terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Eu pedi um amor, por Celamar Maione

Celamar Maione (*)



Nas noites solitárias,
Um dia, pedi um amor aos anjos
Um amor que ao mesmo tempo fosse homem
E também menino
Para podermos rir juntos de vez em quando.
Virar adolescente,
Corar o rosto,
Sentir vergonha
E rejuvenescer por fora e por dentro!
Eu pedi um amor aos anjos
Não precisa ser perfeito, perfeição não existe
Os seres que se dizem perfeitos são muito chatos,
Até mesmo monótonos.
E como eu não sou perfeita,
Não vou exigir perfeição do meu amor.
Eu pedi um amor aos anjos
Tranqüilo, sereno, inteligente
Sensível o suficiente para me entender,
Mesmo que muitas vezes eu não o entenda.
Mas entre um desentendimento e outro,
Nós seguiremos no doce sabor de um amor.
Eu pedi um amor aos anjos
Nada de água parada
As águas paradas não se renovam
E ele, assim como eu, também precisa se renovar,
Crescer, ficar sozinho para poder se conhecer melhor.
Eu pedi um amor aos anjos
Para poder acariciar,
Deixar sozinho quando precisar
E ajudar quando quisesse meu ombro amigo
Eu pedi um amor aos anjos
Que de vez em quando me fizesse sair do sério.
Me enlouquecesse de tesão
Só com seu toque carinhoso
Eu pedi um amor aos anjos
Que pudesse tirar de mim
Tudo o que tenho de bom
Os sonhos mais loucos
O sorriso mais puro
Eu pedi um amor aos anjos
Que não me deixasse constrangida ao pedir perdão
Assim eu ficaria mais á vontade para ser eu mesma
Em pleno flagrante de amor.
Eu pedi um amor aos anjos
Que explodisse de vez em quando,
Assim ele também saberia entender
Os meus momentos de explosão.
Eu pedi um amor aos anjos
Mas se ele não chegar antes da minha partida
Nesta louca estrada da vida
Faça ao menos, que pelo menos,
Eu cruze com ele no meu caminho,
Um instante que seja.
Eu juro meu anjo, vou saber reconhecer!! Mesmo que ele não me reconheça!!
E agradecer por ele existir!!

(*) Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Atualmente, é Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou, recentemente, Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Convivência com a dor, por Pedro J. Bondaczuk

Pedro J. Bondaczuk (*)



A dor é um mecanismo de alerta de que a natureza nos dotou para avisar que algo não está bem em nosso organismo. É, portanto, sintoma e não a própria doença. Além do que, muitas vezes, é subjetiva. Se uma pessoa, por exemplo, se queixa que alguma parte (ou várias) do seu corpo está doendo, não há como confirmar, ou desmentir. Ninguém pode afirmar, categoricamente, que esteja dizendo a verdade ou mentindo. Isso, mesmo que os mais acurados exames médicos comprovem que ela está absolutamente saudável, com “saúde para dar e vender”, como se diz amiúde.

A farmacologia desenvolveu vasta gama de medicamentos – alguns, com gravíssimos efeitos colaterais, daí ser tremenda imprudência, senão rematada e perigosíssima burrice, a auto-medicação, tão comum, mundo afora – para aplacar a dor. Os especialistas na matéria, porém, sabem, de sobejo, que não deve ser ela a ser combatida, mas o que a causa. Nem sempre, porém, isso é possível. Há doenças que ainda são incuráveis (pelo menos em estágios mais avançados). Nestes casos, é até questão humanitária o alívio, posto que momentâneo, do sofrimento.

Nem só os doentes, porém, têm que conviver freqüentemente com a dor. O oposto, ou seja, as pessoas com saúde invejável, que se destacam da maioria por seus privilegiados dotes físicos, com musculatura, ossatura e metabolismo perfeitos, também são forçadas a essa incômoda convivência. E como!

Refiro-me, especificamente, aos atletas e, mais particularmente, àqueles classificados como de “alto rendimento”, que superam recordes e mais recordes em pistas, quadras, campos e piscinas e conquistam títulos e mais títulos, inúmeras medalhas de ouro em suas respectivas modalidades (coletivas ou individuais, não importa) em competições de ponta como Olimpíadas e Campeonatos Mundiais. São os que ampliam os limites físicos do ser humano, pela força, resistência, velocidade e/ou impulsão que têm, muito além do que é tido como “normal”.

Estes têm sempre uma certeza: para chegar onde pretendem, vão conviver, pelo tempo em que durarem suas carreiras esportivas, com a dor. E não me refiro, apenas, às freqüentes lesões musculares, de articulação, ósseas, dos joelhos, das coxas, da virilha, da coluna etc. causadas ora pelo esforço repetitivo dos intermináveis treinamentos, ora por traumatismos de diversas causas, intensidades e naturezas.

A vida de um atleta de ponta nunca é fácil. Ademais, ele jamais tem a garantia de que seu empenho, sua autodisciplina, sua força de vontade e tantas outras virtudes que caracterizam campeões, serão suficientes para alcançar o tão almejado sucesso. Seus adversários são do mesmo nível, têm os mesmíssimos objetivos e as mesmas cargas de treinamentos e podem mostrar essas mesmas características em grau muito maior e, dessa forma, superá-los.

Em qualquer competição, seja de que natureza for, haverá, seguramente, um, e apenas um, vencedor. E este pode não ser você, caso seja o atleta de alto rendimento a que me refiro, a despeito de todo o sacrifício – não raro sobre-humano – a que se submeteu, das privações pelas quais teve que passar, dos investimentos, sacrifícios e, sobretudo, dores que teve que fazer e suportar.

Quando o “fracasso” sobrevém – e, no seu caso, é representado, não raro, pelo segundo lugar, pela honrosa e valiosa medalha de prata – lá vai ele para novos e mais duros ainda treinamentos. Toca a se submeter a rigorosíssimas dietas, a forçar os músculos muito além do que já forçou, a correr mais veloz, a saltar mais alto ou mais distante, a nadar mais rápido, a levantar maior peso etc. para superar seus limites que, a rigor, nunca sabe quais são. Toca repetir, repetir e repetir movimentos, cada vez com maior intensidade, tendo como resultado, com certeza, imensas dores. Mas, se quiser vencer, tem que, não somente as ignorar, como se acostumar a elas, suportá-las, se possível ignorá-las, numa perpétua, mesmo que (claro) incômoda, convivência.

O artista de alto rendimento – o que faz arte não por mero diletantismo, ocasionalmente, mas como missão de vida – tem realidade muito parecida com a dos atletas com potencial de campeões. Precisa, também, aprender a conviver com a dor (posto que não necessariamente a física e, portanto, mais difícil de ser suportada). A disciplina a que tem que se submeter é, guardadas as devidas proporções, tão rígida e constante quanto a do atleta. Aliás, maior até do que a dele, pois não terá a mera duração de uma carreira, como é o caso do esportista, mas dura a vida toda.

O artista de alto rendimento, por exemplo, não tem a prerrogativa de fugir de lembranças amargas e dolorosas, de sentimentos caóticos e contraditórios e de idéias polêmicas e, por isso, incômodas, quando não perigosas, como os “mortais comuns”. Longe disso. Compete-lhe, isso sim, fazer de tudo o que o judia, oprime, machuca e às vezes desnorteia, matéria-prima para a geração do oposto de tudo isso. Ou seja, de beleza, de poesia, de ternura, de otimismo e... de transcendência. Exagero meu? Longe disso! Quem é artista de alto rendimento sabe muito bem a que me refiro.

(*) Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Podactilos..., por Urânia Munzanzu

Urânia Munzanzu (*)



Coisa boa para uma fêmea é ter um homem que adora pés!

Encanta-me um amante, dos podactílos ... Gosto de ter com ele este segredo! Adoro o olhar desconcertante a fuzilar minhas sandálias novas caminhantes pela praça em pleno verão...

No fundo sei que ele observa o conteúdo das sandálias. Adoro a sensação dele olhar meus pés com o desejo de quem encontrou aquela última cerveja no congelador, depois de um dia de labuta....Gosto do encontro com os amigos, e meus pés no colo dele. E, enquanto algum desavisado acredita ser esta uma atitude despretensiosa da minha parte... Ele morre de vergonha do seu ponteiro em riste dentro da calça.

Ah! Eu visito o paraíso se ele beija meus pés! Gosto do gostar dele. Excita-me saber que meus pés no painel do carro, enquanto ele dirige, é proibido, para o bem do bom trânsito.

Mas, quando em casa, sua saliva vai molhar meus pés, e ele só vai parar quando eu chorar, de prazer! Adoro que ele escolha a cor do meu esmalte, só pra depois descobrir o sabor que há entre meus dedos...

Gosto de estar a sós com ele; é quando posso derramar, sem querer, a última taça, daquele vinho preferido e permitir, só de gentileza, que ele saboreie as últimas gotas no meu calcanhar... Gosto das massagens que começam por brincadeira, e acabam tirando de mim aqueles gemidos que os vizinhos não podem escutar...

Gosto quando ele nem nota as barbeiragens que faço, só porque dirijo descalça. Gosto muito, muito, muito, quando ele insiste em me agradar, e de agrado em agrado, na intimidade da cama, ele começa a me dar prazer, pelos pés!

(*) Jornalista e poeta

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Uma nova descoberta, por Luís Delcides R. Silva

Luís Delcides R. Silva (*)



Caminhada, expectativa, um pouco de ansiedade. No caminho para a terapia, estava mal, com dúvidas e minha cabeça a "mil". Ao chegar, pude falar, expor o que incomodava.

Saí, voltei a pé, reparando todos aqueles prédios lindos das Perdizes. Esse é um bairro que considero sedutor em São Paulo. Suas ruas, árvores, casas. Algumas mulheres lindas eu vejo passar por lá. Nossa, como amo esse lugar! Tive a experiência de dormir em uma residência de lá e sentir um cheiro maravilhoso, ao lado de uma ótima companhia.

Um sol maravilhoso batia na janela. Algo me significou naquele momento, estava ao lado de uma pessoa maravilhosa, companheira, amiga, solicita. Eu pude olhar bem e contemplar aquele momento tão especial na minha vida.

Logo, pensei, comecei a tocar e acariciar o corpo. Percebi alguns pontos sensíveis que comecei a descobrir, estava massageando, tocando, era um momento único. Mas, logo, veio algo que fiz questão de lembrar que tínhamos um compromisso como pessoas, como amigos. Logo, parei, imediatamente levantei, saí e fiquei quietinho na sala de estar.

Cinco dias depois, conversei com uma amiga e confidente. Refleti e pensei. Ao conversar na sexta-feira à noite com a companheira bela e maravilhosa, eu fiquei triste por ela dizer que está flertando com um cara que é 17 anos mais novo que ela. Estava mal, muito mal!

Conversamos, ela se desculpou e insistia na declaração: "Você é meu "amigo-irmão"! Mas como sou irmão se ela insiste em me provocar e me atiçar?

Durante a madrugada, pensei, refleti sobre a conversa que tive. Acordei, lavei o rosto e fui ajudar os pedreiros a arrumar o escritório. Ao ligar o computador, comecei a redigir um e-mail e questionar algumas coisas. Pude me abrir e colocar algumas vontades e desejos que tenho e foram reprimidos em nome de uma amizade.

A melhor resposta que aprendi nesse período que passo é: “acabe com o sofrimento do seu corpo”. É o meu desejo!

