ora o gelo queimava, ardia.
Alimentara-se das promessas declamadas. Quisera dar vida ao poema e fora insistente nisso. Acreditara em qualquer aceno vindo do outro lado da janela e não era tarefa fácil enfrentar a dor, pois morava uma menina naquela mulher que lia o amor. A mulher impedia a menina de crescer, protegendo-a da vida real. A menina continuava a correr da rejeição; a mulher encontrara no poeta seu fiel guardião.
Agora em pânico, antevia a sombra de o desamor alcançar sua menina. Num ímpeto, a mulher fechou a janela. Fugiria. Não era hora da menina sofrer. Não poderia aceitar, necessitava do amor, precisava sonhar. Vestiu um jeans, subiu em um scarpin, pôs brilho nos lábios e acentuou o negro dos olhos. Disfarçaria a tristeza, enganaria o coração. Iria ao cinema; trocaria a matriz da ilusão.
(*) Cronista e poetisa em Natal/RN
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