(*) Estudante de jornalismo, micro-empresário e escreve para o blog Casos Urbanos www.luisdelcidess.blogspot.com

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A culpa, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



- Bah! Essa pescaria veio na hora certa. Estava precisando dar uma espairecida. A mulher só me torrando a paciência em casa. Não agüentava mais...
- Capaz! Mas por quê?
- Não te contei?
- Não!
- Vou te contar a história então. Foi sábado passado. Eu estava sozinho em casa. A Cleuza tinha ido a um instituto de beleza. Olhava um jogo na Sky, Real Madrid contra... Contra... Não lembro o adversário. Enfim, um jogão! Foi quando escutei um barulho de algo cair ao chão e se despedaçar...
- Ué! O que era?
- Calma! Vou chegar lá. Aí eu escutei o tal barulho e corri na cozinha. Chegando lá, encontrei no chão, em caquinhos, um vaso da Cleuza. Ou ex-vaso, né? Herança de família, mas nada de valor. Sabe dessas coisas que mulher se agarra sem explicação?
- Sei!
- Pois é! Era a Cleuza e o tal vaso...
- Mas quebrou muito? Não dava para colar?
- Mas que jeito! O troço se despedaçou de uma maneira, mas de uma maneira, que eu iria passar um ano e não ia conseguir juntar as partes...
- Capaz?
- Arãn!
- Tá! Mas como ele caiu?
- Rapaz! Não é que foi a praga do cachorro. Um passarinho entrou na cozinha por uma janela que estava aberta e não conseguia sair. O cachorro enlouqueceu tentando pegar o bicho. Pulou pra cá, pulou pra lá e bateu na mesa de jantar, onde estava o tal do vaso, aí se deu o estrago...
- Aquele teu cachorro branco?
- Arãn!
- Tá! Só não entendi uma coisa ainda: por que a tua mulher está braba contigo se foi o cachorro?
- Calma! Vou chegar lá...
- Continua então!
- Bom! Como eu não tinha mais nada a fazer, apenas limpei os “restos mortais” do vaso do chão e esperei a Cleuza chegar...
- Que ficou uma fera?
- Mais que isso! Mais do que isso!
- E aí?
- Aí ela chegou, conversou um pouco, coisa e tal e foi na cozinha. Só ouvi um grito! E veio bufando de lá...
- E aí?
- Bah! Me encheu de perguntas: “como tinha quebrado?” “Quem tinha quebrado?” E coisa e tal...
- E tu?
- Eu assumi o estrago! Disse que tinha batido na mesa, tentando tirar o tal passarinho... Contei uma estória.
- Ué! Mas tu estás ficando louco, homem? Por que tu fizeste isto? Por que assumiste a culpa?
- Pois é, meu amigo... Talvez movido pelo remorso! Ou melhor... Eu penso que fiz uma retribuição a um amigo! Essa é a definição certa. O que é um vasinho? Outro dia mesmo, eu rasguei uma almofada da Cleuza com as unhas dos pés... E... E o cachorro assumiu a culpa...

(*) Jornalista e cronista

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Notícias do coração, por Fábio de Lima

Fábio de Lima (*)



Sentei no sofá, de frente para a TV. Ela estava desligada. Fiquei olhando para aquela tela escura por quase quinze minutos. Na verdade, fiquei parado diante da TV, desligada, por quase duas horas, mas sinto até vergonha em dizer isso. Parecia coisa de louco. Mas não era. Aquilo era amor. Eu amava Marina e saber do casamento dela foi um choque para mim. Eu sabia que ela casaria um dia. Eu sabia que não seria comigo. Mas entre imaginar e deparar com a realidade existia uma distância grande.

Levantei do sofá e senti o rosto grudento das lágrimas que escorreram e secaram. Subi para o quarto e deitei na cama. Olhei para o teto até adormecer. Só acordei no outro dia, às 8h00 da manhã. Meu corpo estava dolorido. Até parecia que eu havia levado uma surra. Pensei em Marina, assim que levantei, e também durante todo o restante do dia, enquanto pisava sobre meus calcanhares pelas ruas paulistanas.

Voltei para casa somente à noite e sentei novamente na frente da TV. Mais uma ou duas horas olhando aquela tela escura. Não sei. Acordei no outro dia e percebi que havia dormido no sofá mesmo. Tomei um banho em silêncio, me troquei e fui embora para mais um dia de devaneios. O sol já ardia a pele quando sai de casa. Senti o suor escorrer tímido pela testa. Senti a dor andando comigo lado a lado.

Foi assim que envelheci um ano em um mês. Foi assim que envelheci seis anos em seis meses. Foi assim que envelheci doze anos em um ano. Os amigos falavam que eu estava magro demais, chato demais, melancólico demais. Eu não sei como estava – só sei que sentia a falta de Marina e isso doía muito. O tempo passou e eu vivi minha vida. O calendário nasceu e morreu por mais de vinte invernos. Na semana passada o telefone tocou e uma voz conhecida falou comigo.

Marina se separou faz oito meses. Ela ligou para saber como eu estava. Disse que estava com saudades de conversar comigo. Disse que tem visto meus livros nas livrarias de todo o País e nas mãos das pessoas. Falou ter gostado muito do meu último livro. Disse que minha literatura amadureceu e que depois que se começa a ler um livro meu, só se pára na última página. Sorri ao telefone e fingi acreditar em tudo que ela me disse.

No último final de semana eu sentei no sofá e liguei a TV. Lá estava passando um desenho do Tom & Jerry. Fiquei dez minutos dando risadas e me sentindo muito feliz por fazer coisas tão simples e sentir prazer com elas. Tenho pensando muito sobre as coisas do coração e espero que Marina encontre o seu caminho. O meu sei que não é ao seu lado e sigo bem sozinho, mesmo que meu coração ainda teime em saber notícias.

(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

domingo, 16 de novembro de 2008

Guerreiro da luz, por Eduardo Oliveira Freire

Eduardo Oliveira Freire (*)



– Filho, você está em pecado, irei, salvá-lo.

Essa garota não presta, é uma perdida. Filho, escuta a palavra. Vou resgatá-lo. Você só se envolve com as pessoas erradas, é um fraco. Só eu que posso ajudá-lo. Não saia hoje. Vamos ficar juntos e ouvir a palavra.

Tem idéias esquisitas; precisa de luz. Ouve-me, espera. Não vire as costas pra mim. Não vá se encontrar com aquela pervertida. Não ABRA A PORTA...

Seu rosto está roxo: acorda! Vejo as marcas de dedos no seu pescoço... Não fui eu, foi o dito cujo!

Abra os olhos, o papai tá aqui. Alguém, me ajude! Ouço sirenes... preciso sair daqui.

(*) Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Auto-retrato, por Talis Andrade

Talis Andrade (*)



Pele clara
cabelos revoltos
sardas no rosto
nariz grande
para cheirar
as mulheres
nariz grande
para farejar
as mudanças
os perigos
a visão aguçada
para avistar
os inimigos
no embrenhado
das tocaias
o ouvido absoluto
para escutar
as difamações
ditas
pelas costas
a boca grande
para o festim
as santidades de comer
Chapeuzinho
Vermelho
- eis o retrato
três por quatro
da carteira
de identidade
o retrato oficial
que mostra
o rosto convencional
que a polícia
conhece
o rosto
que nada esclarece
sobre o coração
que não aparece

(Do livro “Cavalos da Miragem”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

(*) Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do Diário da Noite,“Jornal do Comércio (Recife), Jornal da Semana (Recife) e A República (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

E ela despediu-se de si, por Renata Alves

Renata Alves (*)



A dor era indescritível, como se um punhal houvesse sido cravado em seu peito. Sentia-se esvaziar, paulatinamente, como se aquela sensação nunca fosse acabar – talvez uma tática para nunca ser esquecida.

Olhou-se no espelho e não mais se reconheceu. De repente, viu a mulher forte que levou anos para construir, cruzar a porta sem olhar para trás.

Sentiu-se ninguém, sentiu-se alguém, sentiu muito, sentiu-se nada. E pensava...

Aquela que um dia disse nunca se resignar e abrir mão de seu ponto de vista, fechar os olhos ou silenciar-se para agradar a outrem. E pensava.

Dizem que algumas mulheres fazem coisas verdadeiramente insensatas por amor e dizem também que aquelas que não o fazem é porque nunca amaram. Duvidar? Acreditar? Ela simplesmente não sabia. Naquele momento apenas uma certeza: por ora basta.

Movida pela sua paixão deixou-se levar e permitiu-se, melhor, obrigou-se a abrir mão de algumas de suas convicções.

Valeria a pena? Não sabia, apenas pensava: por ora basta.

E a dor cresceu, cortou, rasgou, feriu. As lágrimas rolaram e ela chorou. Disse adeus? Não. A mulher, na verdade, não se foi, apenas se ausentou para melhor ser notada.

Palavras sem sentido de uma mente desconexa. Apenas uma visão pragmática dos fragmentos da vida.

(*) Jornalista

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Saudade de ti, meu pequeno, por Eduardo Murta

Eduardo Murta (*)



Amor de perdição paterna se vira pouco como aquele. Patrício convertido em mestre de cerimônias da pequena Tita. Se derretendo sem medidas a seus pés, adoçando-lhe desejos incondicionalmente. A caçula em laços de fita, se incumbia ele mesmo de bordar-lhe pintas ao rostinho barroco. Na curta história dos 9 anos, só não fora ainda apresentada a duendes. Tudo o mais lhe chegara ao patrimônio afetivo. Fosse em datas festivas, ou numa segunda-feira furtiva, o pai cuidava de surpreender-lhe.

A fizera crescer, assim, sob o signo do sonho: vê aquela estrela, a mais brilhante, ao centro? Vou trazer-lhe. Sente o vento pondo árvores em reverência absoluta? Farei com que se curve por você. Percebe o alfabeto desconexo, sem sentido? Zelarei a que forme palavras encantadoras, rimas e significados por ti.

Tita sorria, por ingênua. E haveria de sorrir, diante do campo de girassóis alinhados a sua homenagem. O amarelo celebrando a vida, desenhando seu nome às curvas do vale. Dos almoços sob a copa das gameleiras, reunindo o que mais lhe encantava: farofa de andu, carne de sereno, arroz carreteiro. Suspirava já de perceber a movimentação à cozinha, a lenha crepitando ao fogão de avó.

Ela se acostumara àquela cota de exageros caprichosos. A própria comunidade também se habituara. Mas dessa vez, Patrício passara dos limites. Daí o cerco à caminhonete tão logo ele estacionou na praça. Risonho. A gatinha amaria o presente de aniversário, estava seguro. Ainda que perdesse o ar de surpresa, porque a notícia se espalhou pronto se revelara. Inusual. Um pingüim em pleno coração do sertão.

Ia desfazendo as amarras da carroceria, e vislumbrou a menininha ao longe, fazendo poeira na descida do morro. Cachos namorando o vento. Vinha com feição risonha, infantil contentamento. Saltou diretamente dos braços do pai, roupa e tudo, para o container de gelo que abrigava o bichinho. Menor que ela. Foi se aproximando e o enlaçou em abraço que imitava reencontro de velhos amigos – longo, intenso, de entrega e acolhimento.

Era ele, creiam, postado à mesa exatamente ao lado do bolo de parabéns. Quase se esvaindo em calor. Ganhara o nome de Floquinho. Mais tarde, as posições se invertiam: a menina se espremendo entre os blocos gelados e um pingüim que começava a estranhar um ambiente a que não pertencia.

Vá lá que adorasse os mergulhos de cisterna, mas a presença no banco de escola do vilarejo ou os passeios pelo quintal sombreado, atado a uma coleirinha de cachorro, lhe faziam mal. Não demorou a que caísse em prostração. Estado febril, trêmulo, enfraquecido. Pai Patrício suspendeu as saídas da casinha congelada, tornou mais generosas as porções de peixe, e deu a se perguntar se agira bem em trazê-lo.

Deduziu que não. E se punha agora em dilema original. Tita pegara amor à criatura... Como dela se desfazer sem traço de mágoa? Matutou noite adentro e, pela manhã, a chamou. Disse que era conversa madura. Os olhinhos então marejaram, porque já sabia do desfecho. Pediu uma só coisa. Que fosse junto na despedida. Seguiram assim, pai, filha e Floquinho, atravessando o país rumo ao Sul continental. Cinco dias, cinco noites de estrada.O silêncio pesando feito um fardo.

São eles diante dos icebergs colossais. A imensidão da Patagônia desafiando, ela deixou sua sombra projetar-se à de Floquinho. Sugeria comunhão. Mergulhou os pés naquelas águas geladas, abotoou-lhe a correntinha em torno do pescoço. Levava sua foto. E ele mansamente partiu, até desaparecer à linha dos olhos. Compreendia, porque eram mesmo de reinos distintos. Inda assim, chora. Hoje aplaca lembranças chupando pedrinhas de gelo. Vendo tudo escorrer-lhe por entre os dedos, banhar-lhe o corpo. Degustando saudade intangível.

(*) Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Pesadelos de Luiza, por Letícia Nascimento

Letícia Nascimento (*)



Após assaltar sem culpa a geladeira começou a arrumar tudo para o tão desejado descanso. Dentes escovados, cabelo penteado, abajur ligado, despertador ajustado e celular ao lado. O cansaço daquela sexta-feira era tamanho que adormeceu antes de rezar. Dormiria aquela noite ao som da chuva e dos trovões.

O barulho do ventilador começou a incomodar o sono de Luiza, que ergueu o braço esquerdo até alcançar a tomada, o silêncio trouxe sossego. Ouviam-se os pingos de chuva batendo na janela, os relâmpagos a assustavam. Mais uma vez sentiu-se incomodada, levantou e fechou a cortina, afinal era grandinha pra se esconder embaixo da cama ou dentro do armário. Adormeceu mais uma vez.

Algo dizia que a noite não iria ser tranqüila e que os famosos pesadelos a perseguiriam.

Eis que o monstro apareceu. De olhos esbugalhados, coaxando, em tamanho gigante e verde. Luiza acordou assustada. “Sempre ele! Por que ele?”, indagou-se. Aquele bendito sapo ainda insistia em fazer parte dos seus pesadelos desde a infância. Irritada por ter reencontrado o bicho, virou-se para o outro lado, fechou os olhos e caiu no sono mais uma vez.

A chuva continuava. Os trovões também. Desta vez o latido ardido da cadela frescurenta da vizinha atrapalhava o sono tão almejado da menina. Levantou-se mais uma vez, pegou o mp3. Assim pelo menos dormiria ouvindo música e o latido não a perturbaria mais. Triste ilusão: a pilha estava descarregada.

Já eram três da manhã e Luiza não conseguia dormir com tantos incômodos. Decidiu ligar a TV, encostou-se a uma almofada e ao zapear com o controle remoto percebeu que o receptor estava sem sinal por causa da chuva. Injuriada, voltou para o seu quarto.

A cadela da vizinha já não latia mais. O cansaço tomou conta do seu corpo e adormeceu novamente. Minutos depois o celular tocou. Preocupada e ainda sonolenta nem reparou em quem estaria do outro lado da linha. Era Lazinha, a amiga mais inconveniente que poderia existir no planeta. Ligou para contar que viu o ex de Luiza na festa do Rafa. Segundo a fofoqueira, Robertinho estava triste, com os olhos inchados e magro devido ao término do namoro. Sem querer, e querendo, ainda falou que a menina era a causadora da depressão do rapaz, já que não atendia mais suas ligações. Irritada, Luiza desligou o telefone sabendo que aquilo era uma farsa, suas mentiras e trapaças já a tinham magoado demais.

Mesmo assim, agora era a imagem de Robertinho triste, com os olhos inchados e magro que não deixava a menina dormir. “Ele está sofrendo por causa de mim”, pensava ela a todo instante, “mas isso deve ser mentira, ele não vale nada”. Em meio às suas dúvidas amorosas e inseguranças, fechou os olhos com o propósito de dormir. Já eram quinze pras cinco da manhã.

Como mágica o sapo não apareceu. Mas cedeu espaço para que Robertinho ocupasse a cena. Luiza viu o menino se atirando do mais movimentado viaduto da cidade. Correu para casa aos prantos e ao chegar uma multidão de pessoas queridas a culpavam pela morte do garoto. Via o falecido esticado no caixão posto no meio da rua. Com raiva por causa das mentiras, ao mesmo tempo sentia-se culpada. Mas, falecido? Acordou chorando.

Angustiada, levantou-se e correu para o quarto dos pais como fazia quando era pequena. Acordaram preocupados com o choro da menina. O pai prontamente foi até a cozinha preparar água com açúcar. A mãe sem saber o que acontecia fez a pergunta de sempre: “você rezou antes de se deitar minha filha?”.

Anjinho da guarda, meu bom guardador guardai minha alma pro nosso Senhor. Com Deus me deito com Deus me levanto na graça de Deus e do Espírito Santo. Rezaram juntas, como nos velhos tempos. Nem Robertinho, nem o sapo ou barulho algum voltaram a atrapalhar o sono de Luiza naquela noite, ou melhor, já na manhã de sábado.

(*) Estudante do 4º ano de Jornalismo das Faculdades Integradas Teresa D’Ávilla (FATEA), Lorena-SP.

domingo, 26 de outubro de 2008

Nuvens na escuridão, por Juarez José Viaro

Juarez José Viaro (*)



4:15. Acorda e olha os números vermelhos do rádio-relógio, brilhando na escuridão do quarto. “Cedo demais”, pensa. Vira-se para o outro lado onde não veja aqueles números incandescentes de sua insônia. O corpo parece pesar, preso a uma corrente no pé da cama. Lembra-se da orientação de alguém de não se dormir sobre o lado esquerdo do coração. Revira-se. Pensa em algo para voltar a dormir. Lembra-se do mantra quando fazia meditação. Mas não podia dormir ao repetir aquelas palavras desconhecidas, talvez em sânscrito. E sim atingir o ponto alfa. Precisava pensar noutra estratégia. Talvez contar de trás pra frente. 10, 9, 8... Melhor esquecer. Quem sabe contar carneirinhos? Mas nunca havia contado carneiros quando criança, só tinha visto isso em contos infantis traduzidos.
4:22. Os números pareciam saltar aos olhos sonolentos. Quem teria inventado esses traços como bisnagas de pão que formavam todos os números? Lembrou-se do enorme relógio digital na Avenida Paulista. O farol moderno dos transeuntes, as horas de trabalho contadas minuto a minuto. Precisava relaxar. Repetir as três palavras mágicas: relaxar, descansar, dormir. Relaxar, descansar, dormir. A cabeça, porém, girava a mil, a hora em que todos os problemas do dia seguinte pareciam insolúveis. Lembrou-se do conselho do analista: “se não consegue dormir, aproveite o tempo para fazer algo útil”. Levantava-se então, ia para o computador, entrava na Internet e ficava até a hora de acordar. Talvez tenha sido essa a razão do fim do casamento. Ou uma delas.
4.33. Se pelo menos tivesse alguém ao lado para fazer sexo. Mas estava só. Só com sua insônia. Uma palavra dentro da outra, espelho refletindo espelho. Como no slogan: I like Ike. Uma coisa dentro da outra. Como na infância, ao lado da mãe que fazia um bolo e vendo a latinha de fermento em pó. A embalagem com o desenho de outra lata de fermento, com a embalagem de outra latinha, até o infinito. Uma lata dentro de outra. Como as latas de mantimento guardadas no armário, uma menor que a outra, uma dentro da outra. Precisava dormir. Girou para o outro lado de novo, o corpo pesava, com os grilhões nos pés, os rangidos da cama. O vizinho do apartamento de cima, que escutava ranger a cama e gemer, talvez fazendo sexo com a esposa. O abrir e fechar de janela do quarto de outro vizinho, talvez solidário na insônia.
Levantou-se e foi ao banheiro. Lembrou-se de Duchamp e seu urinol. A arte ironizando a vida. Ouvia também o ruído do vizinho de cima ao mijar, ao apertar a descarga, ao ligar o chuveiro, a vida em apartamentos, sem intimidade. Aproveitou para fechar a porta, para não ver o dia nascer, refletido na parede do corredor. Voltou a deitar-se, girou o rádio-relógio para não ver aqueles números angustiantes e vermelhos. Todos os problemas a resolver no dia que já teimava em começar cedo. Tomar o banho, vestir-se, tomar o café, pegar o carro e enfrentar aqueles cúmplices sonolentos no trânsito. Chegar ao trabalho, deparar-se com os mesmos rostos conhecidos, mas nada familiares. Bom-dia com cheiro de café tomado às pressas. Cheiro de produtos de limpeza no escritório. As mesmas coisas nos mesmos lugares.
As horas, as horas. Que fazer com as horas que passam e não deixam dormir. Com os números vermelhos que alertam que o dia está chegando e é preciso levantar-se da cama. A cama e o banheiro, o trajeto de sua insônia. Tentou não pensar em nada, apenas fechar os olhos e “ver” aqueles fios luminosos da retina boiando no escuro. Tentar não pensar, suprema conquista dos iogues. Não pensar, deixar as imagens fluírem, sem pensar. Em vão. O dia já teimava em nascer, via a luz penetrando já pelas frestas da esquadria de alumínio da janela. Ouvia pássaros, quais seriam? Talvez o mesmo bando de maritacas que passavam com seu ruído estridente, vindos do Parque do Ibirapuera, ou fugindo de algum ruído de trânsito.
5:11. Aos poucos já podia ouvir barulhos de carros. O vizinho que madrugava, retirando o carro da vaga da garagem. Sempre no mesmo horário. Algumas derrapagens de carros apressados, talvez voltando de noitadas. Ainda podia dormir mais, teria que repor as energias gastas no dia anterior. Calculava as horas que ainda restavam para adormecer. Lembrou-se da terapia. O analista associando a hora de chegada do pai de madrugada, quando era criança, com o horário que batia a insônia, de adulto. O pai chegando de madrugada, com seu cheiro de cigarro infestando o quarto comum. A psicanálise como um tipo de literatura.
Virou-se pela enésima vez. O corpo cansado, o lençol amarrotado, o travesseiro virado mais uma vez. O som dos pardais, talvez milhares deles. Lembrou-se da definição ouvida ou lida. Os pardais, trazidos pelos portugueses, pássaros inúteis, sem plumagem bela, sem canto harmonioso, apenas cagando e matando outros pássaros que invadiam seu território.
Quem teria dito isso? Precisava ser mais esquemático, anotar coisas importantes, citações, para ocasiões sociais, sempre havia utilidade quando faltava assunto. Dizer uma máxima, um pensamento de alguém famoso era útil para começar assunto, mostrar conhecimento, superioridades. Balela, precisava aprender a dormir. Resolveu tentar mais uma vez, os números vermelhos se aproximando do limite de tempo permitido. Concentrou-se, deixou fluir os pensamentos, relaxou. Uma nuvem de sonolência parecia passar por aquela noite escura. Nuvens na escuridão. Adormeceu.
6:00. O despertador despertou, determinando o fim da noite.

(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Gozo Astral, por Fernanda de Aragão

Fernanda de Aragão (*)



Tá, vocês venceram, eu me rendo! Rendo-me ao meu sol em libra e ao meu ascendente em capricórnio, mas só porque eu quero ver estrelas; meses sem gozar. Até pela lua que está em peixes, seja lá o que isso signifique, eu me rendo!

Rendo-me à possibilidade de cruzar os meus três signos com os três signos dele; é que com nove combinatórias para brincar de dar certo eu finalmente poderei tirar as rendas da gaveta. Vermelhas, pretas, marciânicas, netúnicas. E com marte em libra, vênus em libra, a vida na balança, eu me rendo para livrar-me de todo cio sem ópio, amém.

Já peguei as taças para um brinde à minha casa sete, em que plutão-ão-ão-ão está passando, entrando, gritando. E eu, no sussurro: vem, vem, vem logo, vem plutando, qualquer coisa que isso valha. Mercúrio em virgem. Ahm. Netuno em sagitário. Ahm. Júpter em gêmeos. Ahm. Onde será que se goza num mapa como estes? Não sei, não sei, não sei. Em troca, profecias.

Você tem talento para descobrir irregularidades. Hum, e isso serve para? Tem novas idéias para a educação. Hum, e isso me adianta de? Você é crítica. Tá! Qual mulher que já passou dos trinta não o é? Oradora convincente. Aham, dá pra chegar logo ao que interessa? Gosta de detalhes, literatura, pesquisa científica. Hum, hum, hum. Gosto de blá blá blá também, não tá escrito aí não? Cadê? Cadê? Cadê?

Mente aberta e criativa. Rá! Nem conto o quanto, paga pra ver, paga (pega, gira, alucina). Originalidade, vivacidade, alegria. Óquei, tudo isso eu entendi e já sei de cor: monótona, jamais. Temperamental, às vezes, porque ninguém é perfeito; mas generosa, amável, cooperativa. Opa! Então é isso, eu sou mais santa do que puta. Como gozam as putas? Bruna Surfistinha, com aquele relato "então ele me virou de quatro e me fodeu e ponto final", me parece nonsense. E as santas, como fazem? Queria ser homem pra descobrir a diferença. Algum se habilita a me contar? Para Aldir Blanc, entre a santa e a meretriz só muda a forma com que as duas se arreganham. Muda?

Com muitos talentos, a pintura, a música, a escultura são adequadas ao seu dia-a-dia. Tá. Tá. Tá. Tá. Cansei, cansei, cansei da mulher de libra. Vamos à de dragão, ascendente em serpente. Sabe-se lá, mas eu me rendo! É que a esta altura os cinco signos dele mais os meus já somam vinte e cinco chances para uma noite dos deuses: Júpter em Vênus, Netuno em Vênus, Mercúrio em Vênus, Marte em Vênus. Tudo em boa combinação: a parte de cima com a de baixo, queijo com goiabada, o que tá vazio e o que preenche. E lá na gaveta – esperando, esperando, esperando –, anágua sem corpo, espartilho sem pele, cinta-liga sem volume, meia sem arrastão, salto sem agulha.

Bah! Quem é que dá as cartas, afinal? E, pelamordedeus, que nelas não me apareça nenhuma Minerva no meio do caminho. Embaralha direito, corta certo, pega minha energia de jeito ou eu vou para as últimas instâncias jogar búzios, lançar pê-pê-ô com turbante na cabeça, fazer reza forte, mandinga, costurar boca de sapo com o nome dele, com o nome dela. E... voilá, com arcanos menores e maiores, todos em meu favor, fica fácil gozar com o valete de espadas no quarto lunar. Na torre não porque é rompimento na certa, diz o tarô.

Então, que suba o rei de paus. Truco! Com o imperador? Oba! Mão de onze para a dama de copas. Que belo zap pra cima da manilha, hein? Chama de novo, que eu topo! Melhor de três e não se fala mais nisso. Mas você prefere os números. Por mim tudo bem, a gente combina lá também, ao quadrado, ao infinito, na potência que for: forte, fraco, meio a meio, de lado como na geometria ou medindo a raiz quadrada, tomando o volume, vendo o diâmetro, calculando o raio. Ângulo de cá, ângulo de lá. Até na medição do vácuo. E você vai poder tirar a prova dos nove, se quiser. Dos dez, dos doze, dos quinze. No final vai restar um eu e um você. É sempre assim: um mais um mais um mais um mais um mais tantas vezes quantas forem precisas. Para o número que for sempre seremos dois inteiros, o que é bem melhor do que duas metades.

Se somarmos o valor das letras dos nomes: dois inteiros, o meu e o seu.

Se somarmos os dias do nascimento: dois inteiros, o meu e o seu.

Lindo isso de numerologia, de contar só a primeira parte do nome, ou só o apelido, ou o nome todo, ou começo e o fim. E com um tanto de meios, jeitos, tipos, formas, contas, preâmbulos, runas, i-chings, koans, mos, quiromancias, conchas, mandalas, cabalas, anjos, gnomos e o diabo a quatro, haverá o dia, a hora, o minuto e o segundo em que, cosmicamente, cruzaremos como cometas lancinantes. Rojões opiáceos explodindo tanto na terra quanto no céu. E nessa hora, buraco negro de cá, ou de lá, tanto faz. Olha que até realejo tem, se você estiver afim, mas quando se trata de gozo astral, que tal o Kama Sutra?

(*) Jornalista

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Tormenta, por Solange Sólon Borges

Solange Sólon Borges (*)



Ninguém crê que tudo se incendeia habilmente, depois de sermos batidos pelo temporal. Há a necessária compensação de forças entre os amores – luxúria, urgências, cobiça e fé – corpos desnudos com seus desejos encarcerados para que as muralhas cedam, afinal.

E eles querem partir, eles querem partir dos corpos celestes mas não podem: há o homem e há a fera.

Chegam os ferreiros batendo estacas sobre o peito: miasmas inundam os dias. O coração se reveste em pátina. O amor é premente e peço as sementes: eles comem os figos. Encontro vestígios de magma em minha pele bárbara.

São os pormenores da tormenta: sua face se dissolve na lembrança e peço uma foto como se pedisse qualquer rosto ou mesmo a alma. A ausência ressuscita Pã em meio ao pânico.

Mostrou-me o tango de suas pernas bailando entre as minhas no momento da submersão.

Tenho cios crônicos. Ata-me onde encontrar a fera e imagine a minha total fragilidade em seu retorno.

(*) Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Notas particulares, por Notas particulares, por Eduardo Oliveira Freire

Eduardo Oliveira Freire (*)



Gosto de ouvir o som dissonante da cidade. O costume é que me faz até apreciar a buzina alta de um carro. Os ensinamentos do professor ecoam na cabeça. Hoje, ele diferenciou a exoneração da demissão do cargo público. Estou preocupado com o edital do concurso que ainda não saiu.

O sol desta manhã me aqueceu e almocei muito bem. Não sei em quem vou votar e me dá ódio das musiquinhas das propagandas, que passam nas alturas. Uma colega me disse que não vai votar e depois pagará uma multa de três reais. Realmente, isso é tentador...

Na TV a cabo está passando um novo canal, só de desenhos animados japoneses. Não sou um conhecedor profundo, porém me atraem os olhos grandes das personagens, que mostram diversas emoções. No rosto só há um traço de nariz, salvo mínimas rugas quando as personagens são idosas.

Parei de ver novelas. Leio um pouco e navego na Internet. Tenho segredos que não prejudicam ninguém. Quem não os têm? Eu gostaria de não sentir mais a necessidade de ser bom em alguma coisa e receber elogios. Não gosto muito deste meu lado exibido.

Quero ser ação e parar de me preocupar com opiniões alheias. Lógico que as críticas construtivas são bastante relevantes. Fiz um comentário no blog de uma pessoa amiga e ela me questionou a razão de sempre fazer elogios, deixando de articular comentários críticos. Respondi: “É que sempre gostei do estilo como escreve. Faz pensar. Agora, dar palpite no estilo, sinceramente, estou muito verde para dizer algo, cometer gafes e dizer algo sem fundamentos”.

É a pura verdade. Mesmo que eu sinta a mesma coisa, ao ouvir um comentário artificial. Ela sempre me ajuda e dá boas dicas. Não quero passar por uma pessoa artificial. Todavia, o que as pessoas pensam da gente independe de nós. O jeito é relaxar e jogar para fora as neuroses...

(*) Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Mecanizada, por Samuel C. da Costa

Samuel C. da Costa (*)



Toda a poesia será castigada?
Pergunte ao suicida.
Oh cidade claustrofóbica!

Por que?
Mil vezes por que
me deixaste sozinho
para morrer?

Oh palavras que se repetem
e se repetem
e se repetem,
sonho mecanizado
do mundo diluído
nas telas das tevês!

Cidade cinzenta,
vazia,
concreto armado,
mente vazia...

Frasco de remédio vazio,
sonho mecanizado
em mecanografia
a tabular os dados
de mais um suicídio...

Mais um suicídio
na Central do Brasil,
Babilônia de todos pecados!

Centro do poder,
Capital do Brasil.
Toda a arte será castigada?
São santos a chorar,
Pois toda a arte será castigada!

Sonho mecanizado,
cinza,
como só eu sei ser!

(*) Cronista e poeta em Itajaí/SC

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Reprise, por Eduardo Oliveira Freire

Eduardo Oliveira Freire (*)



Prefiro o revelado ao escondido. Escuto as notícias de corrupções e que pessoas que eram consideradas intocáveis estão sendo investigadas e que, caso existam provas contundentes, deverão ser punidas. O processo democrático se consolida. Depois de tantos anos de ditadura, a Democracia é uma adolescente de dezenove anos que amadurece aos poucos.

Digo isso porque, depois de muitos anos de ditadura, as eleições de 1989 marcaram o processo de redemocratização do país, sendo a primeira eleição direta à Presidência da república. A Imprensa, mesmo sendo parcial ou imparcial, divulga informação. Pelo menos o cidadão tem livre-arbítrio e pode acreditar ou não nas reportagens.

Nos “Anos de Chumbo” não se podia dizer nada. Jornalistas eram censurados e os que protestavam, eram caçados. Quantas imoralidades aconteciam e não havia como provar, porque as CPIS nem sonhavam em existir! Hoje, mesmo com jogos de interesses e idéias nebulosas, pelo menos algo está sendo feito e os cidadãos ficam a par (mesmo existindo controvérsias a esse respeito) da situação do país.

O mundo perfeito não existe, está no plano das idéias. A História provou que tanto as ditaduras capitalistas, quanto as socialistas mataram inocentes e quem ousava criticar o regime vigente, no qual era obrigado a viver. Um vereador, até, foi assassinado, por elaborar uma lei contra o nepotismo.

Isso é uma vergonha nacional, concordo. Porém, emergiram as grandes mazelas da corrupção, os cabides de emprego, que por gerações assolaram o País; consumindo a saúde e a alegria da população desde que o Brasil era colônia e nos tempos em que morto até votava na era da “República dos Coronéis”.

Não estou querendo dizer que hoje em dia é um mar de rosas. Pelo contrário, nós, como cidadãos, precisamos escolher melhor os políticos, cobrar moralização em todos os níveis de governo, para que não haja tanto dinheiro desviado e que realmente melhore a moradia, a educação a saúde de todos. E também que os direitos dos brasileiros sejam respeitados.

Não posso me esquecer do trabalho do Ministério Público, em que os promotores de justiça ajudam, ao máximo, à sociedade, punindo quem a lesa. Afirmo que não acredito num mundo ideal, por isso prefiro viver nessa época (mesmo com graves problemas) do que em outras, em que quando acontecia algum crime, tudo era abafado e ninguém tomava consciência.

(*) Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Ladrões de vida, por Cecília França

Cecília França (*)



Passara mais de sessenta e cinco anos ao lado dele numa vida que considerava vitoriosa, emocional e materialmente. No entanto, a imprevisibilidade a surpreendia agora. Aqueles dois corpos estendidos na estrada de chão punham fim à sua certeza de morte tranqüila, tão esperada, quem sabe durante o sono. Naquela idade, imaginava, nada mais de trágico poderia acontecer a ela ou ao marido.

Octogenários, já haviam superado as armadilhas da juventude e as rixas que inevitavelmente permeiam a vida e desencadeiam desafetos que podem promover tragédias. Até então, estava certa de que restava a eles dormir todas as noites na expectativa de não mais despertar. Esse era o esperado, o correto. Mas dois tiros acabavam de roubar-lhe esse sonho tão bem-moldado. Dois balaços fatais levavam-lhe não apenas o companheiro fiel como também o fruto único daquela união.

Ambos jaziam de bruços, inertes, já com os membros rígidos. Haviam deixado a casa da cidade na manhã anterior rumo ao sítio da família e, daquela vez, não retornaram às sete da noite ansiando pelo jantar. Os corpos só foram encontrados na manhã seguinte. Latrocínio, diziam os policiais. Incompreensível para ela. Bastava o que via: dois corpos sendo lacrados, cobertos por uma mistura de sangue coagulado e terra.

O rosto de seu querido companheiro, por sorte, em nada fora deformado pelo tiro. Parecia até que lhe sorria, o que a fez pensar que, talvez ele, de onde estivesse, já soubesse que ela não tardaria em reencontrá-lo. Não haveria muito tempo para sofrer. Era o que esperava.

Ao ver as urnas já fechadas sentiu o peito encolhendo, enchendo-se de uma dor que não deixava espaço para o trânsito do ar. Viu-se desfalecendo à espera de uma outra urna que a acolhesse. Mas seu corpo não quis se entregar e ela foi levada de volta para casa como uma sonâmbula. O desfecho de sua história de vida, de roteiro tão lapidado e apropriado, o qual ela imaginava dominar e agora pregara-lhe uma peça, trazia-lhe desconforto impossível de ser amenizado.

Sentou-se no sofá e lá está ainda hoje, com os olhos parados no dia em que lhe roubaram o final da vida.

(*) Jornalista. Inspira-se em fatos do cotidiano para escrever seus contos.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Sagrado profano, por Laís de Castro

Laís de Castro (*)



Não, eu não vou dizer que é normal. É estranho mesmo, é esdrúxulo, é tudo quanto você quiser dizer que é. Uma menina mongolóide, como se dizia antigamente, os olhos puxados, o sorriso mole, o corpo gordo e descoordenado, dançando, frouxa, no meio daquele montão de veados naquela discoteca gay. Uma noite atrás da outra, sem descanso, a mãe sentada numa cadeira dura, olhando, observando, consciente de que a única alegria da menina é aquele momento de dança, onde os rapazes todos olham para ela, lhe dão a mão, brincam e sorriem (mós sabemos que nenhum rapaz olha para uma menina assim, caruncho).

É esquisito mesmo, mas eu posso contar como começou e como acabou esta história que teve começo, meio e fim. Bem ao contrário dos filmes americanos e das novelas brasileiras, essa parece que não teve um final de soltar foguetes. Eu gosto de histórias de verdade que não têm melaço, não têm rapadura, não têm glicose, sacarose e os cambose, e nem favos de mel. Não são açucaradas, quero dizer, não têm aquela amolação de brincar de casinha, de amor sem fim que não duram e que qualquer dor de dente pode acabar com uma paixão destas em dez minutos, um tendo que abrir mão da praia para levar a outra ao dentista e ficando furibundo de raiva que lá fora está o maior sol.

Vou contar, então desde o começo.

A menina, que nasceu com Síndrome de Down, veja só como a denominação do mal já está politicamente correta, morava ao lado de uma discoteca gay que tinha shows metidos a hollywoodianos, com direito a escadaria e transformistas equilibrados em altíssimas sandálias plataforma, roupa de Carmen Miranda, dublando a Maddona. Maddona não, naquele tempo ela nem existia, a dublagem era da Lisa Minelli mesmo, New York, New York, que veado adora dublar mulher. Bem que eles poderiam dublar o Frank Sinatra em New York, New York, mas o que? Nem pensar! Acho que também tinha dublagem da Barbra Streisand e de outras cantoras, mas confesso que sou muito ruim com músicas americanas, tudo que eu ouço acho igual, com exceção daquelas maravilhas de New Orleans.

Estive naquela discoteca uma meia dúzia de vezes e, assim, conheci a menina a quem vou chamar Maria porque não lembro o nome dela, que dançava, dançava e dançava a noite inteira sem descanso. Girava o corpo desengonçado e olhava as luzes e sorria, aquele sorriso inexpressivo (nós sabemos que é assim, caruncho) com a alegria dos inocentes.

Na primeira vez que passou na porta da discoteca, Maria parou e ficou vidrada, olhando para dentro, ansiosa, balançando para frente e para trás, no ritmo, como nunca antes. A mãe, que vamos chamar D. Sonia, tomara que o nome não coincida com o verdadeiro há muito esquecido, com um sorriso de acabar com festa de reveillon em navio de tão triste, tomou um susto. Aquela menina que vivia há 20 anos prostrada, olhos baixos, desolada, apática, jogada feito uma boneca dorminhoca, parecia, ali naquela porta, acordar de um longo sono. Assim, mesmo tendo uma bolsa de parcos recursos, resolveu pagar o ingresso para as duas. Pequena, tímida e simples, aquela mater-dolorosa, que nunca tinha visto um veado de perto e agora estava no meio de mais de 200, era o susto personificado, parecia uma estátua de bronze enquanto a filha, pela primeira vez na vida, exibia um brilho nos olhos e quase ria, enquanto ia para pista de dança e começava, sozinha, a dançar.

Entre o pavor e a cerimônia, entre a alegria de ver a filha sorrir e dançar e o pejo que sentia em estar ali, Dona Sonia foi se chegando devagar, como quem não quer chegar (nós sabemos como isso funciona, caruncho) e escolheu, para encostar o corpo hirto, uma cadeira num cantinho sob o palco, de onde podia vigiar a menina e, ao mesmo tempo, esconder-se para encarar a encalistração e o retraimento que a faziam suar dos pés à cabeça. Tonta, o ouvido zunindo de medo, o que eu estou fazendo aqui, pensava, apavorada, meu marido vai me matar, que coisa mais louca esses homens que só conversam com outros homens, encafifava, são veados, mas são tão bonitos. Ali, escondida, ela derramava lágrimas sofridas e afortunadas, lágrimas de mãe, ao ver a filha, que durante duas décadas havia caminhado inerte diante da vida, sorrindo e girando, feliz como um pássaro que se solta da gaiola e voa, ainda que baixo, mas voa.

Assim se passou a primeira noite. Dona Sonia não conseguiu tirar Maria da pista até que a música terminasse, as luzes se apagassem e tudo ficasse, de novo, triste como túmulo de criança. Exausta, ela contou tudo ao marido que surpreendentemente entendeu e não fez nenhuma referência ao fato daquilo ser uma boite, ainda mais uma boite gay e, ainda mais misteriosamente, parecia também feliz com o que havia acontecido. Se a menina gostou você pode levar ela uma duas vezes por semana que mais que isso a gente não pode gastar, mas se ela fica feliz lá dentro... Aquela filha única era o doloroso xodó de ambos, era sua amargura, sua dor, sua cruz, pesada como chumbo que curva os ombros e destrói a vontade de viver, enfim.

Os homens e algumas mulheres, bem vestidos, bem postos na vida, que agitavam os corpos malhados naquela pista de danças, de início, fingiam não ver o que estava acontecendo, como se a menina fosse de vidro. Depois, foram se acostumando e não viam mesmo. Ela era mais um fato daquele contexto e assim foi aceita, com uma indefectível paciência no início e depois com um acachapante querer-bem. Sem querer ser piegas, que eu já disse lá atrás, tenho ódio de frase de novela, todos se apaixonaram por aquela presença comovente e real, se um dia ela faltava porque tinha um gripe ou porque a mãe estivesse com gripe, parecia que havia uma lacuna ali, no lugar da menina ficava pairando no ar uma espécie de apreensão...

Não vou ficar entrando em detalhes porque esses detalhes só machucam o coração dos mais sensíveis, a mãe chorando porque tinha descoberto um motivo de alegria para a filha, o pai juntando os trocados na carteira, para elas voltarem à boite, Maria pulando de felicidade e correndo para debaixo das luzes negras e coloridas, para aquela arena simples e pura, que os ascetas e falsos moralistas chamariam de antro de perdição, nós sabemos, caruncho, que não é bem isso. Aquele lugar não era uma furna de pecado, não. Há trinta anos atrás, aquilo era quase que um convento... Não, não é isso. Nem tudo de antigamente é melhor do que hoje, não. Mas eu posso garantir, porque fui testemunha ocular, que as pessoas iam lá para se divertir, conhecer-se e assistir aos shows. Era um lugar de lazer, sem perversão, nem dó, nem drama.

Pois bem, para encurtar essa conversa que já vai longa, eu vou dizer que essa menina nunca mais deixou de dançar, todas as noites, eu disse todas as noites e a mãe, insone, nunca mais dormiu, ficava ali sentada na cadeira dura, esperando o sol. No entanto, o que aconteceu (e aqui entra o sobrenatural, o belo, e eu que não sou dada a estas bobagens, nesse caso devo me render aos efeitos não racionais da bondade humana) foi que depois de algumas semanas, a menina já não dançava sozinha. Todos os rapazes e senhores que ali dançavam e, vou repetir, algumas mulheres também, passavam por Maria, davam um beijo, pegavam sua mão e giravam, brincavam com ela, alegravam ainda mais seu olhar com um gesto de carinho, um abraço, um toque cuidadoso.

Dona Sonia arrumou ali 200 amigos. A dona da discoteca, sabendo de suas dificuldades, nunca mais cobrou a sua entrada e nem a da filha, que tinham lugar de honra como se vips fossem e eram, já que o tinham conquistado o bem querer universal dos freqüentadores. E eu posso falar de cátedra, gays são exigentes como compradores de relógios suíços, carros alemães ou vinhos franceses. Ali, haviam deixado sua alma derreter de compaixão, como sorvete no forno.

Vou contar outra coisa, um dia Dona Sonia teve uma gripe e três convivas assíduos da boite foram buscar Maria para que ela não perdesse a noite de dança. Depois, levaram a menina para casa, como se irmã deles fosse, protegida, serena, exausta, sonolenta. Senhores, eu vi.

Poucas vezes estive naquela discoteca, porque nunca fui dada a excesso de decibéis, mas tive grandes amigos que eram fanáticos pelo lugar. Depois, contudo, do que vi e do que soube que acontecia ali, passei a considerá-la um local sagrado (nós sabemos como é, caruncho).

Todas as noites, naquele altar, Maria e Dona Sonia tinham seus momentos de bem-aventurança: a menina, que na rua e na escola ninguém, praticamente, enxergava, e não venham me dizer que as pessoas dão mais do que 30 segundos de atenção para meninas como ela, agora era objeto das delicadezas e dos afagos generosos de todos ali presentes. Antes praticamente negligenciada por estranhos feito um cão sarnento, agora era amada, querida e alvo de carinho oi gatinha chegou tarde hoje, dizia um, oi Maria, tá tudo bem, oi garota, que roupa bonita, tá de blusa nova, cortou o cabelo ficou linda... Feliz, na sua inconsciência, ela agradecia com seu dançar desajeitado e seu sorriso pastoso e flácido. Muito aqui entre nós: ela não sabia que todos aqueles homens não tinham, exatamente, predileção por mulheres. Portanto, sentia-se cortejada. Dona Sonia, vendo a filha contente e bem tratada, todas as noites deixava escapar algumas lágrimas, agora só de alegria. Ela, sim, sabia que ali a menina não corria nenhum risco.

Alguns anos depois do começo dessa narrativa, no aniversário de um grande amigo, que freqüentava a discoteca, boa noite, boa noite, parabéns a você nesta data querida, tive uma surpreendente emoção: convidadas de honra, tratadas com amor e respeito, lá estavam Maria e Dona Sonia. Lembra delas, claro, lembro, prazer em revê-las, disse correndo, depressa, bobona, comovida, me tranquei no banheiro e chorei cântaros. Somos convidadas para aniversários toda semana, me contaria depois a mãe, orgulhosa, apaixonada pelos novos amigos, eu já faço até os bolos das festas para ganhar um pouco mais. Maria não falava. Apenas, o rosto lavado de satisfação, a alegria exposta sem pudores (nós sabemos, caruncho), comia brigadeiros, como uma criança de 8 anos. A esta altura já tinha uns 28 para 30 anos.

Não posso dizer quanto tempo durou essa fortuna, que não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe. Eu me afastei e, anos depois, passei em frente do que era antes aquela boite gay: em seu lugar, havia uma igreja. Por onde andarão Maria e Dona Sonia, se é que a mãe está viva, dizem que o maior medo de mães assim é o de morrer antes das filhas, que ficam abandonadas, lembrei, naquela tarde escura. Em que discoteca dançará, hoje, a eterna menina que agora deve ser uma senhora na faixa dos cinqüenta? Por onde andarão aqueles que aprenderam a amá-las com generosidade e respeito? Meu amigo, aquele do aniversário, está morto, não pode mais me dar notícias das duas.

Não quero ditar regras e nem sair por aí fazendo discursos pálidos como freiras assustadas e inúteis como reis e rainhas, mas não sei se agora, acolhendo uma casa de orações, aquele espaço seria mais divino do que a discoteca havia sido. Não sei se as pessoas que para ali se encaminham hoje, mesmo lendo textos ditos religiosos, levem consigo a leveza de alma dos que iam lá antes, dançar e tomar cerveja. Tão generosos que receberam Maria e sua mãe de corações, mentes e braços abertos e abriram, da mesma forma, suas casas para as duas. Tão doces que embalavam Maria, com a nobreza de sua atenção e carinho fraterno. Tão magnânimos que, a mil quilômetros de qualquer preconceito, amaram aquela menina como a si mesmos.

Não apostaria que os homens e as poucas mulheres que freqüentavam aquela arena de luzes e música, fossem menos sagrados do que os que vieram depois, com a suposta igreja. Nós sabemos, caruncho.

(*) Jornalista, há 18 anos no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Vou-me embora pra mim mesmo, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia (*)



Ou é agora ou nunca mais, pensei.

Rumei decidido à cata das tardes de esteio firme, aquelas que eram substancialmente tardes de rachar o liso das calçadas, em horas e horas de ócio pra muito além do boulevard. Fui chegando e pus-me à vista das cercas mesmas das casas todas. Cercas feitas de igualdade, talhadas no esquadro do artesão, cercando as sinas semelhantes de homens parecidos no vagar e na fisionomia, no jeito de olhar a serra e de ir tocando a vida em meio a assovios e nomes-do-pai.

Eu voltando, voltava no ventre do retorno eterno, o volver infante, espesso de leite e cheiroso de talco. Entrei de fininho naqueles dias findos, sabendo do risco do reboco desprendendo, das heras há muito não aparadas e das calhas entupidas. O uísque com gelo era um guizo nas mãos trêmulas com as dez vistas que assomaram com cantoneiras nas bordas. Via em cores e confrontava ao branco e preto que ficou e que me impulsionava a cavar naqueles sítios a parte faltante de mim. E dizia, pra encorajar-me, que vinha pra cumprir o que tinha de ser e ficou no intento, por teimosia de seguir caminho outro e não o adjacente, o já disposto em espólio antepassado, o que era a fortuna ou o infortúnio de todos os outros filhos das casas de cercas baixas. Quis-me assim, fora dos médios.

A porta da frente rangeu alto quando ela entrou. Tão pouco mudada, tão secularmente ela, musa do feudo revisitado.
- Eu te disse que ninguém sai impune daqui.
- Isso eu sabia e paguei o preço, essa certeza era o peso que vergava a mala na estação, o andar indeciso renegando a ida, a vontade um milhão de vezes frouxa. Por que veio até aqui, me diga? Mórbida. Parece nome de gente, Mórbida lhe cai tão bem. Trago nas solas o barro do mundo, caríssima, de terra estranha que teimei pisar e amaldiçoei chorando muito, fique ciente.
- Por aqui ficou o que sempre esteve, mais ou menos do jeito que Deus dispôs nos seis dias de trabalho. Não te digo que seja o mesmo o sineiro na matriz, nem o bedel, muito menos as meninas que a medo te ofereceram a carne antes de mim. Mas você também não é o você que esse lugar pariu.
- Hoje sei. Mas eu nunca saberia, se ficasse.
- Ali estão as ferramentas descansadas na bancada do seu velho. Com o olhar de agora talvez veja serventia nelas. Não há mais tua mãe varrendo, nem quem quer que seja cuidando do que foi. Tudo meio triste, aquarela muito aguada. Sabe que não imaginei revê-lo assim, com esse copo na mão, cedendo como as vigas do terraço?
- Desaponta ver essas paredes pelo meio, eu que vi cada fiada de tijolo se erguendo, os beirais se levantando... devia era não voltar e não ter que ver essa escada, que já não leva a parte alguma.
- Me lembro dela com corrimão de bronze e feltro vermelho nos degraus largos. Lá em cima, o tempo bom da gente olhando da janela do seu quarto.
- A gente só não podia com o vento batendo forte.
- O vento leva e traz as coisas. O vento ensina.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

As confissões, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini (*)



Finalmente naquela sexta-feira, os três irmãos, Toninho, José Arthur e o Marlon, conseguiram “arrastar” o João Paulo para a mesa de um bar. O jovem João Paulo era um cara que despertava muitas curiosidades na turma. Tímido, andava sempre quieto, de cabeça baixa, mal falava com os colegas durante a jornada de trabalho. Trabalhavam juntos há três anos, mas ninguém sabia nada sobre a sua vida. Vivia no seu “mundinho”, como diziam, o que gerava uma série de histórias ao seu respeito. Aparentemente, não tinha vida social, não praticava esportes e era solteiro. Bom! Exatamente neste ponto que a curiosidade do pessoal se aguçava.

Depois de muitas cervejas e as conversas rodarem sobre o trabalho, o chefe e os times de futebol do coração, o assunto mulher entrou em pauta. Aqui começava a ser executado o plano elaborado pela turma para sanar as suas dúvidas, digamos assim. Iniciando pelo José Arthur, para criar o ambiente:
- Aproxima! Aproxima! Vou fazer uma confissão pra vocês...
- Fala, Arthur.
- Sabe aquela negrinha da feira quase em frente ao museu municipal?
- A que vende tomate?
- Não! A outra... Tô pegando!
- Capaz!
- Sério! Fui fazer compras lá esses dias, ela se riu toda para o meu lado, não resisti. Fomos para o motel no início da semana. Que potranca!
- Só não deixa a patroa descobrir! Se não...
- Vira essa boca pra lá! Vou até bater na madeira. Toc toc toc...
- Eu que quase entrei em uma fria essa semana. Sabem aquele meu “bichinho” da Petshop, que eu traço há tempos?
- Claro!
- Arãn!
- Pegou e me ligou toda dengosa, querendo me ver... E eu com a Neide, que tem um ouvido que vou contar pra vocês. Estou dando explicação até agora...
- Vai com calma, Toninho! Ela se amansa... Não é a primeira vez!

Ah! Ah! Ah!
- Eu que ando tranqüilo! Continuo com a “nega véia” e mais duas...

Ah! Ah! Ah!
- Você é demais, Marlon! Um brinde!

Ah! Ah! Ah!
Após as gargalhadas, silêncio. Então, Toninho parte para a fase final do plano, e questiona:
- E contigo, João Paulo, como andam as namoradas?

Novo silêncio. Pela primeira vez João vai “abrir a boca” para falar sobre si e, de quebra, já sentindo os efeitos da cerveja, confessa:
- Eu... Eu “pego” a caixa do banco que fica em frente à empresa! A Elisân...

Pronto! Antes que o João terminasse a frase, a gritaria tomou conta da mesa. Principalmente o Marlon. O “ganhador”.
- Eu falei! Eu falei pra vocês que ele não era veado! Pode passar a grana... Cenzinho de cada um. Aposta é aposta e tem que pagar.
- Está certo Marlon, ganhou... Apostou bem. Toma!

Toninho baixou a cabeça e quieto, balançava-a de um lado ao outro negativamente. José Arthur ainda tentou justificar-se com João Paulo.
- João, não que eu desconfiasse de alguma coisa, mas...

Então, João Paulo, com a voz firme, exige:
- Me dêem o dinheiro das apostas... Se não eu conto tudo!
- Por que motivo? Ainda questionou o Marlon.

Antes que João respondesse, Toninho interferiu:
- Vamos dar o dinheiro a ele. Foi um erro de nossa parte fazermos isso com o garoto...
Marlon ainda insistiu:
- Ficou louco, Toninho! O dinheiro é meu. Eu ganhei a aposta...

E perdendo a paciência, Toninho replicou:
- Seu desgraçado! Não percebeu ainda que ele pode nos entregar? A Elisângela do banco é a irmã que vocês chamam de “solteirona” da Neide, minha mulher!

(*) Jornalista e cronista

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O fim e a esperança de ter um novo amor, por Luís Delcides R. Silva

Luís Delcides R. Silva (*)



Assumi a posição diante de uma mulher durante o almoço de domingo. Coloquei-me como ser, homem, tomei postura e declarei o amor que sinto pela “tal” pessoa. Pude tocá-la e senti-la.

Houve tantas carícias, toques, beijos, tantas coisas boas ficaram para trás. Enfim, acabou. Hoje esqueci da “tal”. Estava papeando com uma pessoa super-interessante no MSN. Ao ver algumas fotos dessa outra, esqueci de tudo, esqueci que existia a “tal cheirosa”.

Três da tarde. Correria, envio de releases, follo-up, contato com a imprensa. De repente, o telefone trava. Quem? A “tal” começa a falar. Chama a atenção, fala fanhosa. Contou tudo como foi ontem e começou a dizer que um “amigo” a pegou e deu um “beijaço” na boca dela. Comecei a sentir-me mal, muito mal! Depois silenciei. Não conseguia falar. Entristeci-me, calei... Perguntei se ela ama alguém? Ela disse um sonoro NÂO!

Mais tarde, resolvi ligar e tomar posição. Expressei qual era a minha posição daquele momento em diante. Disse que não iria mais sair com ela. Estava mal. Meu coração sangrava, e muito, ao ouvir a voz dela. Logo, decidi dar um basta às nossas saídas.

Somos amigos. Mas alguns contatos íntimos e caminhadas transformaram uma amizade em um grande amor. Por tantas vezes declarei e não escondi. Fui claro e sincero. Mas ela falou não, optou pelo pode fazer, pode beijar, toques, “mãos-bobas”, mas a amizade continua. O café-com-leite! Onde as coisas se misturam, mas não há uma definição.

Pois é... Mas o meu coração está ferido, triste, com uma vontade imensa de esquecê-la, colocar lá no fundo da história. Eu não quero mais pensar nessa “tal”. Meu coração quer novas alternativas, conhecer novas pessoas. Prefiro a bela morena com que falei hoje no MSN. Ela é linda, maravilhosa e inteligente.

Quero o novo, o melhor para minha vida. Estou pronto para amar, pronto para ter um grande amor. Mas quero alguém que aceite o meu amor, que me aceite como sou e que não tenha medo de se entregar.

(*) Estudante de jornalismo, micro-empresário e escreve para o blog Casos Urbanos www.luisdelcidess.blogspot.com

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Cinco anos, por Fábio de Lima

Fábio de Lima (*)



Um monte de gente nesse mundo acha que um filho nasce depois de uma relação sexual, com quem você ama ou não. E eu não critico essa gente, porque, quase sempre, é assim que um filho nasce mesmo. Mas comigo foi diferente. Eu virei pai da filha da mulher que amei. Sendo assim, minha filha entrou na minha vida como uma menina loira e de olhos azuis. Sempre linda, falante, engraçada e inteligente.

Hoje minha filha faz aniversário. Completa cinco anos de idade. Deve estar uma sapeca e tanto – se eu conheço aquela “malucona”. Faz tempo que não a vejo. Mas filho é para sempre e a distância não muda essas coisas. Não sei se ela ainda lembra de mim. Não sei como está seu cabelo. Não sei como está seu sorriso. Só sei, diante das incertezas da vida, que, para mim, hoje é um dia muito especial.

Eu não sei ao certo o dia que me tornei pai. Talvez tenha sido ainda quando conversava por telefone com a mulher que eu amava, enquanto ela, grávida, conversava com nossa filha, acariciando a barriga. Pode ter sido tempos depois, quando esperávamos os três por atendimento médico durante uma madrugada fria. Quem sabe mais tarde quando a pegávamos na escola. Ou pode ter sido quando fiz, com minhas próprias mãos, um bolo de aniversário. Nunca soube e nunca vou saber.

A minha filha não tem nenhuma obrigação de entender as coisas do coração. Ela nem precisa mais lembrar de mim. O que importa é que eu a amei, a amo e a amarei sempre. Eu não me esqueço dela. Não esqueço das risadas que dei ao seu lado. Voltar no tempo eu tentei, mas não deu certo. A vida é assim. Agora quero apenas dizer parabéns – cantar feliz aniversário, baixinho, sozinho, e sorrir aqui também.

Jamais poderei me arrepender pelo que fiz. Fui o melhor pai que poderia ser. Fui pai com o coração e com a alma. Um dia, enquanto minha filha tomava uma injeção e pediu que eu a protegesse, com olhar e com palavras, tive certeza que eu era um pai como sonhei ser – mesmo que meus sonhos fossem apenas meus. Cinco anos, dez, quinze, vinte...! O tempo é uma coisa inventada pelo Homem. O amor é divino e ele não tem idade. Parabéns e fique com Deus, Beatriz.

(*) Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Quadrado, por Eduardo Ritschel

Eduardo Ritschel (*)



quarto quadrado
quadro reflexo
linhas oblíquas
imagens refletidas
espectro e prisma

na parede
na janela
na porta

o facho de luz passa pelo vão
decompõe no papel
em sete mil cores

círculo de sol
sombra sob a árvore
nuvens cíclicas
tonalidades de cinza
tempestades
secam e evaporam

na cerca
na calçada
na rua

faro de flores
triângulos vermelhos
volumes retilíneos
caules e raízes
morrem e nascem

agora
a toda hora
no tempo
o tempo todo

(*) Jornalista

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Só mais um recado, por Francielle S. Costa

Francielle S. Costa (*)



Durante algum tempo hesitei em abrir aquela porta, de tal maneira, tempo bem longo por sinal. Passei vários dias pensando o que era certo ou errado, se valeria a pena ou não, mas minha consciência está bem limpa, até. Eu não vou mentir que por várias vezes tentei espiar pela fechadura, pra ver o que realmente havia do outro lado, porque, pra mim, estava sempre tudo escuro, buscava uma fresta que fosse, na verdade um tipo de ''sentido''. Mas parece que o outro lado sempre estava se recuando.

Às vezes parecia querer mostrar um pouquinho de si. Talvez achasse que era transparente, e eu, sempre que tinha uma brecha, aproveitava pra tentar abrir a tal ''tranca''. Mas sempre acabava sendo jogada pro outro lado. Essa curiosidade toda se dava pelo fato de tentar desvendar, de todas as formas possíveis, aquilo que estava ali, bem na minha frente. Acreditava que se conseguisse entrar, poderia compartilhar de muitas coisas boas, como um presente que você rasga depressa a embalagem pra aproveitar o que tem dentro.

Tentei de tudo, mas parece que tudo estava perfeitamente atado, como um nó. O pior de tudo é que eu acreditava que conseguiria, porque queria, e nunca passou pela minha cabeça que o tal ''outro lado'' não queria, de forma alguma, mostrar o que tinha lá dentro.

Ficava se retorcendo todo quando parecia que ia se abrir, e nada. Se fechava ainda mais e, pior, sem nem ao menos dizer ''não perturbe''. Queria que eu continuasse ali parada, esperando. Aquela porta que eu tanto tentei abrir, hoje deu lugar a outras janelas que pensam me assombrar, pacientes, até que eu vá e as feche novamente. Demora, mas o melhor a fazer é deixá-la lá e acenar, de longe, lamentando por não ter feito isso há mais tempo.

(*) Estudante de Jornalismo na Unibrasil (Curitiba-PR)

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A vitrine e o espelho, por Raimundo Antonio

Raimundo Antonio (*)



Às vezes nos deparamos com situações em que a realidade nos foge e mesmo assim nem percebemos. Essa semana, eu, ao passar ao lado de uma vitrine – dessas que existem aos milhares, em lojas de departamentos, principalmente em shoppings – me fiz curioso por ter visto um manequim vestido numa roupa visualmente muito bonita.

Acerquei-me dela e ao me posicionar frente a frente com aquela forma inanimada, vi–me refletido através do espelho – colocado estrategicamente por trás do manequim – dando a impressão que seria eu e não o dito cujo, a estar ali, impassível, distante, solitário, indiferente, a quem ia ou vinha. Tomei um susto, não sem antes ter gostado do que vi... Claro. Eu era o modelo perfeito: o protótipo ideal de consumo onde a cultura de massa nos anestesia e nos transforma em inconscientes consumidores daquilo que não somos, mas queremos ser.

Fiquei parado, imóvel completamente, me admirando, me vendo noutro contorno, lascivamente satisfeito com o refletir assim tão bem acabado de minha escultura. Mas, quase que de pronto, me veio à consciência da realidade a me buscar para mostrar toda ilusão daquilo que estava vendo. Ela devolveu-me o censo e fez-me ver que aquela imagem, primeiramente, capturada pelo espelho da vitrine, não era eu. Não o eu real, apenas uma visão daquilo que os olhos vêem quando querem focar algo, não significando ser aquilo a duplicidade do seu corpo, de sua estrutura.

Em segundo lugar, eu estava pelo lado de fora da vitrine, o espelho pelo lado de dentro, preso em si, sem possibilidade de sair e caminhar. O corpo não tinha cabeça. A imagem refletida era apenas a minha cabeça por trás do boneco, dando a falsa ilusão de que tudo era vivo, móvel, dinâmico.

Tentei sair do campo visual do espelho e levar comigo aquele corpo tão bem-feito, não pela natureza divina, mas por mãos habilidosas em seu ofício, mas, o que consegui foi ver a minha cabeça pensante sumir do espelho e deixar umas roupas bem-acabadas em um boneco sem cabeça. Aí ele ficou feio. Horrível sem cabeça. Já não era a imagem perfeita de um homem por trás do espelho, nem a ilusão passada pelo inconsciente dos que fazem do seu eu a perfeição de querer ser daquela forma.

Fiquei pensando: se nos iludimos tanto achando que aquilo que vemos refletido no espelho é a nossa realidade e que dogmas, regras, valores morais, sociedade, jamais serão frutos de mudanças, damos a entender, também, que jamais conseguiremos transpor os obstáculos que criamos durante nosso ciclo de vida. Ficarmos presos a captura do espelho é não termos consciência de quão valiosa é a nossa individualidade, a nossa identidade particular, característica, somente, de cada um de nós.

A vitrine nos obriga a olhá-la sempre que passamos ao seu lado, mas, parar para observá-la de perto é um desejo inconsciente de sedução de querermos nos transformar em manequins de exposição, sem vida, imóveis, servindo apenas de estereótipo para outras enlaças.

Saí dali receoso por me ver fazendo duas coisas: olhar o manequim de perto e me ver dentro dele; o espelho me deu a sensação de algo novo, inédito, com cabeça pensante e corpo transformado em objeto do desejo, valioso dentro das roupas criadas exclusivamente para atender aos padrões que ora somos obrigados a consumir.

Mais na frente, quase que no meio da rua, feito menino que não sabe andar em calçada, eu parei. Parei e pensei: ora, por que me preocupar com tudo isso? Afinal de contas sou apenas um ser pensante no meio dessa multidão ensandecida pela quimera de ser aquilo que pouquíssimos conseguem alcançar, mas, que se iludem, sempre, toda vez que passam em frente a uma vitrine e dentro dela há um manequim de borracha sintética com roupas da moda e um espelho que os capturam, deixando refletir apenas a fantasia de uma imagem sem vida, fantasmático.

Já sei: da próxima vez que passar por uma vitrine e me sentir tentado a olhá-la, vou me lembrar – antes de ser novamente hipnotizado – que poderá ter lá dentro um espelho para capturar a minha imagem irreal, portanto, para não me fazer cabeça sem corpo; imagem sem sonho e ilusão sem fato, vou me conscientizar que ambos são de vidros, apenas.

(*) Cronista e professor

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Sete três sete, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia(*)



Sabia que não escaparia ninguém, pelo ruído incomum e pela fissura logo abaixo de uma das turbinas. Nem por isso sua mão tremeu mais ao servir vinho para o grisalho panamenho que dela não tirava os olhos desde o check-in em Los Angeles. A écharpe com centenas de loguinhos da companhia aérea disfarçava o suor frio. Seu olhar ia da taça de vinho à turbina condenada, da consciência do dever à certeza da tragédia, não havia clima nem vontade de corresponder à insinuação daquele homem.

Se tivesse idéia das cinzas a que nos reduziremos, não perderia os últimos momentos nesse joguinho infrutífero. Pense em sua mulher, senhor. Nos filhos, no cachorro, nos negócios, não em mim. Faça um ato de contrição, um nome do Pai, por favor, desmonte esse ar patético de cobiça carnal. Torça para que haja algo acima desses 14 mil pés.

Nenhuma movimentação estranha na cabine, ninguém além dela tinha percebido. Muitos dormiam e passariam do calor das mantas de bordo para o sono eterno sem darem pelo ocorrido. Para o não-ser sem escala e sem stress. Envolveu a taça de vinho do panamenho com o guardanapo.
- Thank you so much (com uma piscadela desavergonhada).

Adeus aos procedimentos protocolares e gestos contidos. Pegou a garrafa de vinho do carrinho de bebidas e começou a sorvê-la no gargalo, olhando de soslaio a turbina com defeito. Afrouxou o nó da echarpe e sorriu cúmplice para os próprios pensamentos. Viu-se a si mesma entre as nuvens, lendo “O apanhador no campo de centeio”.

O panamenho foi buscá-la com mais uma investida.
- Um milhão pelos seus pensamentos.
- Não valem isso. E tenho pra mim que poderiam assustá-lo.
- Isso são modos de uma aeromoça que se preze, beber no gargalo na frente dos passageiros?

Há de ser o primeiro a espatifar-se, pensou. Bem na janelinha da falha mecânica e se fazendo de gostoso. Que seja agora, no pileque, a inconsciência. Explodamos de uma vez.

(Mais um gole, bem sorvido. Trança as pernas).

Caiu sobre uma poltrona vazia e espiou pela janela. Sobre o Saara, agora.

Não cesse essa anestesia boa, quero inexistir feliz. Serão semanas de busca.

Riu.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Você, meu amor, por Rafael Coelho

Rafael Coelho (*)



Amor que existe
e persiste
até nos versos
mais simples.
Amor que encanta,
me ganha,
conquista
sem manha.
Amor eterno
e terno,
colorido e encantador
que faz-me viajar.
Amor bonito
que me fascina
e me faz sempre
querer te amar.
Amor do jeito
que eu sempre quis,
que Deus me deu
pra ser feliz.
Amor...
Você, meu amor.
Pra sempre,
meu grande amor.

(*) Acadêmico de jornalismo e presidente do portal de notícias www.palavriando.com.br.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O pecado mora ao lado, por Ruth Barros

Ruth Barros (*)



Contos da Mula Manca

Tenho uma amiga muito gracinha, dessas que raramente ficam sem namorado. Quando fica se vira bem em uma paquera avulsa. Nos últimos tempos, depois de algumas histórias meio atrapalhadas, a linda resolveu dar um tempo na dela. Aos que estranharem, uma simples explicação: o fato de existirem bofes e de estar sempre chovendo na horta dela, não quer dizer que sejam nenhuma maravilha. E mesmo maravilhas dão dor de cabeça.


Parece falseta do destino. Ou do destino dela, que eu acho de certa forma invejável. Mas quem nasceu para se meter em encrenca, com e sem trocadilho, pode se afastar da encrenca que ela corre atrás. Pois enquanto ela estava ocupada fazendo outras coisas, como diria o saudoso John Lennon, mudou para o lado um bonitão, daqueles do outro lado da cerca. E a coitada (coitada???) já foi obrigada a rever posição.


Vizinho, ainda mais tão próximo, daqueles que dá para ouvir tossir de noite, apesar da comodidade, é encrenca. No caso dobrada, porque o cara é sério, casado, a família mora longe e o caminho é deserto. E fica aquele pedaço de bom caminho bem à vista, quando não na escuta, para piorar ele é bofe de voz bonita também. Tanto que ela já está mudando de idéia.


“Vou ser obrigada a ir para o mundo de novo, em plena era de lei seca”, constatou ela para mim. “É demais ficar exposta a aparições de vizinho bonitão, ainda mais em época de voto de castidade. E o cara é na dele, não é daquele tipo de fica fazendo gracinha, apesar de algumas vezes ter algumas atitudes surpreendentes.”


Já que ele acaba dando um mole, apesar da reserva, quis saber por que ela, garota de atitude, não tomava alguma. “Lingüiça não corre atrás de cachorro, como sempre disse a minha mãe e eu levei tantas décadas para aprender”, respondeu com ar sério, para depois abrir um sorriso. “Mas como rebateu meu novo amigo gay, lingüiça tem de se mostrar para o cachorro. Por enquanto é tudo que dá para fazer.”


* Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra. É autora do livro “Os florais perversos de Madame de Sade” (Editora Rocco).

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Conhecemos e depois desconhecemos, por Débora Santos

Débora Santos (*)



Loucura talvez! Estranho, acho que seria a pronúncia correta. De repente, alguém aparece na sua vida, lhe conquista, lhe envolve, lhe seduz como um amante perfeito.

Palavras doces saem da boca do amor perfeito, oras... Amor perfeito? Quem disse isto? Exatamente assim, as palavras também saem de sua boca, de uma hora para outra, aquela pessoa se torna a mais maravilhosa do mundo, melhor que o ex e, provavelmente, melhor do que qualquer outro.

Ligações, torpedos, orkut e msn – nossa! Um não pode viver sem se comunicar com o outro. A coisa caminha mais ou menos assim: beijos, carícias, brincadeirinhas, e depois, mesmo depois do encontro – o telefone toca, você olha no identificador de chamadas e lá está o nome do dito cujo, atende com um sorriso que vai de orelha a orelha, mais ou menos assim:

"- Oi amoooorrrrrrrr! Tudo bem? Você chegou bem?

- Oi meu docinho, cheguei. Não vai me dizer que já estava dormindo?

- Não amore, para você sempre tenho tempo!

- Eu também, sempre terei tempo e desejo para falar com você!

- Estou morrendo de saudades!

- Eu também!

- Adorei tudo o que fizemos hoje!

- Também adorei, não vejo a hora de vê-lo novamente!

- Bom, vamos dormir, né!

- É mesmo, amanhã temos que trabalhar, um beijo e sonha comigo!

- Beijuuuuussssssss e sonha comigo também!"

O tempo passa, vocês vão se conhecendo, claro! Você acredita que conhece tudo da pessoa, chega a pensar: “Nossa! Realmente encontrei o amor da minha vida”.

O tempo urge e como urge... Algumas coisas vão ficando chatas, aquelas manias que eram despercebíveis no começo, agora passam a atormentar. Depois de algum tempo, as coisas vão piorando, aquela pessoa vai ficando distante, mesmo assim, você acha que tudo vai melhorar.

Torpedo, nem pensar, a desculpa é que a conta do mês passado veio alta demais; orkut, aiaiai... que orkut? E no msn, aquelas frases bonitas e melosas se transformam em: “oi, vc td bem? Akí ta osso, mto trampo, vlw! Bj”. Você lê e se pergunta: “tá osso? Como assim? Ele agora trabalha numa fábrica de botões ou num frigorífico?” E isso quando está com o ícone de ocupado ou ausente. Depois offline é o seu nome!

Um dia liga, no outro nem sinal de fumaça. Mas, continua a pensar que é uma fase, os encontros vão diminuindo, os telefonemas também. E quando liga é para dizer que não poderá comparecer ao encontro. Depois, o telefone morre, ou seja, não liga para ao menos dizer: “Ô coisa do outro mundo, não poderei comparecer hoje, ok!” Nada, inércia da inércia.

Até que o juízo final chega. Ah! Como chega! O bofe tudo de bom que você achava que conhecia e comentava para as amigas, acaba se tornando um encosto, deixa você no descontrole total. As suas amigas pedem ajuda até para os búzios. Você de qualquer forma quer entender o que passa na cabeça do seu "amor", pensa que poderá mudá-lo, santa inocência, Batman!

No final, você acaba percebendo que aquela pessoa é totalmente outra, o corpo permanece o mesmo, no entanto, a mente e o coração dele partiram e partiu junto o seu coração.

* Jornalista.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O tombo, por Rodrigo Ramazzini

Rodrigo Ramazzini(*)



Era uma quarta-feira. Estava em meu horário de almoço. Havia passado em uma loja de conveniências e comprado alguns chicletes. Depois do almoço sempre é bom mascar chicletes. Descascava um ao lado de uma lixeira pública. Sabe como é, consciência ambiental, embalagem no lixo, coisa e tal. Lutava contra a grudada embalagem do chiclete quando avistei, do outro lado da rua, vindo em sentido contrário, uma linda morena de cabelos lisos esvoaçantes. Cabelos iguais a dessas modelos de propaganda de xampu. Caminhava com um charmoso bailar dos quadris, e a leve brisa que soprava naquele dia, associada aos belos raios de sol, fazia com que os cabelos irradiassem um brilho especial, movimentando-se de um lado a outro dos ombros.

Como se não bastasse tudo isso, a bela morena chamava a atenção, também, por estar toda de preto. Bota, calça coladinha, e uma blusa que contornava os fartos seios e a fina cintura. Um visual “mulher fatal”.

Fiquei a admirar a morena que desfilava em frente aos meus olhos, enquanto descascava o chiclete, pensando de forma politicamente correta, como era bela aquela mulher. Foi então que ouvi, saindo de uma construção próxima, de um dentre os vários trabalhadores da obra, o grito que materializava os meus pensamentos:
- Oh gostosa! Gostosa! Peraí morena!... Aonde vai com tanta presa?

A morena (como todas as mulheres nesta situação) encheu-se de orgulho e auto-estima. Vi em seu rosto o leve sorrisinho de satisfação. Passou a mão no cabelo e seguiu de peito estufado e bunda empinada, caprichando no bailar dos quadris. Como um mero espectador da vida cotidiana, assisti a mais essa cena, pensei “tem razão o cara!” e já estava de saída, pois finalmente conseguira abrir o chiclete e colocar a embalagem no lixo, quando o destino aprontou.

Sob o olhar atento da turma de trabalhadores, a morena caminhou por alguns metros com a sua bota de fino salto, e por descuido, na calçada defeituosa, colocou o salto em um buraco e torceu o pé esquerdo. Mesmo com toda a habilidade e swing, a morena não conseguiu evitar a queda. Caiu em câmera lenta, como se diz, batendo com um dos joelhos no chão.

Um silêncio pairou no ar. Meu, dos trabalhadores da construção, e do restante da rua que viu o tombo. Teria a morena se machucado? A resposta veio com o seu rápido levantar. E antes que ela recomeçasse a caminhar, da mesma construção anterior, não perdoando nem mesmo a bela morena de cabelos de propaganda de xampu, veio o grito, sepultando a pior sentença possível nesta situação:
- Oooh boca-aberta!

(*) Jornalista e cronista.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Bárbara tardia, por Marcelo Sguassábia

Marcelo Sguassábia(*)



Assim seja. Sob a névoa da alfazema e a providencial intercessão dos santos, amém a tudo e a todos – aflições, alívios, destemperos, calmarias. Haveria mesmo de chegar a hora e a idade em que o melhor era aceitar tudo. Desse jeito tinha de ser um dia.

Fechou a porta do oratório, caminhou até a sala e tirou da estante um livro que nada tinha a ver com o seu estado. Acendeu a lareira, abriu um vinho, sentou-se. O coração quieto, o ouvido atento ao crepitar da lenha, nunca esteve tão disposto a colocar alinhadinhos cada um dos pensamentos. Gostava do domínio linear das coisas, de dar ordenamento e organização a tudo. Tentou ler. Via as palavras sem captar direito seu sentido. Poderia ligar o aparelho e ouvir alguma música, mas não se atrevia a pôr de pé seu ser plasmado na poltrona. Era a isso que se reduzia, uma vida fossilizada naquele ermo pastoril. O vento chicoteando a vidraça, as xícaras tremulando, o pó se acumulando sobre a farta biblioteca que seu pai deixou. Do Pequeno Príncipe a Sófocles. O cachorro se achega e se amontoa aos seus pés, aproveitando uma beirinha de manta. O vinho ia aos poucos laceando o raciocínio, dando corda aos devaneios. Viu o seu reflexo, distorcido, na prataria de família. Parecia uma figura de Modigliani. Acima da lareira jazia o retrato do avô com seu olhar de Torquemada, a ditar cânones e a citar genealogias.

Bárbara devia estar a caminho, disse que vinha sem falta. No oco daquele silêncio, escutaria de longe o carro quando estivesse chegando. Era uma doida, mesmo. Ria e falava alto pelos corredores longos e ecoantes do hotel onde tantas vezes se encontraram. Gostava dos escândalos, não tinha meias medidas, tudo precisava ser muito, intensamente e quando bem entendesse. Sempre foi assim, aprendeu a aceitá-la e a desejá-la sobretudo por aqueles seus defeitos. Ele próprio talvez fosse o maior defeito dela. Daqui a pouco o cachorro sairia dos seus pés e correria até a porteira, fazendo festa para a velha conhecida. Ela viria fresca, como se tivesse acabado de sair do banho. Mesmo depois das seis horas de viagem. Mesmo com as rugas vincando e o estrógeno já escasso. Mesmo com o bom senso dos parentes e amigos dizendo que não, que era loucura.

Segunda taça, já pela metade. Roía as unhas, Bárbara não chegava. Puxou o cordão, deixou semi-aberta a persiana. E pelas frestas iam passando novelos de muitas meadas, a se perderem em labirintos de hera. Sentia o ranger de uma roldana enferrujada em sua cabeça, que ia tirando devagar as querenças e desafetos do seu poço. Matar a sede não matava, mas revolvia a água parada – o que já era alguma coisa. Que pensamentos alinhadinhos, que nada. Ao olhar para as estrelas, deu um giro e perdeu o eixo. Só não caiu pois se agarrou com toda força num poema de Pessoa. Olhou o relógio: dez para as oito nos algarismos romanos dos cebolões, dos carrilhões dos mosteiros, dos cucos das tias velhas, dos digitais made in China. É isso, pensava ele, a única maneira da passagem do tempo ser de alguma forma bela: através dos lindos mostradores de relógio.

Bárbara sofreu, sim. Teve que se virar como pôde depois da morte do marido. Foi de repente, um assalto no semáforo. Nunca desconfiou de nada, o coitado. Acreditava que as saídas dela eram mesmo a trabalho. Crédulo demais. Imagina se ela, bibliotecária de órgão público, precisava viajar tanto. Nas tardes vazias do ofício foi que cismou de escrever. E escrevia escorreitamente, deitava no papel o que vinha à cabeça, sem caprichos de coesão, estilo ou nexo. Prosa desordenada, sempre em primeira pessoa. Às vezes mostrava a ele o que fazia. Não gostava nem desgostava. Sorria, de vez em quando elogiava, logo mudava de assunto, sugeria a volta pra cama.

Ele nunca quis escrever. Passava muito bem sem nenhuma idéia em mente. Durante alguns anos teve um diário. Cadernos que mantinha escondidos, depois relidos e prudentemente queimados. Pensava naqueles sujeitos todos, escritores que às vezes via em entrevistas na televisão, falando de inspiração e compulsão pela escrita, em anotar idéias nos guardanapos de restaurante, em ter insights fazendo a barba e outros clichês.

Elcius latiu e abanou o rabo. Era Bárbara que chegava, junto com Veridiana. Da cozinha, um cheiro bom de bolinho de chuva. Foram entrando sem bater à porta, Elcius se enfiando entre suas pernas. As botas de salto altíssimo batendo nos lajotões. A Bárbara de sempre, imperativa e dominadora, dando ordens aos criados. Há muito não via Veridiana. Uns quatro anos mais nova que eles, observava com atenção cada detalhe da sala, pondo e tirando compulsivamente os óculos ovais. Enfim cedia aos insistentes convites de conhecer a estância.

Passava de meia-noite quando se recolheram. No leito, virando de um lado para o outro, a roldana enferrujada não parava de ranger. O barulho acordou as duas, no quarto ao lado. Não, não estava acontecendo. Bárbara e Veridiana, diáfanas e seminuas à sua frente. E não era sonho, tampouco efeito do vinho. Na manhã seguinte, contritos, foram os três ao oratório.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O homem sozinho, por Celamar Maione

Celamar Maione(*)



Domingo de sol. Jairo olhou o relógio: 6 da manhã. Hora da caminhada no calçadão. Mesmo domingo não conseguia dormir até mais tarde. Levantou-se da cama, se espreguiçando. Colocou o café para fazer. Enquanto isso, foi ao banheiro, escovou os dentes, fez a barba e jogou uma água fria pelo corpo. Vestiu a bermuda que estava em cima do sofá do quarto, penteou os cabelos,.colocou as meias, em seguida os tênis.

Fez um rápido alongamento. Em seguida, voltou para a cozinha e viu o que tinha para comer na geladeira. Pensou na empregada. Ela precisava fazer compras durante a semana. Falaria com ela amanhã. Pegou um pedaço de queijo, colocou café no copo, comeu com prazer sua primeira refeição do dia.

Em seguida, o telefone tocou. Era a mãe para saber se Jairo ainda estava vivo. Falou com a mãe e foi fazer sua caminhada. Óculos escuros. Boné. Olhava as mulheres com biquínis mais ousados. Só isso. Apenas olhava. Acabou a caminhada e passou na banca de jornal. Conversou um pouco com o jornaleiro, deu uma olhada em todos os jornais. Levou um só. Pegou também uma revista semanal. Deixou o troco com o jornaleiro. Despediu-se.

Aproveitou e foi até a padaria. Comprou um frango assado para comer na hora do almoço. Chegou em casa e leu o jornal de ponta a ponta. Em seguida, pegou a revista, passou os olhos e almoçou. Já passava das duas da tarde. O almoço foi rápido. Aliás, era sempre assim. Gostava de tudo fácil e prático. Não queria perder tempo. Era um bom profissional.

Costumava articular seus passos. Tudo era medido, cronometrado. Nada podia falhar. Depois do almoço, relaxou. Nada como um copo de whisky com gelo. Ouviu um CD de músicas clássicas. Era, na verdade, o único dia que tirava para não pensar em trabalho. Domingo era sagrado. Seguia uma rotina, mas diferente da semana.

Até no sábado, levava trabalho para casa, mas domingo, não. Depois do relax dominical, navegava pela Internet. Visitava alguns sites, repassava alguns e-mails e conversava com alguém online no MSN. Qualquer pessoa. Apenas para passar o tempo. “Engraçado”, pensava, “domingo não sabia muito bem o que fazer”.

O apartamento ficava vazio demais. Mas era bom. Não conseguia imaginar uma mulher fazendo cobranças e nem crianças gritando. Ficava arrepiado só de pensar. O tempo passou rápido. Oito da noite. Fez um lanche. Ligou a TV. Nada de interessante. Pegou um DVD. Assistiu ao filme quase dormindo. Passava das 10 da noite. Levantou do sofá da sala, assustado. Foi para o quarto e arrumou meticulosamente a calça, a camisa social, a gravata e o paletó para o dia seguinte. Foi dormir feliz. Segunda-feira estaria de volta ao escritório .

Pensou nas muitas reuniões que tinha pela frente. Dormiu excitado!

(*) Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.